A disputa política na próxima eleição presidencial norte-americana será em torno da interpretação pela responsabilidade do desemprego e do derretimento da economia, diz o pesquisador
O novo populismo de extrema direita marca o comportamento de Donald Trump e Jair Bolsonaro no enfrentamento da pandemia de covid-19 e, apesar de parecer que ambos não estão alinhados no modo de conduzir a crise em seus países, a realidade é que as instituições norte-americanas limitaram a ação de Trump, diz Idelber Avelar, professor da Tulane University, nos Estados Unidos, na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line. “Os movimentos específicos de Bolsonaro e de Trump ao longo da pandemia não se alinharam porque eles respondem a situações particulares e específicas dos seus países. No caso dos EUA, apesar da longa história anticiência do presidente Trump, existem algumas instituições de saúde pública no interior do aparato estatal que são de difícil aparelhamento. Isso cumpriu, nos EUA, o papel de limitar o poder que tem Donald Trump de dinamitar essas instituições democráticas. No caso do Brasil, com instituições democráticas mais recentes e mais frágeis e em melhores condições para que um movimento extremista aparelhe realmente o Estado, Bolsonaro ficou mais livre para disseminar o caos, produzir conflitos artificiais e manter a sua base mobilizada com a ajuda de fake news, memes, mentiras, correntes de WhatsApp etc.”, compara.
De acordo com Idelber Avelar, a ampla disseminação do coronavírus nos EUA trouxe à tona uma série de questionamentos sobre as dificuldades do sistema de saúde em frear a pandemia e a resposta, assegura, é a de sempre: “A razão pela qual nós não conseguimos realizar essas tarefas é porque o sistema de saúde dos EUA não está feito para isso. Ao dizer que esse sistema de saúde não está feito para isso, ou não foi feito para isso, esses especialistas implicitamente reconhecem a diferença entre um sistema de saúde feito para atender à população e um sistema de saúde feito para gerar lucro”, menciona. Embora a crise evidencie a necessidade de um sistema de saúde público e universal, assegura, “não há qualquer possibilidade de que isso venha a se concretizar num futuro próximo”.
A seis meses das eleições presidenciais em que Trump disputará a reeleição contra o democrata Joe Biden, Avelar pontua que o cenário ainda é de “muita incerteza” e a situação está “mais complicada” para o presidente por conta da degeneração da economia. Além disso, menciona, há o impacto político gerado pelos 30 milhões de pedidos de auxílio-desemprego até o momento. “O impacto disso sobre o sistema político é a grande pergunta do segundo semestre nos Estados Unidos. Trump tinha como seu grande trunfo para as eleições de novembro os números sólidos da economia que, em grande parte, herdou de [Barack] Obama. Com a escalada do desemprego e o derretimento de pequenos comércios, negócios de serviços, classes de profissionais liberais e vários setores ou peças da economia norte-americana, nós entraremos em um outro contexto, no qual a luta política se dará em torno da interpretação da responsabilidade sobre esses números”.
Idelber Avelar (Foto: Naty Torres)
Idelber Avelar é professor de Teoria Literária e Estudos Culturais na Tulane University, em New Orleans, EUA, e doutor em Estudos Espanhóis e Latino-Americanos pela Duke University.
IHU On-Line - Depois de minimizar a pandemia de covid-19, o presidente Trump deu uma guinada na forma de enfrentar a crise nos EUA?
Idelber Avelar – Eu não diria que houve uma guinada única, e talvez haja que se pôr em crise o conceito de guinada, já que elas se repetem em sucessão estonteante. O trumpismo funciona à base da produção incessante de caos e, portanto, as guinadas são bastante comuns, particularmente no caso de situações emergenciais que não haviam sido previstas. Houve várias guinadas do presidente Trump no enfrentamento da covid-19. Em primeiro lugar, ele disse que era um hoax [trote/peça], depois, disse que era um hoax chinês, um hoax democrata, depois, que a situação estava sob controle e havia apenas uma pessoa infectada. Só no momento em que ficou impossível lidar com a situação, que era grave, ele passou a admitir o problema, mas sempre oferecendo algum tipo de solução imaginária, algum tipo de conforto não existente, fabricado para atender às circunstâncias políticas daquela situação. Então, eu não diria que foi exatamente uma virada; diria que a forma como o trumpismo lida com as crises políticas consiste em uma série de guinadas em sequência, porque o trumpismo necessita da confusão e do caos gerado por essas iniciativas do presidente, que são o que mantém a sua base mobilizada.
IHU On-Line - Como avalia a postura e o pronunciamento do presidente Trump em relação a outros líderes mundiais?
Idelber Avelar – A comparação com Angela Merkel é muito instrutiva. No caso da chanceler alemã, desde o primeiro momento, houve um reconhecimento da gravidade da situação e uma preocupação em formular políticas públicas baseadas em evidências – a melhor e mais recente ciência sobre o assunto estava sempre informando os discursos da chanceler. No caso dos EUA, Trump criou uma situação de permanente conflito, tensão e medo entre a comunidade científica que colabora com o Estado, porque ao longo da pandemia a comunidade científica tem sido acossada pelo presidente para que produza fatos ou declarações que sejam de seu interesse público. O cúmulo aconteceu alguns dias atrás, quando em meio a uma coletiva de imprensa, ao lado de dois cientistas, o presidente sugeriu que as pessoas ingerissem ou injetassem desinfetante para matar o vírus. 24 horas depois, ele se justificou dizendo que era uma brincadeira, que havia sido sarcástico, mas aí, claro, vários americanos já haviam ingerido desinfetantes.
Portanto, Trump não pode ser bem comparado com outros líderes dos países democráticos, porque ele não tem uma compreensão do que é a coisa pública, não tem uma compreensão da impessoalidade das instituições democráticas, trabalha com a premissa de que, sendo presidente, as instituições estão lá para servi-lo. Não há nele, evidentemente, o menor respeito pelo trabalho dos cientistas e pela temporalidade própria da ciência.
IHU On-Line - Que impacto a pandemia de covid-19 poderá gerar na campanha eleitoral do presidente Trump e dos demais candidatos?
Idelber Avelar – Todos os movimentos de Trump devem ser entendidos a partir de algumas balizas: seus níveis de popularidade, a bolsa de valores – que é um número que ele observa obsessivamente –, os movimentos da emissora Fox News – que pauta o presidente todas as manhãs –, e as perspectivas para as eleições de novembro contra Joe Biden, do Partido Democrata. Nós estamos a seis meses das eleições e ainda há muita incerteza sobre como se dará essa eleição e como acontecerá a campanha, se haverá algum tipo de epidemia generalizada acontecendo no momento da ida às urnas etc. Até o início da pandemia, Donald Trump tinha um caminho relativamente tranquilo para a reeleição: os números da economia eram muito bons e apesar de Trump ser o presidente com a média histórica de aprovação mais baixa das últimas décadas, mantém um núcleo bastante sólido de 40% de apoio que, mais ou menos, lhe garantiria a reeleição.
Com a chegada da pandemia e a degeneração rápida dos números da economia, com mais de 30 milhões de pessoas pedindo auxílio-desemprego em cinco semanas, a situação ficou um pouco mais complicada para <strongTrump, do ponto de vista eleitoral. Então, as guinadas, as fake news, os ataques aos adversários, a produção incessante de caos, ou seja, todos esses elementos devem ser entendidos no contexto de uma estratégia político-eleitoral que precisa manter uma base mobilizada. Eu diria que é isso que esses movimentos significam do ponto de vista político.
IHU On-Line - Por quais razões, no que diz respeito ao enfrentamento da pandemia, Bolsonaro não alinhou sua política à de Trump?
Idelber Avelar – A pergunta é muito boa, mas eu diria que eles estão, sim, alinhados no que diz respeito ao desenho geral de qual é o seu comportamento. Tanto Trump quanto Bolsonaro continuam operando segundo os registros do novo populismo de extrema direita, ou seja, o enfrentamento do vírus, tanto nos EUA quanto no Brasil, tem sido caótico, baseado muitas vezes em evidências que não são as melhores e mais recentes disponíveis na área e determinadas pela necessidade de se manter mobilizada uma base política caracterizada por um alto grau de fanatismo. Essas semelhanças entre o trumpismo e o bolsonarismo continuam sendo válidas durante a pandemia.
Os movimentos específicos de Bolsonaro e de Trump ao longo da pandemia não se alinharam porque eles respondem a situações particulares e específicas dos seus países. No caso dos EUA, apesar da longa história anticiência do presidente Trump, existem algumas instituições de saúde pública no interior do aparato estatal que são de difícil aparelhamento. Isso cumpriu, nos EUA, o papel de limitar o poder que tem Donald Trump de dinamitar essas instituições democráticas. No caso do Brasil, com instituições democráticas mais recentes e mais frágeis e em melhores condições para que um movimento extremista aparelhe realmente o Estado, Bolsonaro ficou mais livre para disseminar o caos, produzir conflitos artificiais e manter a sua base mobilizada com a ajuda de fake news, memes, mentiras, correntes de WhatsApp etc. Então, as semelhanças e paralelos entre o trumpismo e o bolsonarismo continuam válidas, mas o fato é que a situação no Brasil se deteriorou ao ponto em que Bolsonaro faz coisas, como incentivar e participar de aglomerações, que nem mesmo Donald Trump está fazendo, já há algum tempo.
IHU On-Line - Que leitura faz da desistência de Bernie Sanders da corrida eleitoral nas primárias democratas?
Idelber Avelar – Bernie Sanders representa o principal movimento progressista dos EUA na última década. É o movimento mais consistentemente coerente em suas pautas, o mais enraizado nas instituições da sociedade civil, o mais amplo étnica e geracionalmente, mas esse movimento não conseguiu romper as estruturas do bipartidarismo norte-americano. Pela natureza do sistema eleitoral norte-americano e também pela forma como acontecem as eleições, o sistema encaminha as coisas para que tudo se resolva entre duas diferentes correntes do mesmo status quo. Bernie Sanders conseguiu, ao longo desses últimos sete ou oito anos, desde a emergência do Occupy Wall Street, chacoalhar essas estruturas, mas os mecanismos de autodefesa do sistema político são extremamente poderosos.
O Partido Democrata é comandado por uma coalizão bastante forte do lobby do petróleo, do lobby das armas, do lobby financeiro e do lobby das companhias de seguro, ou seja, por setores poderosos da sociedade, cujos interesses econômicos se chocam frontalmente contra o projeto político social-democrata de Bernie Sanders. Então, a desistência de Sanders significa simplesmente o reconhecimento de que foi tentado um movimento para traduzir a luta política social em resultados eleitorais e esse movimento fracassou, pelo menos temporariamente, na dimensão eleitoral. Mas o movimento social-democrata, por justiça social, que se congregou ao redor de Bernie Sanders continua ativo, claro. Esse movimento nunca entendeu a si próprio como um projeto 100% eleitoral.
IHU On-Line - Como o desemprego recorde está repercutindo nos EUA? Quais são as maiores preocupações em relação à situação e também em relação ao acesso à saúde? Há possibilidade de se criar um sistema de saúde universal pós-pandemia?
Idelber Avelar – Quanto ao desemprego, o maior problema do ponto de vista político não é exatamente o número em si, mas a velocidade com que se chegou a ele: em um período de cinco semanas, 30 milhões de pessoas pediram auxílio-desemprego. O impacto disso sobre o sistema político é a grande pergunta do segundo semestre nos Estados Unidos. Trump tinha como seu grande trunfo para as eleições de novembro os números sólidos da economia que, em grande parte, herdou de [Barack] Obama. Com a escalada do desemprego e o derretimento de pequenos comércios, negócios de serviços, classes de profissionais liberais e vários setores ou peças da economia norte-americana, nós entraremos em um outro contexto, no qual a luta política se dará em torno da interpretação da responsabilidade sobre esses números. A estratégia de Trump será a de sempre: bater bumbo para sua base, linchar e constranger adversários políticos, circular mentiras e fake news, para depois negá-las e circular outras, reiniciando o ciclo de caos e confusão. Resta saber se essa estratégia não fará água neste novo contexto, caracterizado pela impossibilidade dos comícios, pelos impactos epidemiológicos e psicossociais do coronavírus e pelos números de derretimento da economia.
A crise de covid-19 coloca mais uma vez para a sociedade norte-americana a ineficiência e o custo absurdo do seu sistema de saúde, completamente atravancado por requisitos burocráticos, camadas e camadas de liability e uma preocupação geral de gerar lucro e não necessariamente atender à totalidade da população. Essa crise evidencia mais uma vez que se o objetivo do sistema de saúde é oferecer o atendimento mais eficiente possível para todas as pessoas que compõem a sociedade, então, nesse caso, seria necessário um sistema caracterizado por sua natureza pública, gratuita e universal, o que não existe nos Estados Unidos.
Ao longo da pandemia, vários especialistas em saúde pública se perguntaram por que não conseguiram testar com mais eficiência e rapidez, por que não conseguiram formular políticas públicas de contenção do vírus, por que não foram capazes de produzir máscaras e equipamentos de proteção com a velocidade necessária. A resposta para todas essas perguntas, evidentemente, é a mesma de sempre: a que Sanders vem dando há 40 anos. A razão pela qual nós não conseguimos realizar essas tarefas é porque o sistema de saúde dos EUA não está feito para isso. Ao dizer que esse sistema de saúde não está feito para isso, ou não foi feito para isso, esses especialistas implicitamente reconhecem a diferença entre um sistema de saúde feito para atender à população e um sistema de saúde feito para gerar lucro. A crise de covid-19 evidenciou mais uma vez a necessidade de um sistema público universal de saúde nos Estados Unidos. Mas não há qualquer possibilidade de que isso venha a se concretizar num futuro próximo.