Economista analisa propostas de políticas econômicas já trazidas ao debate e aponta o que seria elementar para construir saídas para um Brasil em estado de crises
O Brasil tem produzido cenas que pouco nos têm a orgulhar, mais pessoas sem casa e nas ruas, desemprego, alta de preços de itens básicos e pessoas literalmente lutando para sobreviver. É o que se pode chamar se estado de crises muito complexo, mas que não começa hoje. Segundo o economista David Deccache, “a população brasileira se deparou com a pandemia em um momento em que já vivia uma crise prolongada conjugada com extrema e crescente vulnerabilidade social, consequência direta das políticas de austeridade fiscal iniciadas em 2015 e aprofundadas sobremaneira após o golpe de 2016”. Por isso, defende transformações radicais na política econômica e isso passa pelas eleições do ano que vem. “É fundamental a construção de outro projeto de poder cujo princípio seja a radicalização da democracia e da participação popular na busca de outro modelo de sociedade e de Estado”, dispara.
Nesse sentido, ele analisa o que considera pilares básicos para a concepção de caminhos que passam por uma virada na política econômica empregada até agora. E se engana quem pensa que isso é debate para economista. Para ele, é preciso mobilização social. “Sem ampla aceitabilidade social e pressão das ruas um programa do tipo certamente será sabotado pela burguesia dirigente apoiada pelo Centrão”, observa. Na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele detalha esses pilares que passam por combate à fome e à miséria, reforço do papel dos bancos públicos, programas de anistias e renegociação de dívidas, revisão da dívida dos entes subnacionais, sofisticação da estrutura produtiva, novos dispositivos de proteção para um novo mundo do trabalho e reforma tributária.
Deccache ainda olha para a política econômica atual e avalia os erros e acertos das gestões petistas. Além disso, se debruça sobre dois planos econômicos, o do PT de Lula (tido como oposto ao plano do atual governo) e o de Ciro Gomes (autointitulado como uma terceira via). “Ambas as propostas convergem em termos da necessidade de uma reforma tributária; sobre a relevância dos bancos públicos; expansão dos investimentos estatais; e na necessidade de políticas de transferência de renda e geração de empregos. No longo prazo, os objetivos também são os mesmos: sofisticação estrutural da economia, com forte ênfase na transição verde”, avalia.
Porém, destaca fragilidades dessas concepções. “Enquanto o PT em seu documento fez uma autocrítica das políticas fiscais que adotou quando era governo, especialmente em relação às metas de primário, Ciro Gomes se compromete a recuperar o pior pilar do tripé macroeconômico utilizado pelo PT: o superávit primário como um fim”, resume.
David Deccache (Foto: Arquivo pessoal)
David Deccache é doutorando em Economia pela Universidade de Brasília - UnB, mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense - UFF, diretor do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento - IFFD e, atualmente, exerce o cargo de assessor econômico do PSOL na Câmara dos Deputados. É coautor do livro Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas (Rio de Janeiro: Nova Civilização, 2020).
IHU – Como o senhor analisa a conjuntura econômica que estamos vivendo no Brasil de hoje?
David Deccache – Antes de tudo, é importante destacar que a população brasileira se deparou com a pandemia em um momento em que já vivia uma crise prolongada conjugada com extrema e crescente vulnerabilidade social, consequência direta das políticas de austeridade fiscal iniciadas em 2015 e aprofundadas sobremaneira após o golpe de 2016. Esta agenda de ataques provocou rápida e intensa elevação nas taxas de desemprego; precarização generalizada no mundo do trabalho; contração dos gastos públicos destinados à manutenção de serviços essenciais como saúde pública; e enfraquecimento dos mecanismos de proteção trabalhista e da seguridade social.
O mais angustiante é que este cenário tão desafiador coincidiu com o mandato de um governo federal que combina postura anticientífica, desprezo à vida e ao sofrimento do povo, adesão a uma ideologia anacrônica de Estado mínimo e aversão à democracia. Esta infeliz confluência de fatores levou o Brasil a registrar números de mortes e contaminações por Covid-19 muito mais altos do que o esperado para o tamanho da nossa população e a quantidade relativa de idosos no país. Com apenas 2,7% da população mundial, registramos aproximadamente 30% das mortes pela doença no planeta.
Os fatores mencionados tendem a ampliar as nossas já perversas e históricas desigualdades ao afetar de forma muito mais dura a população mais pobre e setores marginalizados. As mulheres, a população negra e os integrantes de grupos étnicos minoritários são os que mais sofrem ao passo que o número de bilionários continua a crescer. Aliás, o nível de maldade e oportunismo deste governo – diga-se de passagem apoiado pela grande mídia e Centrão nas pautas econômicas – é tão grande que estão aproveitando o profundo sofrimento do povo para avançarem com as privatizações de bens e serviços públicos, ataques aos direitos trabalhistas e retrocessos ambientais de toda a ordem sem maior resistência.
Com isso, as previsões para os próximos meses são desalentadoras e desafiadoras, o que exige forte mobilização popular para dar um basta aos retrocessos desde já. Não dá para ficarmos sentados esperando 2023. O sofrimento do povo é intenso e intolerável ao passo que os riscos de ruptura institucional são cada vez mais altos.
IHU – Qual deve ser o papel do Estado na atualidade, em que somos atravessados pela experiência da pandemia?
David Deccache – É muito importante destacar que apesar de as políticas econômicas extraordinárias conduzidas pelo Congresso (por imposição da pressão popular e apesar do governo federal) terem evitado um verdadeiro caos social, os danos da combinação de pandemia com a agenda de austeridade e destruição de direitos serão permanentes, especialmente em termos de precarização do mercado de trabalho, depreciação da nossa infraestrutura física e social e ampliação das desigualdades interseccionais. Também, ainda com a pandemia em curso, o governo Bolsonaro – na contramão do mundo – busca aprofundar as políticas de austeridade fiscal e de desmonte de direitos.
Este contexto impõe a discussão de um novo papel para o Estado, que dê centralidade à reconstrução e ampliação da nossa infraestrutura física e social deteriorada por anos de políticas de austeridade fiscal; que garanta o pleno emprego dos fatores de produção; que combata as múltiplas desigualdades com políticas diretas de transferência de renda e invista pesado em capacitação tecnológica para a superação dos desafios ambientais crescentes, buscando o caminho da necessária transição energética. O cerne de um projeto de desenvolvimento deve ser a inclusão social e superação dos desafios ambientais.
Tudo isso que eu disse é muito bonito de falar e fácil de se colocar no papel, contudo os desafios políticos para concretizar essas coisas são enormes e envolve muita luta de classes. Não podemos esperar que a mesma burguesia que lidera a destruição, em um surto de altruísmo, faça as concessões necessárias para a reconstrução do papel do Estado. É fundamental a construção de outro projeto de poder cujo princípio seja a radicalização da democracia e da participação popular na busca de outro modelo de sociedade e de Estado.
IHU – Que caminhos a Teoria Monetária Moderna - TMM pode nos apontar nesse mundo pandêmico e de um Brasil mergulhado em estados de crises?
David Deccache – Para alcançar os objetivos mencionados na resposta anterior, temos que superar as teorias econômicas convencionais que colocam o equilíbrio fiscal acima da plena utilização da capacidade produtiva da economia. Abordagens teóricas alternativas que combinem maior aderência à realidade e capacidade operacional para a superação dos dogmas que causaram a crise atual se tornam urgentes. Épocas como a que vivemos são únicas para a emergência de novas ideias.
Neste aspecto, a contribuição central da Teoria Monetária Moderna é revelar que um governo monetariamente soberano nunca pode ir à falência ou ser incapaz de pagar suas obrigações, desde que elas estejam denominadas na moeda que ele emite. Sendo assim, os limites para os gastos públicos do emissor de moeda estão dados pela disponibilidade de bens e serviços à venda em moeda soberana. Como o ano de 2020 revelou, se qualquer obrigação financeira é devida em Reais, o governo brasileiro sempre tem os meios financeiros para pagá-la. É necessária apenas a autorização do Congresso para que o Tesouro e o Banco Central façam as operações necessárias. Por fim, a Teoria Monetária descreve que é o emissor de moeda que determina a taxa de juros básica da economia, e não o mercado. Além disso, a TMM esclarece que este mesmo emissor, caso deseje, também pode determinar as taxas de juros da dívida de longo prazo.
Estas lições, apesar de muito simples, são fundamentais para repensarmos o papel do Estado na mobilização dos recursos produtivos disponíveis em moeda doméstica visando ao atendimento das necessidades sociais, econômicas e ambientais crescentes. Manter uma enorme parcela da nossa população desempregada e da nossa capacidade produtiva e tecnológica ociosa por conta de dogmas fiscais é um desperdício irresponsável e incompatível com os desafios do nosso tempo.
IHU – Muitos analistas apontam que um dos problemas atuais é que não temos um projeto de Brasil. Mas de que projeto de Brasil precisamos? E como viabilizar esse projeto?
David Deccache – Antes de expor os eixos mínimos que considero fundamentais para um projeto de Brasil, reforço novamente que essa construção exige um novo plano de poder assentado na radicalização da democracia e criação de instrumentos de mobilização e participação popular. Sem ampla aceitabilidade social e pressão das ruas, um programa do tipo certamente será sabotado pela burguesia dirigente apoiada pelo Centrão. Além disso, como pré-requisito operacional dos eixos que vou mencionar é imprescindível a revogação do atual arcabouço fiscal que impõe uma série de amarras para os gastos públicos. Dentre as regras que devem ser abandonadas, destaco o teto de gastos, as metas de primário e a regra de ouro.
O primeiro e mais emergencial pilar é o combate à fome e à miséria que estão castigando o povo. Para tal, é necessário garantir a retomada de renda e emprego das famílias. Inicialmente, temos que ampliar os mecanismos de transferência direta de renda, como a elevação dos valores e alargamento dos critérios de elegibilidade do Programa Bolsa Família, bem como reforçar o benefício de prestação continuada, que sofre com grandes filas. Além disso, mecanismos de transferência indireta de renda, via ampliação e melhoria no fornecimento de serviços públicos, como saúde, educação e transportes urbanos, são centrais para alargar a renda disponível dos mais pobres.
Ainda neste primeiro pilar, necessitamos da recuperação das carteiras de investimentos públicos já formatadas e abandonadas nos últimos anos de hegemonia da austeridade fiscal, principalmente as que tenham ênfase em mobilidade urbana, moradia, saneamento básico e energias renováveis. Contudo, isso ainda não será suficiente, pois parcela relevante da população não será absorvida pela retomada dos investimentos públicos, tornando-se necessária também a elaboração de um programa de garantia de emprego para todos aqueles que estejam aptos e dispostos a trabalhar por um salário preestabelecido. Esse tipo de programa, além de ampliar a oferta de bens e serviços fundamentais, seria um importante estabilizador econômico e social automático.
O segundo pilar é o reforço do papel dos bancos públicos na concessão do crédito para novos investimentos, inclusive para ampliarmos e sofisticarmos a capacidade de oferta da economia visando ao atendimento da demanda criada pelos mecanismos de transferência de renda e pela geração de emprego.
Em terceiro lugar, destaco que, ao contrário da dívida pública interna, o endividamento privado é um grande problema econômico e tende a crescer de forma significativa em tempos de crise; portanto, é fundamental a elaboração de programas de anistia e/ou renegociação de dívida das famílias e pequenas empresas. O programa também poderia ser estendido às empresas maiores, contudo, com as devidas exigências de contrapartidas econômicas, sociais e ambientais.
O quarto pilar é a revisão da dívida dos entes subnacionais que, diferente da União, são usuários de moeda e estão sendo fortemente atingidos pela queda de receita. Aliás, a política fiscal de austeridade fiscal do governo federal desacelerou a economia e derrubou a arrecadação dos estados e municípios nos últimos anos, sendo responsável direta pelo momento crítico que eles vivem. Os entes subnacionais prestam a maior parte dos serviços públicos para a população, portanto não faz sentido que a oferta de bens e serviços executada por eles seja constrangida por dívidas acumuladas com a União, que possui ampla capacidade fiscal de absorvê-las.
Em quinto, e agora avançando para um pilar mais estrutural, gostaria de reafirmar que é fundamental o apoio financeiro e técnico do Estado para as empresas com potencial inovativo visando à sofisticação da estrutura produtiva. São setores importantes para a redução estrutural da vulnerabilidade externa, geração de bons empregos e recomposição das nossas cadeias produtivas.
O desenvolvimento produtivo e tecnológico é pilar fundamental para acomodar as transformações sociais pretendidas. Tais políticas devem ser norteadas para assimilação de tecnologias de ponta com aplicação no provimento de uma infraestrutura social de bens e serviços públicos de maior qualidade e tecnologicamente avançados. A intencionalidade é conjugar a política industrial direcionada para a resolução das nossas carências históricas com as vantagens de termos um enorme mercado interno com grande potencial para ser um imã de indução de inovações. Em resumo não exaustivo, as áreas prioritárias para as inovações seriam: mobilidade urbana; saneamento básico e recursos hídricos; sistema de saúde; desenvolvimento de tecnologias aplicadas aos desafios regionais heterogêneos; e a urgente transição ecológica.
O sexto pilar tem relação com a dinâmica do novo mundo do trabalho forjado nos últimos anos não só pelas inovações tecnológicas (muitas delas em prol da gestão da precarização do trabalho) mas, também, pelas políticas de austeridade fiscal combinadas com uma sucessão de reformas trabalhistas. Devemos avançar na criação de mecanismos de seguridade social adaptados à realidade dos trabalhadores informais, bem como na realização de uma contrarreforma da previdência.
Por fim, mas não menos importante, destaco a elaboração de uma reforma tributária que redistribua a carga de tributos de forma socialmente justa e economicamente eficiente, ampliando a taxação de altas rendas e do patrimônio e reduzindo os impostos indiretos que, por sua vez, prejudicam, proporcionalmente, os mais pobres, que são, justamente, os que possuem maior propensão a consumir. Também é desejável a busca por redução da carga tributária sobre a produção – desde que compensada com elevação da carga sobre os mais ricos – especialmente os sócios e acionistas de empresas que hoje recebem lucros e dividendos isentos de Imposto de Renda de Pessoa Física - IRPF.
IHU – Nessa mesma linha, Ciro Gomes tem apostado numa ideia de projeto nacional. Como analisa essa ideia?
David Deccache – Em primeiro lugar, gostaria de destacar o mérito de Ciro Gomes em tentar popularizar o debate econômico. Este trabalho de divulgação e popularização de um tema tão complexo e essencial é fundamental e deveria ser mais explorado por outros quadros da esquerda. Ciro é um excelente divulgador.
O programa do Ciro Gomes, apresentado em 2018 de forma menos elaborada e demasiadamente sintética, foi detalhado no seu mais recente livro [Projeto Nacional: o dever da esperança (São Paulo: Leya, 2020)], que eu dividiria, no que tange à parte econômica, em duas grandes partes: a primeira contém propostas macroeconômicas para o curto prazo e a segunda enumera reformas estruturais mirando o longo prazo.
Livro de Ciro Gomes, publicado em 2020 | Foto: Divulgação
No que tange aos objetivos de longo prazo, trata-se da defesa da direção do Estado no projetamento da sofisticação da estrutura produtiva via industrialização. Repete-se o argumento clássico de que a industrialização é condição necessária à superação da pobreza e do subdesenvolvimento, bem como de que não há meios de alcançá-la via forças espontâneas de mercado. Aqui não há maiores polêmicas ou inovações propositivas, já que se trata de ponto praticamente pacífico nas mais diversas escolas desenvolvimentistas desde os anos 1950. Algo completamente absorvido nos conteúdos programáticos dos partidos de fato progressistas de diversas matrizes.
As grandes diferenças, no geral, aparecem nas políticas macroeconômicas de curto prazo visando ao objetivo geral da industrialização. E é aqui que reside uma série de equívocos teóricos e imprecisões técnicas no arcabouço macroeconômico do Projeto Nacional do Ciro.
Ciro Gomes adota, tanto no livro quanto no seu último programa oficial de governo, um arcabouço macroeconômico pré-keynesiano, ou seja, anterior à década de 1930, inclusive defendendo um dos pilares mais desastrosos do tripé macroeconômico, que são as metas de resultado primário. Basicamente, defende a visão anacrônica de poupança prévia, no qual para que haja investimento é necessário garantir previamente a poupança correspondente. Além do que, parece também adotar alguma versão da teoria dos fundos emprestáveis, no qual a elevação de poupança conduziria à redução das taxas de juros e essa a maiores investimentos.
Contudo, desde os anos 1930 por intermédio das contribuições de economistas como Keynes e Kalecki, sabemos que a poupança, ao invés de se constituir como pré-requisito do investimento, seria seu resultado. O motivo para isso é simples: numa economia monetária, a decisão de investir depende de financiamento, isto é, acesso a meios de pagamento e não de poupança prévia. Com isso a produção de bens de investimento é concretizada como reação a uma demanda por estes tipos de bens, bastando que o sistema financeiro seja capaz de colocar nas mãos dos investidores os meios de compra necessários para que os projetos possam ser encomendados. No arcabouço keynesiano, o aumento do investimento planejado induz ao crescimento do nível de emprego e de renda e, ao final do processo, a poupança agregada terá aumentado na mesma magnitude.
No caso do Estado, emissor de sua própria moeda, a centralidade na poupança prévia é ainda mais nonsense, já que nas economias monetárias modernas o ente monetariamente soberano emite moeda toda vez que realiza um gasto e apenas ex post esta expansão se converte em uma combinação de emissão de títulos públicos, tributação e o resíduo registrado como variação da base monetária, ou seja, é totalmente dispensável algum tipo de poupança prévia – leia-se superávits fiscais acumulados – para a realização de gastos. Destaco também que a taxa básica de juros da economia é determinada pelo Estado de acordo com seus objetivos macroeconômicos, e nada tem a ver com o tamanho de poupança prévia como Ciro parece acreditar.
Aliás, se ele espera que a produção de superávits primários irá reduzir as taxas de juros e dessa forma atacará o rentismo, está muito enganado, e não só teoricamente. As políticas de austeridade fiscal, no geral, servem justamente aos interesses do sistema financeiro – ao contrário de combatê-lo. A austeridade, por um lado, amplia o desemprego e reduz salários e, de outro, destrói os serviços públicos e obriga as famílias, cada vez mais pobres, a recorrerem a um processo de endividamento crescente junto ao sistema financeiro para satisfazerem as suas necessidades básicas como saúde, educação e moradia. Neste processo, o setor financeiro se apropria de uma parcela cada vez maior da renda das famílias, logo do excedente socialmente produzido pela classe trabalhadora.
Inicialmente, pode parecer que meus comentários são demasiadamente acadêmicos e sem relevância prática. Grande engano. Na sequência da argumentação da necessidade de poupança prévia, Ciro avança para propostas perigosas (e, diga-se de passagem, tecnicamente mal elaboradas) para alcançar a tal poupança pública.
O primeiro pilar do projeto macroeconômico apresentado por Ciro Gomes em 2018 é retomar o pior pilar do tripé macroeconômico, que são as metas de resultado primário. Aliás, Ciro, em 2018, prometeu superávits em dois anos, tal como Geraldo Alckmin, candidato do PSDB. O pilar dos superávits seria alcançado, segundo ele, pela combinação de uma reforma na previdência, redução das desonerações e reforma tributária.
Sobre a previdência, ele propôs um sistema similar ao defendido pelo Banco Mundial nos anos 1990, auge do neoliberalismo, assentado em três pilares: assistencial, de repartição e capitalização. Sem entrar no mérito contraproducente da proposta de capitalização, há uma aberração argumentativa aqui: a imposição de um sistema capitalizado implica em elevado custo de transição que amplia o déficit fiscal, ao invés de reduzi-lo.
Explico. Hoje no nosso sistema de repartição quem está na ativa contribui, contabilmente, para quem já se aposentou. No regime de capitalização (mesmo que parcial) o trabalhador passará a contribuir para sua própria poupança, o que gera um custo contábil porque os contribuintes do novo sistema deixam de recolher para o antigo. Logo, justificar a alteração do sistema como forma de alcançar o superávit primário é um equívoco técnico grave, que mais parece uma narrativa para justificar a reforma. No fundo, os defensores do regime de capitalização esperam que um maior nível de poupança reduza os juros e amplie os investimentos.
Já a reforma tributária proposta por Ciro perde fôlego ao ser destinada à produção de superávit primário. Percebam que os ganhos fiscais sobre os mais ricos que poderiam ser convertidos em elevação dos gastos sociais ou redução dos pesados impostos sobre os mais pobres acabam direcionados a uma inútil tentativa de gerar poupança pública.
O pilar do tripé que Ciro Gomes tem orgulho em defender, as metas de primário, pode acarretar sérios constrangimentos durante a execução orçamentária. Isso porque a Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF determina que as Leis de Diretrizes Orçamentárias - LDOs sejam acompanhadas de metas fiscais e exigem limitações de empenho caso ocorra a possibilidade de descumprimento. Portanto, se por alguma razão o governo projetar frustração no cenário de receitas e/ou despesas, deve ajustar sua programação para adequar a política fiscal ao cumprimento do resultado primário. Esse mecanismo tem um caráter fortemente pró-cíclico: quedas na receita, geralmente, são consequências de desaceleração econômica, sintoma de menor renda disponível no setor privado. Assim, é justamente no momento que o governo deveria elevar os seus gastos para compensar a desaceleração do setor privado que o regime de metas impõe o contingenciamento de gastos, reforçando o ciclo recessivo.
Com uma política macroeconômica de curto prazo fora de lugar, não há caminho possível para o desenvolvimento no longo prazo. Inclusive, o que é o longo prazo senão uma sucessão de prazos curtos?
IHU – Quais foram as marcas e maiores legados da política econômica dos governos petistas? E quais as fragilidades dessa política?
David Deccache – Eu gosto de dividir os governos petistas em três grandes momentos. Um primeiro entre 2006-2010, no qual a ampliação dos gastos foi puxada pelo governo, que passou a estimular diretamente a demanda agregada diante de um cenário externo muito favorável. Fizeram isso por intermédio de aumentos substanciais dos gastos públicos (especialmente transferências sociais), estímulos ao crédito para o consumo e construção civil e política de valorização do salário mínimo. Com o país crescendo, as receitas subiam fortemente, neutralizando os potenciais constrangimentos dados pela adoção de metas de primário.
O segundo período, especificamente o governo Dilma I, marcou o início da desaceleração do crescimento da demanda efetiva com deliberada alteração de rota na política econômica. O governo Dilma I abandonou o padrão anterior de estímulos diretos à demanda agregada doméstica e expansão do mercado interno. Pior: isso num contexto em que as exportações já estavam desacelerando. Como direção, passou a buscar estímulos para os investimentos privados pelo lado da oferta. Tentou incentivar o investimento privado com desonerações fiscais e redução de tarifas públicas para aumentar a margem de lucros das empresas. Também avançou nas concessões privadas de serviços públicos e parcerias público-privadas para o investimento em infraestrutura.
No que tange às exportações, tentou puxá-las com desvalorização cambial, o que aprofundou as pressões inflacionárias e acirrou o conflito distributivo. Como resultado dessa mudança na direção da política econômica somada a um contexto de menor expansão da economia mundial, o crescimento desacelerou significativamente e as receitas caíram, o que deteriorou os indicadores fiscais convencionais e abriu caminho para a narrativa da direita de que reformas liberalizantes profundas eram necessárias.
O terceiro período é caracterizado como um cavalo de pau na política econômica e adoção de políticas neoliberais radicais com o banqueiro Joaquim Levy à frente do Ministério da Fazenda. Nos períodos mencionados anteriormente, o aumento dos salários reais acima do crescimento da produtividade afetou os lucros dos empresários e passou a gerar forte descontentamento nos meios empresariais, que passaram a defender políticas de dura austeridade fiscal para a geração de desemprego visando enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores e rebaixar salários reais. Essas demandas empresariais foram prontamente atendidas pelo governo Dilma II, diga-se de passagem. Porém, a burguesia queria muito mais que o PT poderia dar e avançou para um golpe que aprofundou sobremaneira a destruição iniciada em 2015.
Sintetizando, como legados positivos, eu diria que os governos PT, especialmente o governo Lula, fizeram uma reforma estrutural pouco falada: a redução da vulnerabilidade externa do Brasil ao ‘desdolarizar’ o passivo externo, acumular reservas internacionais e desatrelar a dívida interna do câmbio. Pela primeira vez na nossa história passamos por duas crises globais profundas (2008 e 2020) sem nos aproximarmos de clássicas crises de balanço de pagamentos e restrições externas severas. Também tivemos substancial elevação da taxa de salários e recuperação dos investimentos de empresas estatais e recuperação dos investimentos do governo com o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC e o Programa Minha Casa Minha Vida.
Como limite crítico, diria que sem uma política industrial robusta (mesmo que a política industrial estivesse presente nos programas de governo) a indústria até cresceu em termos absolutos, mas sem avanço nos setores e atividades de maior conteúdo tecnológico, mantendo a sua baixa diversidade. Outro limite forte foi a insuficiente expansão na provisão de bens e serviços coletivos de transporte, saúde e educação. A provisão destes bens pelo setor privado absorveu parcela crescente do gasto das famílias, aumentando excessivamente o custo de vida da maioria dos assalariados e excluindo parcela substancial da população. A despeito de sua expansão, os serviços públicos não acompanharam a crescente demanda da população gerada pelas outras políticas.
Por fim, gostaria de destacar que a manutenção de uma carga tributária extremamente regressiva foi uma oportunidade perdida, gerou um alto custo social e econômico para a população.
IHU – Como o senhor avalia o Plano de Recuperação e Transformação do Brasil, concebido pelo PT?
David Deccache – Acho um bom programa do ponto de vista econômico e teórico, porém tenho sérias dúvidas sobre a viabilidade de aplicação política da maior parte das propostas mencionadas por intermédio de um arranjo de conciliação horizontal com as classes dirigentes.
O programa coloca a distribuição da renda, erradicação da pobreza, expansão de serviços públicos, ampliação dos investimentos estatais e sofisticação estrutural como eixos fundantes. Um programa com o clássico arranjo de desenvolvimento via mercado interno e inclusão social, sem abandonar a necessidade de diversificação da pauta exportadora. Como mérito, assim como no programa do Ciro e demais partidos de esquerda, destaco a ênfase na promoção de um novo pacto verde como um dos motores da sofisticação estrutural.
Dois pontos merecem destaque no programa do PT. O primeiro é a autocrítica em relação às regras fiscais vigentes, algumas que o próprio adotou efusivamente quando estava no poder. No programa, mencionam que as regras fiscais austericidas constantes na Lei de Responsabilidade Fiscal, no teto de gastos e na regra de ouro devem ser revistas e revogadas. Também mencionam, explicitamente, que o aumento da dívida pública, com a emissão de moeda, não é impeditivo para um país como o Brasil. O segundo destaque é a ênfase em uma reestruturação progressiva da carga tributária, algo que consta em todos os programas dos partidos de esquerda, mas que o PT também não realizou quando teve a oportunidade e correlação de forças favorável.
IHU – O que as propostas de política econômica do PT de Lula e da autoenunciada terceira via de Ciro Gomes têm em comum e no que divergem?
David Deccache – No curto prazo, ambas as propostas convergem em termos da necessidade de uma reforma tributária; sobre a relevância dos bancos públicos; expansão dos investimentos estatais; e na necessidade de políticas de transferência de renda e geração de empregos. No longo prazo, os objetivos também são os mesmos: sofisticação estrutural da economia, com forte ênfase na transição verde.
Agora vamos às diferenças na política macroeconômica. Enquanto o PT em seu documento fez uma autocrítica das políticas fiscais que adotou quando era governo, especialmente em relação às metas de primário, Ciro Gomes se compromete a recuperar o pior pilar do tripé macroeconômico utilizado pelo PT: o superávit primário como um fim. Isso revela concepções macroeconômicas distintas em ambos os programas: enquanto o plano petista adota uma macroeconomia keynesiana assentada no princípio da demanda efetiva, Ciro Gomes parte de uma abordagem neoclássica (arcabouço, inclusive, compartilhado com os neoliberais) de determinação do investimento pela poupança conjugada com a ideia de fundos emprestáveis na determinação das taxas de juros. Como já disse nesta entrevista, com políticas econômicas de curto prazo fora de lugar, não se pode esperar muito de mudanças a longo prazo.
Já as propostas de desenvolvimento, ao meu ver, colocam em confronto duas escolas desenvolvimentistas atuais. O programa do PT adota uma abordagem muito próxima ao social-desenvolvimentismo; já Ciro e o PDT, algo semelhante ao chamado novo-desenvolvimentismo. Antes de descrevê-las, é importante mencionar que ambas visam à industrialização com a direção estatal.
De maneira muito resumida, no social-desenvolvimentismo, encabeçado por economistas como Ricardo Bielschowsky, há forte ênfase no estímulo via demanda interna, sendo a prioridade o consumo de massa e o investimento doméstico como motores para a indústria. A estratégia não afasta a necessidade de diversificação das exportações – que poderia ser puxada por pesados investimentos estatais em ciência e tecnologia; créditos direcionados e estímulos à indústria de ponta que competem via tecnologia no cenário internacional e não via esmagamento de salários. Essa estratégia está muito assentada no perfil do nosso amplo mercado interno.
Já o novo-desenvolvimentismo tem foco na demanda externa, em certo sentido em detrimento da demanda interna. Como elemento central está a busca por uma taxa de câmbio mais desvalorizada visando eliminar a chamada “doença holandesa”. É importante mencionar que a desvalorização do câmbio, proposta no novo-desenvolvimentismo, implica e tem como objetivo a redução salarial dos trabalhadores no curto prazo (eles esperam que no longo prazo, com a possível industrialização pretendida, os salários possam subir).
Essa redução salarial, ao meu ver, piora a inserção do trabalhador na relação capital-trabalho e reduz o consumo de massas, que é um importante motor do investimento e da produção na economia brasileira, além, é claro, de redutor das desigualdades. Vale mencionarmos que estamos há quase uma década desvalorizando a taxa de câmbio e empobrecendo relativamente a classe trabalhadora sem os impactos que alguns esperam para a indústria. Por fim, o sarrafo mais alto imposto ao mundo pela China nas últimas décadas, seja nas indústrias intensivas em mão de obra, seja nas atividades de maior sofisticação tecnológica, impõe estratégias que vão muito além das políticas cambiais, tarifárias e de rebaixamento de salários.
IHU – O que não pode ser desconsiderado para uma proposta de política econômica para o Brasil a partir de 2022?
David Deccache – O primeiro passo é desamarrar a política fiscal e destravar as políticas de transferência de renda e as carteiras de investimentos públicos. Isso é fundamental para gerar emprego e renda de forma a combater a fome e a miséria crescentes. Sem revogação do atual arcabouço fiscal, nada disso será possível.
Em relação ao debate estrutural, temos que dar ênfase a um projeto de transformação produtiva, com foco na superação dos desafios ambientais e resolução das nossas enormes carências físicas e sociais. Por fim, temos que construir, desde já, correlação de forças para a viabilização de um outro projeto de poder baseado na radicalização da democracia e plena participação popular. Não dá para dobrar a aposta na conciliação com as classes dirigentes se almejamos mudanças profundas.