Por: André | 18 Novembro 2013
Dois casos de tratamento discriminatório por parte dos meios de comunicação: os imigrantes ilegais e os pobres. Matías Casas reflete a partir dos acontecimentos de Lampedusa, na Itália, e defende que os meios hegemônicos de comunicação estigmatizaram os imigrantes outorgando à sua condição uma conotação pejorativa.
A reportagem é de Matías Emiliano Casas, professor de História (Untref/Conicet) e publicada no jornal Página/12, 14-11-2013. A tradução é de André Langer.
As migrações em massa são um fenômeno internacional que aumentou sua intensidade nas últimas décadas do século passado e continua sendo um tópico recorrente na agenda política, social e cultural de muitos países. As causas que impulsionam a mobilidade populacional são múltiplas. Geralmente, costuma-se simplificar a questão atribuindo, de modo unívoco, as migrações a questões econômicas. O que para alguns representa uma oportunidade, para grande parte dos países acolhedores lê-se em chave de ameaça. O enriquecimento que possibilita o intercâmbio entre diferentes etnias e o desafio para encontrar elementos de convivência harmoniosa encontram-se muitas vezes silenciados, não apenas pelos dirigentes políticos, mas também pelos meios hegemônicos de comunicação, que estigmatizam os imigrantes e outorgam-lhes uma conotação pejorativa.
Um barco que transladava cidadãos de diferentes países da África rumo às costas italianas sofreu uma pane em um dos seus motores após dois dias de navegação. Parte da tripulação improvisou uma fogueira com o objetivo de o barco ser avistado por possíveis resgatadores. Segundo as testemunhas e sobreviventes do trágico desenlace, ao menos três barcos pesqueiros que transitavam na zona decidiram não vê-los. A omissão parece ter definido o destino dos migrantes. A tragédia teve como saldo centenas de mortos e desaparecidos.
O filósofo francês Michel Foucault distingue entre a norma e a lei precisando que esta última opera quando existe uma infração. Converte-se em um mecanismo de legitimação do poder dominante e regula os marcos da interação social do resto dos indivíduos. Ou seja, “as leis são feitas por uns e impostas a outros”. Em 2007, pescadores tunisianos resgataram cerca de 40 imigrantes que haviam naufragado no estreito da Sicília. Pouco depois, o tribunal de Agrigento condenou-os por “colaborar com a imigração ilegal”. A legislação jurídica italiana, baseada na Lei Bossi-Fini aprovada por Silvio Berlusconi, castiga aqueles que escolhem solidarizar-se com os grupos mobilizados diante de uma situação limite. A prefeita de Lampedusa, Giusi Nicolini, justificou a ação dos barcos que invisibilizaram os africanos nas águas mediterrâneas. No jornal La Repubblica declarou que “os pesqueiros não auxiliaram o barco por medo de serem processados por favorecerem a imigração clandestina”. O “assombro” da imprensa e as afirmações dos políticos redirecionaram o debate para uma das possíveis leituras, a que articula a ação dos marinheiros com a legislação vigente e dali às políticas migratórias da Itália e de toda a Europa.
No entanto, essa perspectiva do debate exclui um ator que, como em todos os acontecimentos do mundo moderno, desempenha um papel protagônico. Os meios de comunicação autoabsolveram-se de um julgamento crítico sobre o seu desempenho na construção da imigração como problema. O analista espanhol Mario de la Fuente García evidenciou, em vários de seus trabalhos, a operação midiática que tanto na Espanha como em outros países da Europa produz uma identificação entre imigrantes e delinquência, ilegalidade, onda invasora, etc. O filósofo reconhece dois aspectos no trabalho ideológico do discurso jornalístico: por um lado, constrói-se uma representação social dos imigrantes como um grupo problemático, mas ao mesmo tempo fabrica-se uma imagem de “sociedade tolerante” na qual o racismo é uma atitude isolada ou incidental. É essa ambiguidade que se reflete na mídia – não apenas italiana – ao abordar a recente tragédia de Lampedusa e a atitude dos pesqueiros.
A mídia hegemônica adota uma atitude militante na difusão e sedimentação de estereótipos sobre os imigrantes como “estranhos”, constitutivos de um perigo que ameaça a suposta estabilidade do trabalho, a integridade sócio-cultural e a segurança pessoal dos cidadãos dos países receptores. O sociólogo Zygmunt Bauman coloca uma intrínseca tensão entre a ética e a moral e a conservação da segurança pessoal. Segundo o pensador polonês, o reconhecimento de um “alvo que atenta” contra a integridade do indivíduo relega qualquer tipo de colocação moral frente às ações que se desenvolvem diante da sua presença. Não há inquisições de corte ético sobre a omissão de estranhos clamando auxílio nos mares, ao passo que esses sujeitos foram e são recorrentemente identificados como agentes de perigo por parte da mídia. O paradoxo está em que são as mesmas vozes que se desprendem questionando a atitude dos tripulantes. O desempenho dos meios de comunicação não participa do debate. A impunidade que ostentam possibilita que atuem como juízes que questionam e classificam. Alguns jornais argentinos se apressaram para esclarecer que os danificados eram imigrantes ilegais, como se essa condição contornasse a gravidade da situação. Os questionamentos são sempre para fora, sua participação e influência fica isenta de qualquer tipo de reflexão.
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Meios de comunicação. Lampedusa, a impunidade da mídia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU