Para o professor, é preciso defender a democracia representativa e ir além
O governo de Jair Bolsonaro não parece ter assimilado que é governo e vive como se estivesse constantemente num processo de campanhas eleitorais em que se move através da promoção de guerras culturais, na caça ao inimigo. É nessa linha que o professor Giuseppe Cocco avalia que “Bolsonaro sempre foi isso sociologicamente, agora ele é mesmo a expressão política das facções dessa guerra que bloqueia a democracia brasileira”. E mais, a resiliência de Bolsonaro na opinião pública está atrelada à base dura do bolsonarismo, uma camada social que de fato sempre pactuou com essas lógicas defendidas pelo presidente e nunca foi majoritária. “Não devemos cair no efeito de ilusão ótica da aparente resiliência de Bolsonaro. Seu núcleo duro é o fascismo (ou neoescravagismo) social (esse que a gente viu no episódio do menino que morreu em Recife, por exemplo)”, observa. E acrescenta: “o fascismo social brasileiro sempre esteve presente. A novidade é que agora ele tem uma cara ideológica, não vota mais PMDB ou em um partido do Centrão”, observa.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, além de analisar os efeitos políticos da pandemia sobre o governo Bolsonaro, Cocco também observa como, para além desse núcleo duro fascista, muitas alianças têm rompido o apoio ao presidente. É, por exemplo, a chamada centro-direita. “Essa movimentação de setores da direita contra o bolsonarismo não tem um ‘centro’ e participa de um movimento mais geral de convergência, em defesa da democracia, que vem da tomada de consciência da violência das intimidações bolsonaristas e de como a ‘ala militar’ deixou que isso se afirmasse”, explica.
Além disso, enquanto muitos se dizem surpresos com críticas ao governo de setores que representam o capital, Cocco chama atenção de que “os setores mais importantes do capitalismo hoje defendem a democracia”. “Nessa crise, os liberais defendem com força a democracia representativa. A questão é que esta precisa encontrar a força para resistir às ameaças que vêm do populismo de direita (eu prefiro falar de nova forma de fascismo)”, salienta. E provoca: “a dificuldade está no fato de que nós precisamos defender a democracia representativa e ao mesmo tempo ir além dela (e não aquém)”.
Giuseppe Cocco (Foto: Acervo IHU)
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Publicou, entre outros livros, New Neoliberalism and the Other. Biopower, antropophagy and living Money (Lanham: Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava. O último livro que publicou é Entre Cinismo e Fascismo (Autografia: Rio de Janeiro, 2019).
IHU On-Line – Qual sua análise sobre o modo como Bolsonaro está governando? Quais são os traços centrais do seu modo de fazer política?
Giuseppe Cocco – Há uma impressão bastante difusa de que Bolsonaro não está governando. Mas, podemos até pensar que o projeto é este mesmo: fragmentador e destruidor. Ele continua nas eleições. Nunca deixou de alimentar o eixo fundamental de seu sucesso eleitoral: as guerras culturais. Oras, mesmo que por enquanto sejam culturais, não deixam de ser guerras e as gesticulações dos últimos meses vão nesse sentido. Pior, sabemos que o Brasil não precisa de guerra, pois já tem. Bolsonaro sempre foi isso sociologicamente, agora ele é mesmo a expressão política das facções dessa guerra que bloqueia a democracia brasileira. Ele está mostrando que está apostando no aumento geral da violência e isso numa situação em que ela já está em um nível insustentável: liberação de venda de armas, munições sem rastreamento. Até a já incrível violência no trânsito ele quer aumentar. Ele aumenta a violência e quer que vigore a indiferença diante das vítimas, inclusive com as dezenas de milhares de mortos pela covid que sua gestão está determinando: na semana de publicação dessa entrevista chegaremos a 70.000 mortos e vamos “triplicar a meta” (só contando a notificação oficial e esperando que as medidas de Estados e Municípios reduzam o massacre que o Planalto planifica). Na França e na Itália (que decretaram lockdowns rígidos), já tem procedimentos judiciários em andamento e envolvem aqueles governos: o que deveria ou deverá acontecer aqui onde até o ministério da Saúde foi desestruturado?
Até a pandemia, havia um equilíbrio precário entre esse projeto mortífero e a agenda neoliberal de [Paulo] Guedes [ministro da Economia]. O dispositivo de legitimação do governo era duplamente alimentado pela herança lulista: indiretamente, havia a contínua renovação da polarização com Lula e o PT (a decisão sobre prisão em segunda instância, a ‘vaza jato’, com The Intercept etc.); diretamente, havia a atualização da agenda de reformas neoliberais definida no âmbito do governo Dilma e que tem por nome “ponte para o futuro”. Com a chegada da pandemia, esse equilíbrio foi para o espaço. Não apenas Bolsonaro parou de fazer o pouco que fazia antes, mas a equipe econômica ficou totalmente perdida, incapaz de integrar a mudança de paradigma que essa crise de dimensões bíblicas impõe: ainda pensa em “ajustar” um mundo que já não existe.
No meio disso, Bolsonaro passou a sabotar o que, apesar dele, alguns de seus ministros faziam, em particular [Luiz Henrique] Mandetta na Saúde. Assim, Mandetta virou um problema não somente porque ele negava o negacionismo bolsonarista (“é uma gripezinha”), mas porque muito simplesmente não cabe nessa forma de fascismo nenhuma defesa da vida como direito. Esse governo é um governo da morte e em nome da morte e não por acaso seus poucos apoiadores faziam a dança do caixão na Avenida Paulista, em frente à Fiesp, que pelo visto não tem medo de se manchar com esse tipo de performances hediondas.
Recentemente, o ministro da Secretaria de Governo, general da ativa [Luiz Augusto Ramos], fez uma declaração emblemática do clima de intimidação instaurado por Bolsonaro: excluindo a possibilidade de intervenção militar, disse que o “outro lado não pode esticar a corda”. O fato é que a corda já arrebentou, inclusive em função desse tipo de chantagens. Há uma deriva autoritária, algo de tipo venezuelano, desse governo que ficou escancarada diante dos olhos de todo o mundo.
Diante dessas evidências, temos alguns desdobramentos em direções opostas: o governo perdeu alguns de seus pilares técnicos, o ministro Moro abandonou o barco e o fez tentando reverter o colossal erro político de ter participado dessa empreitada autoritária, ou seja, criando os maiores prejuízos políticos e até judiciários ao governo. A saída do Mandetta tem a mesmíssima dimensão: embora a legitimidade dele tenha se constituído já dentro da pandemia, o ex-ministro da Saúde saiu indicando claramente – como no caso do Moro – que um trabalho “bem feito” não cabia (e não cabe) no âmbito do governo Bolsonaro: sequer o [Nelson] Teich [o segundo ministro da Saúde], que tinha topado legitimar a saída do Mandetta e é orgânico ao bolsonarismo, não aguentou o tranco da opção mortífera do presidente.
A segunda direção é a desmoralização da dita “ala militar”. Mais de três meses de crise política sobreposta à aguda crise sanitária tem mostrado que os milhares de militares que ocupam o governo federal não apenas não são vetor de nenhuma racionalidade, mas que eles defendem esse governo mortífero como sendo deles: a intervenção militar no Ministério da Saúde é o auge dessa deriva.
Mesmo a saída do ministro – que faz parte da tentativa atual de “moderar o tom” – não conseguirá resolver muita coisa. O episódio do [Carlos] Decotelli [que chegou a ser anunciado ministro da Educação, mas sequer tomou posse] mostra a dificuldade que o governo tem de encontrar alguma figura competente que lhe permita dar conteúdo a essa mudança de “forma”. Bolsonaro explicou muito bem na reunião do 22 de abril que ele não tolerará nunca um ministro bem-sucedido em sua gestão.
IHU On-Line – Depois da prisão de Fabrício Queiroz, como Jair Bolsonaro deve se manter – e se mover – politicamente? Haverá um aumento dessa perspectiva “Jair paz e amor”, que alguns analistas apontam?
Giuseppe Cocco – Parece que ele ligou o “modo paz e amor”, como fez o Lula em 2005. A captura do Queiroz é parte das más notícias que ele tinha previsto e explica talvez parte do comportamento. Agora, a modalidade (pelo MP do Rio) e lugar da prisão (na casa do advogado do clã que frequentava ostensivamente o Planalto) talvez tenham fugido a seus esforços de redução dos danos. O que já em si teria sido um desgaste, ficou um desastre: ninguém pode se fingir de estúpido e continuar ignorando a promiscuidade entre o clã e as redes milicianas do Rio de Janeiro.
Não acho que haja nenhum recuo e ainda menos nenhuma transformação que não sejam ensaios táticos de tomar tempo ou até de procurar acordos de cúpula: mas a essência é a mesma. Não deve haver nenhuma ilusão: alguém que no meio de uma pandemia de proporções históricas, com dezenas de milhares de mortos, centenas de milhares de doentes, esvazia o Ministério da Saúde e tenta resolver pela manipulação dos dados, penso que não seja digno de qualquer tipo de confiança.
Do mesmo modo que não há transformação possível de Bolsonaro, seria um erro grave que atores institucionais que hoje estão na linha de frente de defesa da democracia achem que seria o momento para estabelecer algum compromisso. Excluindo aqui o debate sobre o fato de que a aplicação da lei não deveria fazer parte de acordo nenhum, em termos políticos seria muito errado. Do mesmo jeito que quando Lula conseguiu dar a volta por cima do mensalão, essa prática passou a ser industrializada (com consequências nefastas para a economia e ainda piores para a esquerda e o país). Se Bolsonaro e o partido invisível (que é um partido militarista) que o sustenta derem a volta por cima, eles avançarão ainda mais para cima da democracia. A “venezuelização” do Brasil (que significaria o caos, ou seja, a destruição do país, por meio de sua fragmentação sem fim, de tipo corporativo-miliciana) é uma possibilidade concreta que todo o mundo tem que ter bem presente: na Venezuela, o que sobra é ir embora, emigrar.
IHU On-Line – Como o senhor analisa as recentes pesquisas de avaliação do governo Bolsonaro?
Giuseppe Cocco – Penso que a resiliência de Bolsonaro não é consistente. Por um lado, temos seu núcleo duro e esse é composto pelo fascismo social e o evangelismo. O fascismo (ou neoescravagismo) social é esse que a gente viu no episódio do menino que morreu em Recife, é aquele que diz: “está com pena? Leve pra casa!”. O fascismo social brasileiro sempre esteve presente. A novidade é que agora ele tem uma cara ideológica, não vota mais PMDB ou em um partido do Centrão.
Setores importantes dos evangélicos transformam a fé em política e produzem altos níveis de irracionalidade. Mas o apoio da hierarquia evangélica precisa ser alimentado pelas fake news e tem um custo alto. Até quando a cloroquina milagrosa conseguirá juntar a fé em Cristo e a dança do caixão dos bolsonaristas?
Pelo outro, o que o salva até agora é – paradoxalmente – a pandemia e isso de duas maneiras: graças à pandemia ele teve a oportunidade de colocar seu nome num subsídio para os mais pobres que não foi pensado nem por ele nem por seu ministro da Economia; o respeito pelo confinamento fez com que os gigantescos panelaços diários (ainda) não se transformassem (como podem) nas mobilizações de rua que faltam para o impeachment tomar corpo.
Ao mesmo tempo, por um bom período, conseguiu fazer com que as mobilizações fake de seus seguidores (aparelhos pagos) ocupassem sem contestação nenhuma a Paulista e a Esplanada. Mas o movimento popular dos torcedores por democracia em São Paulo e em Brasília, os antifascistas em Porto Alegre e Curitiba bem como o movimento antirracista no Rio de Janeiro mostraram que – apesar do confinamento – há um grande potencial de mobilização pela democracia. A mobilização dos entregadores das plataformas também confirma o grande potencial de mobilização social e democrática. Essa resiliência de Bolsonaro, pois, é mais fraca do que os números parecem indicar: ela já não mobiliza.
É curioso ver que Bolsonaro repete – em pior – os mesmos mecanismos que o lulismo implementou: houve a substituição das classes médias pelos pobres que não podem se dar ao luxo de não apoiar quem lhe repassa o subsídio. Em seguida, as críticas à “grande mídia” e à Rede Globo. Mas, o bolsonarismo não dispõe da mesma temporalidade e da mesma economia do meado da década de 2000. Bolsonaro não resistiria à saída de Guedes do governo e este não está mostrando nenhuma sensibilidade para essa inflexão da política econômica que é necessária. Isso aparece claramente na escolha terrível para a economia e o emprego de deixar morrer as micro e pequenas empresas aos milhares. Se as mobilizações pelo “fora Bolsonaro” começarem a se massificar, essa base de aprovação que lhe resta não lhe proporciona nenhuma capacidade de resposta.
Enfim, é curioso ver esses militares todos num governo que ameaça abertamente a democracia e os princípios mínimos da ciência médica em nome de um antipetismo hipócrita. A “culpa” que o lulismo tem nunca foi de ameaçar a democracia, mas de ter aderido à corrupção sistêmica, essa com a qual agora esses militares compartilham as poltronas e os salários nos ministérios.
IHU On-Line – Hoje, uma direita autointitulada como ‘progressista e democrática’ parece estar se descolando de Jair Bolsonaro e partindo para o ataque. Quem é e como o senhor analisa os movimentos dessa direita?
Giuseppe Cocco – Grandes setores da direita que tinham apoiado Bolsonaro no segundo turno ou se mantido neutrais diante da possibilidade de uma quinta vitória petista em 2018 estão hoje fazendo uma oposição firme: como não pensar em Doria ou na posição pelo impeachment do partido Novo. Isso envolve mesmo setores de governo: o Mandetta e o Moro. Os dois são hoje pilares críticos ao bolsonarismo. Temos uma ampliação do campo comprometido com a democracia e isso diz respeito também às posturas de determinadas instituições que entraram em conflito com o negacionismo irresponsável de Bolsonaro: os governadores, os prefeitos, o STF, setores do Congresso Nacional.
Essa movimentação de setores da direita contra o bolsonarismo não tem um “centro” e participa de um movimento mais geral de convergência, em defesa da democracia, que vem da tomada de consciência da violência das intimidações bolsonaristas e de como a “ala militar” deixou que isso se afirmasse. Ao mesmo tempo, nessa mobilização pode ter uma ou mais tentativas de construção de uma força de direita democrática e viável: é fácil ver que uma delas pode gravitar em torno da figura do Moro e de sua eventual candidatura à presidência. Essa é uma força e uma fraqueza dessa convergência dos 70% pelo impeachment, pois o lulismo já está se lançando contra essa movimentação.
IHU On-Line – Como os petistas estão se movendo na cena política? Qual a sua leitura quanto à oposição do PT ao governo?
Giuseppe Cocco – Inicialmente o PT foi tímido e o Lula até tentou sabotar as articulações de construção de convergências antifascistas como “Juntos”, “Somos 70%”. Mas em seguida o PT entrou firme nas mobilizações pelo Fora Bolsonaro e ele está bem presente nas ruas, mas menos que o PSOL. Contudo, as divisões e os cálculos táticos vão se refazendo. O PT passa por algumas contradições objetivas nessas mobilizações. Por exemplo, um momento de grande enfraquecimento de Bolsonaro foi e continua sendo a saída de Moro. Como dissemos acima, não precisa muito esforço para ver que aqui o lulismo converge com o bolsonarismo na tentativa de enfraquecer Moro em todos os níveis: judiciário e político.
Isso aparece claramente diante da ofensiva contra a Lava Jato conduzida pelo procurador-geral da República: o lulismo e em geral o campo jurídico que critica a Lava Jato está com [Augusto] Aras que, como tudo indica, está trabalhando pelo Bolsonaro contra o Moro. A contradição não se limita a isso, poderíamos citar o apoio dos partidos de esquerda à ditadura do Maduro, fruto de um chavismo que é uma das tendências do bolsonarismo. Bolsonaro tem um programa de comunicação que se chama “Alô Presidente!”. Chávez tinha um reality show com o mesmo título. A outra contradição diz respeito ao fato de que o bolsonarismo ataca a grande mídia do mesmo jeito que o lulismo a atacava durante o impeachment da Dilma e a Lava Jato.
IHU On-Line – Empresários e grandes grupos de mídia também parecem ter aderido ao discurso contra Bolsonaro. Por quê? Como compreender esse histórico de alianças e rupturas?
Giuseppe Cocco – A formulação é errada: há grupos da grande mídia que são – desde antes da crise da pandemia – protagonistas da oposição ao governo Bolsonaro e da defesa das instituições democráticas. Me parece que a grande mídia mais moderna (a Globo em particular) está desempenhando um papel parecido a grupos da mídia liberal nos Estados Unidos (a CNN) no combate às novas formas de fascismo.
Temos dois elementos aqui, importantes: o primeiro é que não é verdade – como se precipitam a dizer alguns – que o “capital” hoje se distancia da democracia. Pelo contrário, os setores mais importantes do capitalismo global hoje defendem a democracia. Contrariamente ao que se diz, não assistimos à deriva autoritária do neoliberalismo, mas apenas à sua crise e essa crise envolve também a crítica que vem pela esquerda, pelo outro lado do chamado “populismo”.
Nessa crise, os liberais defendem com força a democracia representativa. A questão é que esta precisa encontrar a força para resistir às ameaças que vêm do populismo de direita (eu prefiro falar de nova forma de fascismo, sendo que na Venezuela ou na Nicarágua o populismo autoritário tem uma retórica de esquerda, da mesma forma que o mexicano López Obrador – que nega o vírus – também tem uma retórica de esquerda). A dificuldade está no fato de que nós precisamos defender a democracia representativa e ao mesmo tempo ir além dela (e não aquém). Esse enigma estava obstruindo o horizonte político e só começou a ser atacado com eficácia pelo levante antirracista norte-americano. As multidões multiétnicas que afirmam que as “vidas negras importam” romperam o enigma (do mesmo jeito que os negros “detonaram” a candidatura do Sanders para terem um candidato democrata capaz de tirar setores moderados do centro). O lulismo, desde 2014, está destruindo ao mesmo tempo as mobilizações independentes nas ruas e toda saída institucional moderada (lembremos a campanha eleitoral criminosa contra a própria pessoa da Marina em 2014 e como Lula passou a rasteira no Ciro em 2018).
Há um segundo elemento de reflexão que precisamos fazer. A crítica à grande mídia nos anos 1990 e 2000 foi correta e errada ao mesmo tempo. Corretamente, contribuímos para a revisão que eles fizeram (por exemplo, a autocrítica da Globo com relação à sua proximidade com a ditadura militar, em 2013, foi sincera); erradamente apoiamos um “controle” público que teria se transformado em uma mídia estatal que hoje estaria nas mãos do fascismo bolsonarista (e antes da corrida louca à polarização procurada pelo lulismo). Isso nos remete ao fato que temos que levar a sério a questão do comum.
O comum não tem nada a ver com o estatal como a esquerda hegemônica sempre afirma e faz: precisamos ir além da polarização entre estado e mercado, fora desse deslocamento não há salvação. Enfim, se há setores empresariais que aderiram e bancaram o fascismo bolsonarista – aqueles que aparecem nas investigações sobre fake news e manifestações antidemocráticas mas também a cúpula da Fiesp –, há setores do grande empresariado que não tinham aderido e fazem oposição.
Mesmo o agronegócio deve estar bem preocupado. Bolsonaro e seu ministro da boiada são um grande problema da mesma maneira que os panfletos ideológicos do Itamaraty são verdadeiros atentados aos interesses nacionais. Quanto mais se fala da Pátria, menos se defendem os interesses dos patriotas. É curioso que generais e oficiais da reserva caucionem um governo que destrói com afinco um dos capitais mais valiosos do Brasil: sua imagem, seu soft power. Esse soft power não tem nada de abstrato e idealista; a carta dos gestores dos maiores fundos de investimento do mundo já deu a dica sobre quanto vale, da mesma maneira que Macron já disse que não haverá acordo com o Mercosul e o Congresso americano exclui acordos com o Brasil.