14 Setembro 2015
"Os apoiadores do Papa Francisco dizem que ele não está defendendo um programa político específico; em vez de tomar partido, o objetivo dele é abrir a mente das pessoas para a generosidade, abertura e inclusividade do Evangelho", escreve Paul Vallely, autor da biografia intitulada “Pope Francis: The Struggle for the Soul of Catholicism”, em artigo publicado por The Politico 50, 10-09-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O Papa Francisco vem retocando o seu inglês às vespéras da sua chegada em Washington, na segunda quinzena de setembro, e os bilhetes para participar nos eventos dele aqui nos EUA já se tornaram uma commodity de alta procura. Mas quem espera que a mensagem a ser trazida por ele vá ser simplesmente uma mensagem de misericórdia e amor poderá, muito bem, se surpreender.
Em seu discurso a uma sessão conjunta do Congresso, o Papa dos Pobres poderá perfeitamente deixar uma mensagem austera àquele que é o país mais rico do mundo. Apesar de toda a cordialidade de seu sorriso, o histórico deste pontífice sugere que ele considera como tarefa sua não apenas a de confortar os aflitos, mas também a de afligir aqueles que se encontram em situações confortáveis. E por mais que meça delicadamente a sua linguagem, a dura realidade é que ele acredita que os Estados Unidos são parte do problema bem como da solução.
Por mais de um século, os papas fizeram críticas nuançadas sobre o capitalismo de livre mercado, impulsionador do sonho americano. Mas o Papa Francisco, com um vigor sem precedentes, está falando abertamente contra aquelas coisas que Washington e Wall Street têm em grande estima. Por que ele assume esta linha dura?
Durante os dois anos e alguns meses desde a sua eleição, Francisco vem encantando e deixando perplexo o mundo em igual medida com a sua compaixão e suas contradições. Mas também ele mostrou ser um político astuto e sofisticado. Compreender esse aspecto do papa – capaz de manobras habilidosas, não tendo medo do confronto e sempre pronto para buscar aliados improváveis – é essencial para entendermos o efeito complicado que ele está causando na política americana.
O papa nascido na Argentina como Jorge Mario Bergoglio já foi chamado de marxista e de reacionário. Mas basta conhecer a longa biografia deste padre de 78 anos, e veremos que uma realidade mais complexa e intrigante emerge. Francisco nunca abraçou uma ideologia política em particular, embora ele se sinta confortável ao lado de pessoas que as adotam. O seu primeiro chefe – uma mulher que dirigia o laboratório de química em Buenos Aires, onde ele trabalhava – era uma comunista cuja diligência e integridade ele grandemente admirava. “A ideologia marxista é errada”, disse ele em 2013, “mas na minha vida eu conheci muitos marxistas que são boas pessoas, então eu não me sinto ofendido”.
O que modelou Francisco, então, foi a sua experiência de vida. Filho de pais imigrantes italianos, ele possui uma preferência de longa data pelos explorados e por aqueles que necessitam lutar para sobreviver. A parte mais formativa da sua vida sacerdotal foram os 19 anos que passou entre os mais pobres de Buenos Aires, onde era conhecido como o “bispo das favelas”.
Mas há uma outra chave para compreendermos a visão de mundo – a cosmovisão – deste papa. O seu antecessor, o Papa Bento XVI, foi sobretudo um teólogo. O Papa João Paulo II, antes disso, era originalmente um ator e filósofo. Mas Francisco teve a formação de um cientista. Um dos seus adágios é: “Os fatos são mais importantes do que as ideias”. A interseção destes dois tópicos na vida de Francisco – a sua simpatia (compaixão) para com os pobres e a sua insistência de que a realidade vem antes teoria – ajuda entendermos como os Estados Unidos e o seu capitalismo desenfreado entraram na mira papal das coisas a serem criticadas.
Como muitos latino-americanos, o Papa Francisco é ambivalente em relação aos EUA. “Ele combina um senso de respeito com um certo ressentimento diante do domínio econômico e cultural de seu grande vizinho”, disse-me um membro do alto escalão da Cúria Romana. Quando jovem, Bergoglio foi educado na política do presidente argentino Juan Domingo Perón. O peronismo era uma aliança curiosa entre sindicatos, o exército e a Igreja. Buscava-se o que Perón chamou de uma “terceira posição” entre o comunismo e o capitalismo. O peronismo abraçava o nacionalismo autoritário e procurava o Estado – em vez do mercado – para as soluções dos problemas da época; Francisco foi bastante influenciado neste último sentido.
Em seus últimos anos como arcebispo de Buenos Aires, Francisco viu, em primeira mão, a devastação provocada na vida das pessoas comuns por políticas econômicas originadas em Washington.
Durante a crise econômica de 2001 da Argentina, quando metade da população mergulhou na pobreza, o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco Mundial e o Tesouro dos EUA deram o seu aval para políticas que impuseram medidas austeras à classe mais baixa do país. Seis anos mais tarde, Francisco assumia o papel principal na formação do espírito pró-pobres e anticolonial da Igreja latino-americana, espírito articulado pelos bispos da região em sua conferência seminal em Aparecida, Brasil.
O Papa Francisco não é nenhum progressista como comumente se entende. Ele defendeu a linha tradicional católica em questões como as do aborto, casamento gay e uso de métodos anticoncepcionais. No entanto, ele afastou o foco da Igreja Católica centrada na ética sexual para se focar sobre a moralidade do dinheiro.
Isso ficou claro no encíclica sobre o meio ambiente que lançada este ano, Laudato Si’. Para o horror dos céticos climáticos, este documento subscreveu o consenso científico mundial de acordo com o qual o aquecimento global é, em grande parte, criado pela atividade humana. Foi irônico ver, antes da publicação da encíclica, alguns candidatos presidenciais republicanos católicos – como Jeb Bush e Rick Santorum – a admoestar o papa dizendo que seria melhor que ele deixasse o assunto – a ciência climática – para os cientistas.
Isso foi exatamente o que Francisco, um ex-químico, achou que estava fazendo ao aceitar o ponto de vista de 97% dos cientistas que publicam ativamente sobre a questão do clima na atualidade. Para Francisco, a fonte da degradação da Terra está clara: “[O] nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta”.
Em julho, o Papa Francisco proferiu o seu discurso mais mordaz contra o capitalismo contemporâneo até o momento, ao se dirigir a uma assembleia de líderes políticos e comunitários na Bolívia. Por detrás da indiferença do capital global para com os pobres e o planeta e por detrás de toda a “dor, morte e destruição” que ela traz, há – disse ele –“o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia – um dos primeiros teólogos da igreja – chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em Segundo plano”. Nesta “ditadura sutil”, o capital se torna um ídolo. Em resposta, Francisco pediu por uma “mudança real, uma mudança de estruturas”, empregando esta palavra nada menos do que 32 vezes. Terra, teto e trabalho são “direitos sagrados”, e trabalhar para a sua “justa distribuição” é uma “obrigação moral” e, para os cristãos, um “mandamento”.
Essas falas tiveram um impacto imediato na política americana. Damon Silvers, diretor de política da Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (conhecida por sua sigla AFL-CIO), disse: “Eu não consigo me lembrar de algum líder religioso que falasse tão abertamente sobre justiça econômica e de como isso está no cerne daquilo que nós, como seres humanos, devemos ser uns com os outros”.
No outro extremo do espectro político, Greg Gutfeld, da Fox News – um ex-coroinha –, rotulou o papa de “o homem mais perigoso do planeta”. Grandes doadores católicos, como o bilionário americano Ken Langone, ficaram chateados por causa destes pronunciamentos papais a ponto de advertirem os cardeais de que alguns deles – os católicos afluentes americanos – poderão parar de doar à Igreja. A aversão do papa ao capitalismo desenfreado é demais apocalíptico para os magnatas deste país, pois ela não leva em consideração os poderes curativos da tecnologia, ignora a forma como o livre mercado tirou milhões da pobreza e se recusa a considerar que a doutrina católica sobre os anticoncepcionais é parcialmente responsável pela superpopulação do nosso planeta.
No entanto, os apoiadores do Papa Francisco dizem que ele não está defendendo um programa político específico; em vez de tomar partido, o objetivo dele é abrir a mente das pessoas para a generosidade, abertura e inclusividade do Evangelho. “Não se trata de marxismo”, disse-me um cardeal. “É, na verdade, o clássico ensino social católico, tal como foi desenvolvido pelos papas anteriores”. O que é, afinal, este abraço alegre de Francisco aos pobres e rejeitados – beijando um homem com uma doença terrível de pele, e visitando os migrantes africanos lançados à praia na ilha de Lampedusa, Itália – senão um eco de Jesus de Nazaré?
É este apelo às pessoas comuns o que ressalta quão ousada é, de fato, a agenda do Papa Francisco. Ele dirige a sua mensagem não só aos católicos, mas, como os seus documentos vêm insistindo, a “todas as pessoas de boa vontade”. O seu convite para rompermos enquanto sociedade com o “consumismo compulsivo” e passarmos para um padrão mais “sustentável” de vida afetará milhares das escolas católicas, paróquias e hospitais em todo os Estados Unidos e no mundo. Ao mesmo tempo, o seu apelo para que os países ricos desliguem os aparelhos de ar-condicionado, adotem a prática de carona solidária e façam outras mudanças no estilo de vida tem a capacidade de entusiasmar muitos dos que geralmente não buscam inspiração na teologia moral católica.
E este chamado, no final das contas, tem deixado os defensores do livre mercado e os políticos ao redor do mundo com uma pergunta perturbadora: E se as pessoas realmente responderem a este chamado?
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Papa vs. EUA. Por que Francisco está sendo linha dura com Washington e Wall Street? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU