24 Abril 2015
Parecia ser apenas mais um dia de trabalho da pastora Elvira Flores nas montanhas andinas do norte. Em 8 de setembro de 2013, ela conduziu o rebanho pela estrada de terra que cruza os campos de sua família até um córrego. Mas, depois que as ovelhas beberam água, aconteceu algo muito estranho. “De repente elas começaram a pular, a chutar a barriga e a bater a cabeça no chão”, lembra a tímida jovem, de 16 anos, em uma tarde de ventania um ano depois, agarrando o agasalho para espantar o frio. “Uma espuma branca começou a sair da boca e do nariz.” Uma por uma, todas as 18 ovelhas caíram no chão e morreram. Flores assistiu à cena sem saber o que fazer. “Tudo terminou em cinco minutos”, disse.
A reportagem é de Ben Hallmane e Roxana Olivera, publicada por The Huffington Post e reproduzida por Agência Pública, 23-04-2015.
Durante duas décadas, as pessoas que ganham a vida em La Pajuela e nas comunidades vizinhas da região – de uma beleza natural deslumbrante e pobreza opressiva – contaram histórias como essa. Trutas e sapos desapareceram dos cursos de água, contam os camponeses. Algumas vezes, dizem os habitantes locais, seus animais se recusam a beber água de rios que irrigam suas terras – ou bebem a água e ficam doentes ou morrem.
Para os camponeses, a causa de contaminação é evidente. Os morros possuem manchas de minério de ouro, um dos minerais mais raros do planeta. E, durante 22 anos, a empresa americana Newmont Mining Corp., com financiamento do braço de empréstimo para negócios do Banco Mundial, abriu os morros e usou produtos químicos tóxicos para retirar o minério.
Em 2013, um rebanho de ovelhas da família Flores morreu de repente, aparentemente envenenado por substâncias tóxicas lançadas no meio ambiente pela mina de Yanacocha. A família diz que os animais beberam água de um riacho logo antes de morrer; já a mineradora afirma que eles beberam água de uma poça de líquido tóxico dentro da propriedade da mina. (Foto: Ben Hallman / The Huffington Post)
A mina de ouro Yanacocha é uma operação gigante que se alastra por centenas de metros quadrados em elevações que chegam a quase 4 mil metros. A Corporação Financeira Internacional (IFC, na sigla em inglês), parte do Grupo Banco Mundial, forneceu empréstimos para a construção e expansão da mina e é dona de uma pequena parte do negócio. Desde 1993, a Yanacocha produziu mais de 35 milhões de onças de ouro (cerca de 990 toneladas). É a maior mina de ouro da América do Sul e uma das mais produtivas do mundo.
A extração provou ser uma bênção para o governo central cronicamente subfinanciado do Peru. A Yanacocha contribuiu com US$ 2,75 bilhões em receitas fiscais e royalties desde o início das operações, de acordo com a empresa. Mas nas fazendas e nas aldeias mais próximas da mina, a pobreza continua a ser um flagelo sem solução, e a antipatia à mina de Yanacocha é alta.
O mercúrio derramado de um caminhão há 15 anos deixou centenas de moradores doentes em três cidades próximas. Estudos mostram que os metais pesados da mina vazaram em um lugar onde muitas pessoas já não têm acesso a água limpa. Os camponeses estão profundamente preocupados com a própria saúde e com a de outras famílias. “Se os nossos animais estão morrendo por causa da contaminação da água, e nós?”, pergunta Felipe Flores, tio de Elvira.
“Não causar danos”
Operações industriais de mineração com histórico ambiental irregular não são novidade, mas projetos apoiados com dinheiro de uma instituição do Grupo Banco Mundial deveriam ter um controle maior.
O Grupo Banco Mundial financia projetos de desenvolvimento econômico em países carentes, geralmente politicamente instáveis, buscando alcançar uma ambição elevada: acabar com a pobreza mundial. Os tomadores de empréstimo do Banco Mundial, que empresta para governos, ou da IFC, que empresta para empresas, devem seguir regras detalhadas de proteção social e ambiental, em uma abordagem descrita como “não causar danos”.
“A IFC está comprometida em garantir que os custos do desenvolvimento econômico não recaiam desproporcionalmente naqueles que são pobres ou vulneráveis, que o meio ambiente não seja degradado no processo e que as fontes renováveis naturais sejam gerenciadas de maneira sustentável”, disse a financiadora em 2012, quando atualizou sua política de sustentabilidade.
Mas uma análise dos investimentos do grupo bancário, feita pelo The Huffington Post e pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (International Consortium of Investigative Journalists, o ICIJ), descobriu que, em vez de evitar projetos de alto risco, em que os danos são mais prováveis de ocorrer, minas de ouro como a Yanacocha são o tipo de investimento que o Banco Mundial favorece cada vez mais: grandes, destruidores e repletos de risco – para o meio ambiente, assim como para as pessoas que vivem ou estão próximas do local previsto para o projeto.
Os financiadores do Banco Mundial classificam as iniciativas com base nas ameaças sociais e ambientais identificadas. Embora tanto o Banco Mundial como a IFC tenham sido criticados por minimizarem tais riscos – os críticos incluem o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos –, uma análise dos investimentos feitos na última década mostra um forte crescimento de projetos com possibilidade de ter impactos socioambientais “irreversíveis ou sem precedentes”.
Entre 2009 e 2013, as duas instituições injetaram US$ 50 bilhões em 239 projetos da “Categoria A”, considerados de alto risco, incluindo barragens, minas de cobre e oleodutos – mais que o dobro que nos cinco anos anteriores, segundo os registros. Grande parte desse desenvolvimento está em países como o Peru, onde os governos federais são fracos e as regulações, frouxas.
“Colocar uma estratégia de alto risco nesses ambientes é como botar fogo em pólvora”, disse Natalie Fields, diretora executiva do Accountability Counsel, um grupo de advogados que representa populações nativas em disputas contra o Banco Mundial e a IFC. “Com certeza, isso levará a abusos e poderá falhar.”
A análise dos projetos de alto risco do Grupo Banco Mundial é parte de um estudo mais amplo sobre o que os investimentos de mais de US$ 455 bilhões entre 2004 e 2013 significaram para famílias que viviam perto ou em propriedades escolhidas para o desenvolvimento.
Na investigação, a equipe de repórteres descobriu que, no período, 3,4 milhões de pessoas perderam suas casas e terras ou tiveram seus meios de subsistência prejudicados pela construção de rodovias, usinas de energia e outros projetos financiados pelo Grupo Banco Mundial. Enquanto muitos foram compensados por suas perdas, outros não receberam nada em troca ou foram removidos à força, sem ter tempo de recolher seus poucos pertences. Em dezenas de casos, o Banco Mundial e a IFC falharam em aplicar próprias políticas de proteção a esses refugiados do desenvolvimento.
Muitas vezes os danos ambientais demoram mais para emergir do que abusos diretos em populações locais. Mas as consequências humanas podem ser igualmente dramáticas.
Em novembro, o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, um médico americano, conclamou os Estados Unidos, a China e outras grandes nações a “tomar uma atitude” para combater a mudança climática, que ele descreveu em um blog para o HuffPost como colocar uma ameaça desmedida aos pobres e sem posses.
O banco controlado por Kim aumentou seus investimentos em projetos de energia eólica e solar nos últimos anos, mas financiou também iniciativas que contribuíram para o lançamento de gases do efeito estufa, incluindo projetos de desenvolvimento ligados a petróleo na costa de Gana e uma imensa usina termoelétrica a carvão na África do Sul.
Minas de ouro representam um conjunto diferente de problemas. Os mineiros cavam poços titânicos e colocam imensas quantidades de rochas em pilhas mais altas do que muitos prédios comerciais. Depois, espirram um líquido de cianeto nos montes. O cianeto se liga a pequenas partículas de minério de ouro e cai em uma superfície. A solução é bombeada para um moinho, depois refinada e processada para virar barras de ouro.
Esse método, amplamente usado ao redor do mundo, é muito automatizado – e pode ser altamente destrutivo. Os lagos que seguram os resíduos de cianeto podem se romper, liberando uma enchente de veneno nas comunidades rio abaixo. A água da chuva pode carregar resíduo explosivo e metais pesados para córregos. A drenagem ácida das rochas expostas muitas vezes persiste por muito tempo depois de uma mina ser fechada. “Não sei de nenhum exemplo em que não houve algum problema de contaminação”, disse Keith Slack, especialista em mineração da Oxfam, um grupo de direitos humanos.
Desde 2004, a IFC direcionou US$ 650 milhões para 26 projetos de mineração de ouro. No Peru, a IFC injetou US$ 23 milhões para construir a Yanacocha em 1993 e financiou uma expansão seis anos depois. A IFC possui também 5% das ações da mina (Newmont é a principal dona, com 51%. Buenaventura, uma empresa sócia peruana, possui o restante das ações).
Em uma nota enviada por e-mail, o banco disse que a mineração oferece “o melhor caminho para sair da pobreza” para muitos dos países mais pobres do mundo. “Projetos de mineração bem-sucedidos podem gerar fluxos de caixa vitais para governos, que consequentemente conseguem reinvestir em saúde, educação e outros serviços básicos”, dizia a declaração. “Além dos empregos gerados diretamente por uma mina, muitas vagas adicionais são criadas indiretamente por outros negócios locais.”
A Yanacocha informa que a mina emprega diretamente 2.300 pessoas. Motoristas de táxi, donos de restaurante e trabalhadores de outros serviços foram incentivados pela presença de executivos de mineração que ocupam assentos na classe executiva dos voos diários vindos de Lima, mas, nas vilas e aldeias do entorno, a opinião que prevalece é que empresas estrangeiras, bancos e o distante governo em Lima estão lucrando com a mina, enquanto a população local precisa lidar com a destruição ambiental e social.
Ao todo, 53% da população da província de Cajamarca, onde fica a Yanacocha, vive com menos US$ 100 por mês, ou seja, está abaixo linha nacional da pobreza, de acordo com os dados mais recentes do governo. Apesar das imensas reservas minerais, é a província mais pobre do Peru.
Oficiais locais não têm ajudado na questão. Grande parte da receita de impostos alocada ao governo regional não foi utilizada, de acordo com um estudo de 2012.
“Isso nos coloca em uma posição difícil”, disse Javier Velarde, porta-voz da Yanacocha. “Nós não podemos substituir o governo.”
Velarde disse que sua empresa investiu US$ 550 milhões na construção de estradas e na melhoria do abastecimento de água, além de outros projetos sociais. Mas os gastos não são “substanciais o suficiente para fazer uma grande diferença”, disse.
A Yanacocha e sua empresa-mãe, Newmont, agora querem escavar quatro lagos em montanhas próximas e desenvolver Conga, uma mina de cobre e ouro de US$ 4,8 bilhões. Assim como a Yanacocha, Conga fica em um terreno alto: no topo de uma bacia hidrográfica que irriga centenas de quilômetros quadrados de terras agriculturáveis e abastece vilas e aldeias próximas com água potável.
A Newmont assegura que Conga é um dos projetos mais detalhadamente estudados da história do Peru e que um grupo diverso de especialistas declarou que o plano está de acordo com padrões internacionais.
Opositores da nova mina não acreditam nas garantias da companhia. “Água, não ouro” é um grito convocado por quem desafia a mina e teme que o projeto vá contaminar as comunidades rio abaixo.
A polícia matou cinco pessoas que protestavam contra a expansão de Conga em 2012. Uma pesquisa de opinião pública feita no mesmo ano revelou que quatro entre cada cinco habitantes de Cajamarca eram contrários à nova mina. Outra pesquisa mais recente, conduzida pela Yanacocha, mostrou que o apoio cresceu – para 37%.
Em fevereiro, seguranças privados trabalhando para a mina entraram em conflito com a família de Máxima Acuña. A camponesa afirma ter sido espancada e sofrido anos de intimidação por sua luta para permanecer na terra cobiçada para a nova mina. Os seguranças derrubaram os alicerces da nova casa que sua família estava construindo, perto dos lagos de Conga, terreno cuja propriedade é reivindicada pela Yanacocha.
“O ouro tirado da nossa região é manchado de sangue”, disse Milton Sánchez, um dos líderes do movimento de protesto. “Os estrangeiros o usam nas suas orelhas, pescoços e dedos para ficarem bonitos, mas a vaidade deles custa o nosso sofrimento. Nós assistimos à destruição da cultura e do meio ambiente. Nossas famílias estão sendo destruídas.”
Localizada cerca de 56 quilômetros de Cajamarca, ao longo de uma estrada de pista dupla cheia de curvas, a fazenda Flores permite ver de perto como a mina de Yanacocha mudou profundamente a vida e a paisagem do local. Pastos verdes e ondulados terminam abruptamente em uma ferida vermelha na montanha, cuja vegetação foi raspada. Enquanto a jovem Elvira conta a história da morte das ovelhas, um grande caminhão de mineração estremece ao descer montanha abaixo.
À noite, a luz de operações cintila ali por perto – um lembrete de que gotas da riqueza prometida em duas décadas de mineração ainda não escorreram para a população local. Aqui, joias de ouro são um luxo inimaginável. Ninguém tem nem energia elétrica.
A maior preocupação é o enorme desconhecido. Cientistas encontraram altos níveis de metais pesados prejudiciais no solo e na água perto da mina. A Yanacocha reconhece que estudos da água mais antigos encontraram problemas, mas diz que gastou centenas de milhões de dólares para modernizar suas estações de tratamento.
A empresa diz que treinou agricultores para coletar amostras de água para eles próprios verificarem que a água da qual eles dependem é segura. “É importante ser transparente”, disse Velarde.
Grandes investimentos, grandes riscos
O Grupo Banco Mundial tem como objetivo curar a “extrema” pobreza financiando o desenvolvimento nos lugares mais pobres do planeta. É uma meta ambiciosa. Mais de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo vivem com menos de US$ 1,25 por dia. A IFC disse que o mundo em desenvolvimento precisa de 600 milhões de novos empregos até 2020 apenas para acompanhar o crescimento populacional significativo.
Nos últimos anos, os credores do Banco Mundial ajudaram a construir estradas que ligavam vilas isoladas no Sri Lanka, contribuíram para o aumento do rendimento em plantações de arroz em Serra Leoa e financiaram um painel solar que trouxe energia elétrica para 2 milhões de casas rurais e lojas em Bangladesh.
Políticas de proteção pioneiras criadas pelo Banco Mundial e pela IFC exigem que os credores avaliem o investimento necessário para seu impacto social e ambiental antes do financiamento. Governos e empresas que emprestam dinheiro do banco são obrigados a garantir que pessoas removidas receberão ajuda para conseguir um novo lugar para morar e um novo emprego. Eles precisam evitar também, ou pelo menos “minimizar”, a emissão de poluentes. “Saber equilibrar o risco é um dilema”, disse Martyn Riddle, um antigo conselheiro ambiental da IFC. “Onde você desenha as linhas de um projeto de interesse comercial para uma região em oposição ao seu impacto ambiental e social?”
O recente aumento dos casos de alto risco mostra que os credores do Banco Mundial estão cada vez mais dispostos a apostar que os benefícios que esses projetos trazem compensam os danos consideráveis. O Banco Mundial e a IFC financiaram projetos até mesmo em casos em que o maior apoiador do banco, os Estados Unidos, apresentou objeções.
Em 2010, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos disse que o empréstimo abaixo de valores do mercado de US$ 3,75 bilhões para financiar Medupi, uma usina termoelétrica a carvão de 4.800 megawatts na África do Sul, “destruiu a estratégia do Banco Mundial de ajudar países a buscar crescimento econômico e redução da pobreza de maneiras ambientalmente sustentáveis”.
É esperado que a usina de Medupi emita 25 milhões de toneladas métricas de dióxido de carbono por ano, mais do que as emissões acumuladas de dezenas de países. Os Estados Unidos se abstiveram na votação sobre Medupi, em vez de serem ativamente contra o projeto. Desde o episódio, o banco prometeu limitar seu financiamento a termoelétricas a carvão para “circunstâncias raras”.
A proposta de uma barragem no rio Congo, que irriga grande parte da África ocidental e é um dos maiores rios do mundo, ilustra a promessa e o perigo de se investir em grandes obras de infraestrutura. No ano passado, o Banco Mundial aprovou um subsídio de US$ 73 milhões para ajudar o governo congolês a estudar o impacto social e ambiental da barragem. A hidrelétrica, conhecida como Inga III, produziria uma quantidade enorme de energia em um país onde praticamente não se produz eletricidade.
Mas especialistas ambientais dizem que companhias mineradoras e empresas que fundem alumínio seriam as principais beneficiadas. Ambientalistas levantaram também preocupações com a possibilidade de o represamento do rio secar um delta crucial na costa que serve de grande sumidouro de carbono, sequestrando o gás mais responsável pelo aquecimento global.
Peter Bosshard, diretor de política da International Rivers, uma rede internacional de conservação ambiental, descreveu a hidrelétrica como uma ideia “mirabolante”. “A hidrelétrica parece muito atraente e vai encher muitos cofres privados e de funcionários do governo”, disse. “Mas nós não vemos esse projeto beneficiando pessoas pobres.”
Um legado de conflito
O centro da atividade mineradora moderna do Peru é Cajamarca, onde 500 anos atrás conquistadores espanhóis capturaram o imperador inca Atahualpa e extorquiram 24 toneladas de ouro e prata de seu domínio antes de estrangulá-lo até a morte.
Em 1986, a empresa Newmont, baseada em Denver, nos Estados Unidos, identificou um veio de minério inexplorado nas montanhas acima da cidade. Levantar fundos para financiar a mina foi um desafio. O Sendero Luminoso, um violento grupo insurgente, havia traumatizado o país. Bancos e companhias estrangeiras estavam relutantes em investir no Peru. A Newmont recorreu à IFC, especializada em fazer empréstimos em locais onde outras instituições têm medo de investir.
No início dos anos 1990, agentes da Yanacocha viajaram montanha adentro nos Andes, comprando propriedades. Muitos vendedores, pobres e analfabetos, dizem que não sabiam que havia uma enorme riqueza escondida nas rochas embaixo de seus campos. Outros dizem que seus vizinhos venderam suas terras ilegalmente.
Negritos, uma comunidade que inclui famílias de La Pajuela, processou a mineradora em um tribunal do Peru, argumentando que a empresa expropriou ilegalmente um trecho de terras equivalente a quase dois Central Parks de Nova York. O processo acusava as pessoas que diziam representar a comunidade e Negritos de não terem autoridade para negociar e dizia que a terra comum havia sido vendida por um preço injusto – só US$ 30 mil.
A Yanacocha contesta as alegações e, no ano passado, um juiz peruano se posicionou favoravelmente à empresa, encerrando o caso. A comunidade de Negritos entrou com recurso e espera o resultado.
Quatro meses depois do acordo de compra, Yanacocha hipotecou a mesma propriedade por US$ 50 milhões para o International Finance Corporation e um banco alemão. A mina produziu sua primeira barra de ouro no mesmo ano, 1993.
O domínio sobre a Yanacocha logo fez emergir atritos. O que era para ser um projeto de dez anos foi estendido, de novo e de novo. Em 1999, com financiamentos limitados na América Latina, a IFC emprestou US$ 60 milhões para sustentar a expansão. “Impactos significativos não são esperados nos hábitats naturais por causa das atividades do projeto”, disse o banco em um balanço. “O histórico de segurança da Yanacocha é consistente com padrões internacionais e tem melhorado ao longo do tempo.”
No ano seguinte, alguns eventos questionaram essa afirmação. Em janeiro de 2000, milhares de camponeses lotaram a praça central de Cajamarca para protestar contra a mina e as expansões planejadas. Riachos que antes eram limpos haviam se tornado turvos e fétidos, diziam. O Ministério da Pesca do Peru registrou que mais de 21 mil trutas haviam morrido por resíduos ácidos que escoaram da mina para dois rios que correm perto da Yanacocha.
Seis meses depois, um caminhão que transportava mercúrio da mina derramou cerca de 130 quilos do metal perigoso ao longo da estrada para Cajamarca, depois de um barril que continha a substância ter quebrado. Investigadores depois determinaram que o recipiente nunca deveria ter sido usado para conter o resíduo tóxico. Acreditando que a substância poderia ser valiosa, muitos moradores recolheram o material e levaram para casa. Nos dias seguintes, quase mil pessoas apresentaram sintomas de intoxicação por mercúrio.
Mais tarde, investigadores da IFC culparam a Yanacocha por uma “falta de resposta sistemática e efetiva” ao se deparar com o acidente e disseram que a empresa não tinha cumprido os padrões internacionais de transporte seguro de materiais perigosos.
“Foi o derramamento de mercúrio que pesou na balança contra a Yanacocha”, disse um morador de Cajamarca a entrevistadores do escritório do ombudsman da IFC (Office of the Compliance Advisor/Ombudsman, o CAO), constituído em 1999 para ajudar a resolver conflitos entre empresas financiadas pelo órgão e comunidades vizinhas. “Muitas pessoas, especialmente na cidade, não se importavam com o que estava acontecendo no campo com os camponeses perto da mina. Quando descobriram que poderiam ser envenenadas pela poluição, começaram a ficar preocupadas.”
No ano seguinte, um grupo indígena reclamou ao ombudsman que a Yanacocha estava prejudicando a terra e a água das vilas locais. Como resposta à reclamação, o escritório do ombudsman convocou uma mesa de diálogo entre a empresa e os agricultores e moradores das vilas insatisfeitos.
Um estudo conduzido como parte da mesa de diálogo descobriu que alguns riachos continham altos índices de metais pesados, nitratos e outras substâncias prejudiciais à saúde. O relatório, produzido por especialistas em água da Stratus Consulting, revelou que os padrões internacionais de qualidade de água “foram ultrapassados em algumas localidades”, representando uma “preocupação de longo prazo”. No entanto, no curto prazo, não havia perigo para as populações, dizia o estudo.
Em certo ponto, os participantes da mesa propuseram um “sistema de alerta antecipado”, o que contemplava briefings mensais em áreas críticas onde as preocupações relativas à qualidade da água eram persistentes. Isso nunca aconteceu. Mais tarde, o ombudsman disse que “recursos limitados e a fraqueza institucional da mesa de diálogo” eram os culpados. Ele encerrou a reclamação e a mesa, sem nunca ter respondido satisfatoriamente a uma questão fundamental para as comunidades: se suas fontes de água estavam contaminadas.
Ao longo desse período, a Yanacocha minimizou os riscos do derramamento de mercúrio e da poluição das águas. Mas, nos bastidores, os executivos na empresa-mãe Newmont se preocupavam com a chuva de publicidade negativa sobre um de seus maiores investimentos. Larry Kurlander, vice-presidente sênior da Newmont, foi enviado para auditar a mina após o derramamento de mercúrio. Ele ficou alarmado com o que encontrou.
Os agricultores tinham razão em se preocupar, descobriu Kurlander, de acordo com documentos obtidos por uma investigação conjunta do The New York Times e do programa Frontline, da emissora PBS, em 2005. Ele alertou executivos seniores da Newmont para o fato de que a companhia tinha violado regulações ambientais em larga escala e que os abusos que descobriu eram tão graves que a direção sênior da empresa corria risco de “processos criminais ou prisão”. “Nós não estamos de acordo com nossas licenças de operação… E isso ocorre, virtualmente, em 100% do tempo”, escreveu. Kurlander, que está aposentado, não respondeu às mensagens deixadas no telefone de sua casa.
Após o estudo sobre a água, a Yanacocha gastou centenas de milhões de dólares modernizando uma estação de tratamento e elaborando um novo método para capturar e filtrar os resíduos da mina, disse Velarde, o porta-voz da Yanacocha. “Nem tudo é perfeito. Temos problemas de tempos em tempos, especialmente na estação chuvosa, mas reportamos os problemas às comunidades imediatamente”, disse.
Víctor Mendoza, líder de uma cooperativa agrícola em uma pequena comunidade de Negritos chamada Extrema, disse que a empresa fez um esforço, de tempos em tempos, para melhorar as relações, construindo um novo telhado para a escola de seu filho, em uma ocasião, e dando um bode a cada uma das 79 famílias de Extrema, em outra.
Essas ofertas não serviram para diminuir suas preocupações com o que os resíduos que escoam da mina fazem com a água não filtrada que seus três filhos e outros parentes pegam em um riacho que corre a partir de um terreno elevado perto da mina da Yanacocha.
Mendoza disse que seus animais, que também bebem água do riacho, estão abortando em muitos casos. Sua comunidade, diz o homem de 32 anos, foi destruída por décadas de dúvidas e desacordos sobre a Yanacocha. “Eles quebraram a unidade interna e a organização da nossa comunidade”, disse. “Muitos suspeitam uns dos outros. Estamos discutindo isso desde que somos crianças.”
Em novembro de 2011, policiais que trabalhavam clandestinamente para a Yanacocha atiraram bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e munição letal contra uma multidão de agricultores que havia organizado um acampamento de protesto perto de Conga, a mina que a empresa espera desenvolver com apoio da IFC.
Elmer Campos sentiu a bala perfurar suas costas ao se abaixar para ajudar um amigo que havia sido atingido. Ele perdeu um rim e o baço e teve uma lesão na medula espinhal que o deixou paralisado da cintura para baixo.
Agora, Campos passa seus dias em uma cadeira de rodas enferrujada em um pequeno quarto. Sua mulher trabalha na pequena lavoura da família, loteada e vendida para pagar o tratamento médico. Ele diz que a dor nunca vai embora. “Mal consigo dormir à noite”, disse. “Não consigo andar nem sair. Sou um prisioneiro dentro da minha própria casa.”
No verão após Campos ter sido baleado, a polícia nacional atirou contra uma multidão de manifestantes e matou cinco pessoas, incluindo um menino de 16 anos. A polícia alegou que os manifestantes haviam tentado atacar os escritórios de um governo provincial pró-mina na cidade de Celendín. Os tiroteios alcançaram o noticiário internacional e foram recebidos com reprovação geral no Peru. Como consequência, a Newmont suspendeu o projeto de Conga indefinidamente.
Mais tarde, naquele ano, a empresa tomou a atitude inesperada de emitir um pedido de desculpas formal por suas ações passadas. “Nós não estamos orgulhosos do atual estado das nossas relações com o povo de Cajamarca”, escreveram os executivos em dezembro de 2012. “Queremos aproveitar a oportunidade para reconhecer os erros que cometemos na maneira de conduzir nós mesmos e nossos negócios.”
Velarde, o porta-voz da Yanacocha, disse que a empresa trabalhou duro nos últimos anos para aumentar o apoio à comunidade. Ela tem contratado mais empreiteiras locais, por exemplo, para que a região tenha mais participação na prosperidade econômica trazida pela mina. “A verdade é que a empresa não se esforçou o suficiente no passado para maximizar os benefícios para os locais”, disse.
Executivos da Yanacocha ainda querem construir uma nova mina. O ouro está acabando nos poços existentes. As reservas que restaram devem durar mais cerca de cinco anos, diz a empresa.
A empresa e sua mãe corporativa, a Newmont, disseram que um relatório de avaliação ambiental de 27 mil páginas prova que a mina de Conga, com mais de 6 milhões de onças (cerca de 170 toneladas) de reserva de ouro e um estoque muito maior de cobre, é segura. O relatório, preparado para a Newmont em 2010 por um consultor, disse que a mina não vai ter “impacto significativo rio abaixo”.
A Newmont disse que a mina de Conga vai render estimados US$ 2,7 bilhões em impostos e pagamentos de royalties e criar milhares de empregos.
Muitos analistas externos descreveram o relatório de impacto ambiental como confuso, enganoso e incompleto. Robert Moran, um especialista contratado pelo Environmental Defender Law Center, que advoga em defesa de pessoas que lutam para proteger o meio ambiente em países em desenvolvimento, chamou o estudo de um repositório de “meias-verdades e opiniões interpretadas de forma incorreta”.
A Yanacocha diz que a empresa não vai continuar com a mina enquanto não tiver a “licença social” das populações locais. Uma decisão final sobre como irão proceder não é esperada antes do fim do ano, disse Velarde. Nesse meio-tempo, a Yanacocha está construindo reservatórios que, diz a empresa, irão compensar a perda de quatro lagoas no local onde será a mina de Conga. Os pequenos lagos serão destruídos ou convertidos em poços de descarte, se o projeto seguir adiante.
Alguns executivos se mudaram para Cajamarca e estão na linha de frente de uma campanha de relações públicas que inclui patrocinar um programa de pintura para crianças na escola e contratar mais construtoras locais para prestar serviço à mina, disse Velarde. “Nós ainda não estamos onde gostaríamos de estar, mas estamos progredindo”, afirmou.
Em uma declaração por e-mail, a IFC disse que leva a sério os riscos associados à mineração. “No caso da Yanacocha, nosso cliente estava comprometido em melhorar a situação in loco”, disse. “Nosso contínuo envolvimento com clientes comprometidos pode fazer a diferença na distribuição de impactos positivos do desenvolvimento.”
A IFC irá “avaliar o papel que poderá cumprir na proposta mina de Conga junto com os parceiros do projeto em momento oportuno”, diz a declaração.
Vizinhos
Depois de as ovelhas da fazenda dos Flores terem morrido no outono de 2013, funcionários da agência de agricultura do Peru analisaram órgãos dos animais e a água dos riachos do local para procurar produtos tóxicos. De acordo com a mineradora, os resultados foram inconclusivos.
A Yanacocha indenizou Felipe Flores pelas ovelhas mortas – ainda que, de acordo com a empresa, a história da família esteja errada em um detalhe-chave.
Omar Jabara, porta-voz da Newmont, disse em um e-mail que as ovelhas bebiam água de uma poça de líquido tóxico em uma propriedade da empresa perto de uma usina de processamento do outro lado de uma cerca que tinha sido cortada – e não de um riacho, como alega a família. A “causa provável” das mortes era beber água da poça contaminada, disse Jabara. “Em muitas ocasiões anteriores, havia sido pedido ao dono das ovelhas que não entrasse na propriedade ou cruzasse o perímetro com suas ovelhas, para elas pastarem no terreno da empresa”, disse.
Especialistas em toxicologia disseram ao HuffPost que o episódio descrito por Flores poderia ser resultado de um derramamento acidental de substâncias tóxicas, como cianeto, em cursos d’água. Eles afirmaram que essas contaminações podem deixar poucas evidências e, a menos que a água fosse analisada imediatamente depois do ocorrido, o veneno pode simplesmente ter sido levado pela água ao longo do tempo. As questões sobre a contaminação da água, enquanto isso, permanecem sem resposta.
Em 2014, especialistas em segurança alimentar da Universidade de Barcelona encontraram altas concentrações de chumbo, cádmio e outros metais pesados na água e na comida em comunidades próximas da Yanacocha – com os maiores índices perto de La Pajuela. Os metais estão associados à maior incidência de câncer e falência dos rins, além de doenças cardiovasculares. “É razoável aconselhar a população de La Pajuela a não beber água de suas fontes hídricas”, conclui o relatório.
Um consultor ambiental contratado pela Newmont para analisar o estudo da Universidade de Barcelona declarou que ele é “fundamentalmente falho”.
Em dezembro, funcionários do Ministério do Meio Ambiente do Peru lançaram um relatório indicando que água contaminada da mina estava infiltrando na comunidade de San José, perto de La Pajuela. A Yanacocha também contestou essas descobertas.
O ombudsman da IFC está atualmente examinando queixas de disputas de terra relacionadas à Yanacocha. O banco não revisitou a questão da poluição das águas em mais de uma década, mas disse que as lições aprendidas depois do derramamento de mercúrio “alimentaram diretamente” a melhoria de seus padrões de performance.
Na estrada que chega ao sítio dos Flores, a Yanacocha colocou uma placa verde, como as que são comumente vistas nos Estados Unidos, para relembrar os motoristas a não jogar lixo ou obedecer a limites de velocidade. “O homem é o único guardião do nosso meio ambiente natural”, diz a placa. “Vamos preservá-lo.”
Agora, Felipe Flores traz água potável de Cajamarca, a uma hora de carro. Mas seus animais ainda bebem água do riacho e seus filhos ainda bebem o leite e comem o queijo que eles produzem.
Assim também faz o resto do Peru. Flores disse que ele vende cerca de 60 litros de leite por dia para a Nestlé, que distribui seus produtos para todo o país. Quando era jovem, disse, ele deu as boas-vindas à mina de ouro. Até trabalhou brevemente para a empresa. Mas a realidade de ter uma mina em seu quintal o fez mudar de ideia. “Esses não são os vizinhos que disseram que seriam”, afirmou.
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