22 Abril 2015
Na última década, pelo menos 3,4 milhões de pessoas sofreram os impactos negativos de projetos financiados pela instituição cujo objetivo é acabar com a pobreza
A reportagem é de Sasha Chavkin, Ben Hallman, Michael Hudson, Cécile Schilis-Gallego e Shane Shifflett, com colaboração de Musikilu Mojeed, Besar Likmeta, Ciro Barros, Giulia Afiune, Anthony Langat, Jacob Kushner, Jeanne Baron, Barry Yeoman e Friedrich Lindenberg, publicada por Agência Pública, 16-04-2015.
Debaixo de um céu branco e sombrio, mais de cem policiais armados entraram na favela de Badia East, localizada na fervilhante megacidade de Lagos, Nigéria. Enquanto avançavam, eles batiam os cassetetes contra as paredes desmoronadas dos barracos nas ruas sem calçamento.
“Se você ama sua vida, saia”, os oficiais gritavam.
Milhares de pessoas agarraram os pertences que podiam carregar e fugiram antes que a fila de enormes e desajeitadas escavadeiras entrasse com suas garras hidráulicas esmagando as casas. Em questão de horas, o bairro estava em ruínas.
Bimbo Omowole Osobe se perdeu por um momento de seus filhos em meio ao caos. Quando ela voltou à comunidade, sua casa de blocos de concreto e suas duas pequenas lojas tinham desaparecido. “É como uma mulher entrar em trabalho de parto e seu bebê nascer morto”, diz ela. “Foi assim que eu me senti.”
Em fevereiro de 2013, o governo estadual de Lagos destruiu Badia East porque estava em uma zona de renovação urbana financiada pelo Banco Mundial, o provedor global de empréstimos para combater a pobreza no mundo. Foi esse projeto, porém, que, sem aviso nem compensação, expulsou os moradores pobres do bairro em que viviam, obrigando-os a se defender sozinhos – e sem recursos – na cidade superpovoada e perigosa.
Despejos como o de Badia East supostamente não deveriam acontecer em projetos financiados pelo Banco Mundial.
Durante mais de três décadas, a instituição manteve um conjunto de políticas de “salvaguarda” que eles diziam fazer parte de um sistema de desenvolvimento econômico mais humano e democrático. Elas continuam teoricamente em vigor: governos que tomam empréstimos ao banco não podem forçar a saída de pessoas de suas casas sem aviso; famílias removidas para dar lugar a barragens, usinas de energia e outros grandes projetos têm de ser reassentadas em condições de recuperar os meios de sustento.
Segundo a instituição, seu compromisso é “não prejudicar” pessoas nem o meio ambiente. O Banco Mundial quebrou sua promessa.
Ao longo da última década, o banco falhou sistematicamente em fazer cumprir as próprias regras, com consequências devastadoras para algumas das populações mais pobres e vulneráveis do planeta. É o que revelou uma investigação conjunta do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), Huffington Post e outros veículos parceiros.
São muitos os casos em que o Banco Mundial é negligente na análise prévia dos projetos para garantir com antecedência que as comunidades estarão protegidas e, frequentemente, não tem ideia do que acontece com pessoas após a remoção. De acordo com funcionários e ex-funcionários do banco, em muitos casos a instituição até continuou fazendo negócios com governos que já haviam maltratado seus cidadãos, sinalizando que os clientes pouco têm a temer ao violar as regras do empréstimo.
“Muitas vezes não houve intenção dos governos de cumprir – e muitas vezes não houve intenção da gerência do banco de fazer cumprir”, resume Navin Rai, um ex-funcionário do Banco Mundial que supervisionou as medidas de proteção do banco às populações locais entre 2000 e 2012. “Assim que o jogo era jogado.”
Em março deste ano, após o ICIJ e o HuffPost terem informado a agentes do Banco Mundial que haviam encontrado “falhas sistêmicas” na proteção da instituição a famílias desalojadas, esta reconheceu que sua supervisão foi deficiente e prometeu reformas. “Nós olhamos seriamente para nós mesmos no que diz respeito a reassentamentos e o que descobrimos me preocupou muito”, disse em um pronunciamento o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim.
O escopo do “reassentamento involuntário”, como classifica o banco, é vasto. Conforme as estimativas obtidas em uma análise de dados da instituição feita pelo ICIJ, os projetos do banco desalojaram física ou economicamente 3,4 milhões de pessoas desde 2004. Elas foram removidas de suas casas, expulsas de suas terras ou tiveram seus meios de subsistência comprometidos.
Provavelmente o número verdadeiro é ainda maior porque frequentemente o banco subestima ou erra o cálculo do número de pessoas afetadas por seus projetos.
Uma equipe formada por mais de 50 jornalistas de 21 países passou cerca de um ano documentando o fracasso do banco em seu compromisso de proteger as pessoas marginalizadas em nome do progresso. Os repórteres parceiros analisaram milhares de documentos do Banco Mundial, entrevistaram centenas de pessoas e fizeram investigações de campo na Albânia, Brasil, Etiópia, Honduras, Gana, Guatemala, Índia, Quênia, Kosovo, Nigéria, Peru, Sérvia, Sudão do Sul e Uganda.
Nesses países, e em outros, descobriram que o descaso do Banco Mundial prejudicou moradores de favelas urbanas, lavradores, pescadores, populações tradicionais de florestas e outras camadas pobres, obrigando-os a lutar para manter suas casas, suas terras e seus modos de vida. Às vezes até enfrentando intimidação e violência.
Entre 2004 e 2013, o Banco Mundial e seu braço de empréstimos para o setor privado, a Corporação Financeira Internacional (International Finance Corporation, IFC), comprometeram-se a emprestar US$ 455 bilhões para financiar cerca de 7.200 projetos em países em desenvolvimento.
Durante o mesmo período, as pessoas afetadas pelos investimentos do Banco Mundial e do IFC apresentaram dezenas de reclamações aos painéis de inspeção internos das instituições, acusando os emprestadores (seus clientes) por falhas no cumprimento das regras de salvaguarda.
No caso da favela de Lagos, o Painel de Inspeção – o órgão ombudsman do Banco Mundial – afirmou que a direção do banco “ficou aquém na proteção aos pobres e vulneráveis contra remoções forçadas”. Seus funcionários deveriam ter prestado mais atenção ao que estava acontecendo em Badia East, ressaltou o Painel, dado o longo histórico das autoridades de Lagos na destruição de favelas e na expulsão forçada de pessoas de suas casas.
Um ano após as remoções de Badia East, o banco emprestou US$ 200 milhões às autoridades de Lagos para fortalecer o orçamento do governo do país.
O Banco Mundial disse que “não é parte da demolição” e que aconselhou o governo de Lagos a negociar com as pessoas desalojadas, resultando em compensações para a maior parte daqueles que se declararam prejudicados pelos projetos.
Os casos envolvendo remoções atraem mais atenção, mas as dificuldades mais comuns sofridas pelos que vivem em áreas afetadas pelos projetos do Banco Mundial envolvem perda ou diminuição de renda.
Na costa noroeste da Índia, por exemplo, membros de uma comunidade muçulmana historicamente oprimida queixam-se de que a água quente lançada por uma usina termelétrica a carvão extinguiu os cardumes de peixes e lagostas no golfo, base de seu sustento. O IFC emprestou à Tata Power, uma das maiores empresas da Índia, US$ 450 milhões para a construção dessa usina.
Os Estados Unidos e outros poderes globais criaram o Banco Mundial no final da Segunda Guerra Mundial para promover o desenvolvimento em países destruídos pela guerra e pela pobreza. Desde então, os países membros financiam o banco e votam a aprovação de empréstimos, doações e outros investimentos que somam US$ 65 bilhões por ano.
Em 2014, o banco financiou iniciativas tão variadas quanto treinamento para granjeiros no Senegal e melhorias no sistema de esgoto na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
Em março, o presidente do Banco Mundial, Kim, disse que a demanda para investimento em infraestrutura em regiões necessitadas – para proporcionar água limpa, eletricidade, saúde e outros serviços básicos – vai levar a instituição a financiar um número cada vez maior de grandes projetos que, provavelmente, vão remover pessoas de suas terras ou prejudicar seus meios de sustento.
O Banco Mundial divulgou também um “plano de ação” de cinco páginas e meia com a promessa de melhorar sua fiscalização de reassentamentos. “Nós devemos e vamos fazer isso melhor”, disse David Theis, porta-voz do banco, em resposta às perguntas da equipe de reportagem.
Mesmo tendo prometido rápidas mudanças em seus procedimentos, o banco propôs alterações profundas nas políticas que os fundamentam. Agora está revisando a política de salvaguardas que vai definir a trajetória da instituição nas próximas décadas. Ex-funcionários e também os atuais alertam que as mudanças propostas vão minar o compromisso em proteger as pessoas pobres, que foi a razão de sua criação.
“Eu fico triste de ver que as conquistas das políticas pioneiras do banco estão sendo desmanteladas e desvalorizadas”, diz Michael Cernea, um ex-alto funcionário da instituição que supervisionou as proteções asseguradas nos casos de reassentamento por quase duas décadas. “Os mais pobres e mais vulneráveis é que vão pagar o preço.”
O banco diz que ouviu o feedback e vai lançar um rascunho revisado com “as mais fortes salvaguardas ambientais e sociais”.
História inacabada
No Nordeste do Brasil, um desastre provocado pelo homem no fim dos anos 1970 ajudou a incitar o Banco Mundial a adotar seu primeiro conjunto de proteções sistemáticas para pessoas vivendo no rastro de grandes projetos.
A construção da represa da hidrelétrica de Sobradinho, com financiamento do Banco Mundial, alagou diversas cidades e forçou mais de 60 mil pessoas a deixar suas casas. O reassentamento foi mal planejado e caótico. Algumas famílias fugiram das comunidades quando a água começou a invadir casas e roças, deixando para trás rebanhos inteiros de animais que se afogaram.
O fiasco deu poder a Cernea, o principal sociólogo da instituição, para convencê-la a aprovar pela primeira vez uma política abrangente de proteção às pessoas que têm a vida devastada por seus projetos. Aprovadas em 1980, as novas regras de Cernea basearam-se em uma premissa simples: aqueles que perdem suas terras, suas casas ou seus empregos por causa desses projetos têm de receber o suficiente para recuperar ou superar seu antigo padrão de vida. Sob as regras do Banco Mundial, governos que buscarem empréstimos devem elaborar detalhados planos de reassentamento para as pessoas física ou economicamente desalojadas.
Pessoas que trabalharam ou trabalham no banco, no entanto, dizem que o esforço para cumprir esses padrões tem sido frequentemente minado por pressões internas pela aprovação de projetos grandes e atraentes. Muitos gestores do Banco Mundial, dizem as fontes internas, definem o sucesso da instituição pelo número de projetos financiados. Muitas vezes eles rejeitam exigências que implicam custos e outras complicações.
Daniel Gross, um antropólogo que trabalhou como consultor e funcionário do banco durante duas décadas, conta que órgãos internos de fiscalização das salvaguardas têm “um lugar na mesa” nos debates sobre quanto a instituição deve fazer para proteger as pessoas. Mas, em meio ao esforço pela realização dos projetos, eles são frequentemente ignorados e pressionados para “jogar o jogo e cooperar”.
Em uma pesquisa interna feita no ano passado por auditores do banco, 77% dos empregados responsáveis por garantir a aplicação das salvaguardas disseram acreditar que a direção “não valoriza” seu trabalho. A instituição lançou a pesquisa em março, momento em que reconheceu a fiscalização deficiente da sua política de reassentamento. “As salvaguardas são irrelevantes para os gestores”, disse um funcionário entrevistado na pesquisa.
Sem consolo
Em 2007, uma operação de limpeza da costa financiada por um empréstimo de US$ 17,5 milhões do Banco Mundial atravessou a vida dos moradores de Jala, um pequeno vilarejo às margens do mar Jônico (um braço do Mediterrâneo). Mais de uma dúzia de famílias pobres viviam ali, muitas em casas com cômodos e andares extras para alugar aos turistas.
As autoridades albanesas tinham outros planos para o litoral. Jala parecia ser o local ideal para construir um resort de luxo que atrairia turistas ao país. Decidiram então usar o projeto de recuperação da costa – que era gerido pelo genro de Sali Berisha, o primeiro-ministro da Albânia à época – para realizar o que queriam.
Em uma madrugada de abril, dezenas de policiais invadiram a comunidade tendo como objetivo tomar as estruturas previamente identificadas em fotos aéreas, tiradas durante os voos pagos pelo Banco Mundial. A polícia arrancou os moradores da cama e os forçou a deixar suas casas. As equipes de demolição destruíram casas inteiras e os anexos sob a alegação do governo de que tinham sido construídos sem as permissões necessárias.
Sanie Halilaj gritou quando as equipes botaram abaixo metade da casa onde ela e o marido viveram por mais da metade de um século. “Quando você perde uma pessoa querida, alguém consola você”, disse a senhora de 74 anos em uma entrevista recente. “Mas, quando você perde sua casa, não tem consolo.”
Inicialmente os funcionários do banco negaram a conexão entre as remoções e a operação de limpeza da costa financiada pela instituição. Um ano depois, porém, o Painel de Inspeção encontrou “ligações diretas” entre o projeto e as demolições. O órgão criticou severamente o banco por embarcar em um “esforço sistemático” para dificultar sua investigação, providenciando respostas “às vezes em conflito total com informações factuais conhecidas há muito tempo pela administração”.
Depois de o relatório do Painel ter sido lançado em 2008, o presidente do Grupo Banco Mundial à época, Robert Zoellick, classificou as ações do banco como “aterrorizantes”. Zoellick prometeu que a instituição ia rapidamente “fortalecer a fiscalização, melhorar os procedimentos e ajudar as famílias que tiveram suas construções demolidas”. “O banco não pode deixar isso acontecer de novo”, ele disse.
Sete anos depois, pouca coisa mudou – em Jala, onde os residentes ainda não receberam pagamento pelo que perderam, e no banco, onde a fiscalização continua fraca.
Autoridades albanesas usaram um projeto financiado pelo Banco Mundial para abrir espaço para resort de luxo à beira-mar, derrubando parcial ou totalmente 15 casas na vila de Jala. A casa de Andon Koka foi derrubada e metade da casa de seu irmão (ao fundo), destruída. (Foto: Besar Likmeta / BalkanInsight.com) |
Um relatório interno de 2014 revelou que em 60% dos casos analisados os funcionários do banco falharam em documentar o que aconteceu com as pessoas depois que elas foram forçadas a deixar suas casas e terras.
Setenta por cento dos casos analisados no relatório de 2014 não incluíam nenhuma informação sobre as reclamações das pessoas que afirmavam ter sido prejudicadas pelos projetos, indicando que os mecanismos do banco para lidar com queixas “existiam no papel, mas não na prática”, disseram os críticos internos.
Essas “grandes lacunas de informação” indicam “potenciais fracassos significativos no sistema de reassentamento do banco”, diz o relatório. “A inabilidade de confirmar se o reassentamento foi satisfatoriamente completo representa um risco de reputação para o Banco Mundial”.
“Eles nos abandonaram aqui”
A maior parte dos investimentos do Banco Mundial não exige remoções ou prejudica a habilidade das pessoas de se sustentar e alimentar suas famílias. Mas a porcentagem dos casos em que isso ocorre tem crescido vertiginosamente nos últimos anos.
A auditoria interna de 2012 mostrou que os projetos propostos que ainda não tinham sido aprovados tinham recorrido à política de reassentamento do banco em 40% dos casos – o dobro de frequência dos projetos finalizados.
O Banco Mundial e o IFC têm estimulado também o apoio a megaprojetos, como oleodutos e barragens, que as próprias instituições reconhecem que têm mais chance de causar danos sociais e ambientais “irreversíveis”, como revelou uma análise feita pelo HuffPost e pelo ICIJ.
Um grande projeto pode alterar a vida de dezenas de milhares de pessoas. Desde 2004, as estimativas do Banco Mundial indicam que pelo menos uma dúzia de projetos financiados pelo banco desalojou física ou economicamente mais de 50 mil pessoas cada um.
Estudos mostram que realocações forçadas podem quebrar redes de afinidade e aumentar os riscos de doenças. Populações reassentadas têm maior probabilidade de sofrer com desemprego e fome, e os índices de mortalidade são mais altos.
O Banco Mundial reconhece que o reassentamento é difícil, mas afirma que muitas vezes é impossível construir estradas, usinas de energia e outros projetos muito necessários sem tirar pessoas de suas casas. “Nós mantemos nossa posição diante da necessidade de continuar financiando projetos de infraestrutura, incluindo aqueles que acarretam aquisição de terras e reassentamento involuntário”, disse Theis, o porta-voz do Banco Mundial.
O banco diz que trabalha para garantir que seus clientes forneçam ajuda real às pessoas relegadas ao segundo plano por grandes projetos. Em Laos, diz o banco, autoridades construíram mais de 1.300 novas casas com eletricidade e banheiros, 32 escolas e dois centros de saúde para milhares de pessoas forçadas a se mudar para abrir espaço para uma barragem financiada pelo Banco Mundial.
“Por meio da elaboração cuidadosa do projeto e da implementação adequada, a aquisição de terras e o reassentamento involuntário resultaram em uma melhora significativa na vida das pessoas”, disse Theis em um pronunciamento.
A agrovila da Gameleira fica a aproximadamente 16 km da área urbana do município de Itapipoca, para onde vai a água do açude que desalojou as famílias. (Foto: Ciro Barros) |
Trinta e cinco famílias vivem em uma pequena agrovila construída pelo governo, batizada de Gameleira por causa do açude de mesmo nome que os forçou a deixar suas casas à beira do rio Mundaú.
Nas antigas casas, eles podiam usar água de poços e do próprio rio, mas na agrovila construída para o reassentamento não há fonte de água potável. Num relatório, o Banco Mundial reconheceu o atraso no fornecimento de água potável para a nova vila, mas afirmou que os problemas haviam sido resolvidos no fim de 2012.
Os moradores dizem que isso não é verdade. Quatro anos depois de serem realocados à força, eles ainda estão esperando a construção de uma pequena adutora que levaria água do novo reservatório para a agrovila, prometida pelas autoridades. Enquanto isso, a água do açude está sendo bombeada para áreas urbanas.
Um poço na comunidade fornece água salobra e, mesmo com o dessalinizador, cada família só tem acesso a 36 litros por dia. As famílias complementam o abastecimento comprando água de caminhões-pipa, algumas vezes chegando a gastar um terço de sua renda já modesta.
Essas compras fornecem água suficiente para irrigar pequenas plantações de mandioca, feijão e milho. Para irrigar plantações comerciais, como a de castanha-de-caju, eles precisam esperar pela chuva, que raramente vem.
“Nós sentimos que estamos sofrendo para as pessoas da cidade terem água”, diz o agricultor Francisco Venílson dos Santos, de 39 anos, pai de quatro meninos e duas meninas. “Eles nos abandonaram aqui.”
Atalhos
Em julho de 2012, um líder pouco convencional assumiu a presidência do Banco Mundial. Jim Yong Kim, um médico coreano-americano conhecido por seu trabalho de combate à aids na África, tornou-se o primeiro presidente do Banco Mundial cuja experiência não era em economia ou política.
Duas décadas antes, Kim tinha feito parte de protestos em Washington, D.C., que reivindicavam o fechamento total do banco por valorizar indicadores como crescimento econômico em detrimento da assistência a pessoas pobres.
Defensores dos direitos humanos e funcionários do banco responsáveis pelas salvaguardas esperavam que a nomeação de Kim sinalizasse uma mudança em direção a maior proteção para as pessoas afetadas pelos projetos do Banco Mundial.
Em março, Kim afirmou que estava preocupado com “grandes problemas” na fiscalização das políticas de reassentamento do banco e anunciou um plano de ação pedindo maior independência para os órgãos que fiscalizam as salvaguardas e um aumento de 15% no financiamento para incentivar a aplicação das regras.
Mas, embora Kim e outros funcionários graduados do banco reconheçam diversas deficiências no controle dos projetos financiados, eles negaram de forma consistente que o banco tenha parte da culpa por remoções violentas ou indevidas feitas por seus clientes.
Na Etiópia, o Painel de Inspeção do Banco Mundial descobriu que a instituição violou as próprias regras ao deixar de reconhecer uma “ligação operacional” entre uma iniciativa de saúde e educação financiada pelo banco e uma campanha de remoção em massa feita pelo governo etíope. Em 2011, os soldados responsáveis pelas remoções espancaram, estupraram e mataram pelo menos sete pessoas, de acordo com um relatório da Human Rights Watch e entrevistas feitas pelo ICIJ com removidos.
“Nós poderíamos ter feito mais”, disse Kim, para ajudar as comunidades removidas. Em última instância, o banco não era culpado.
Na Índia, o ombudsman interno do IFC descobriu que a instituição tinha infringido suas políticas ao não fazer o suficiente para proteger a grande comunidade pesqueira vivendo sob a sombra da usina termelétrica a carvão financiada no golfo de Kutch. Com a aprovação de Kim, a direção do IFC rejeitou muitas descobertas do ombudsman e defendeu as ações do seu cliente corporativo.
Tanto na Etiópia quanto na Índia, o Banco Mundial se recusou a determinar que seus clientes compensassem totalmente as comunidades afetadas.
Em resposta às reclamações sobre as remoções de Badia East, na Nigéria, o Banco Mundial optou por um atalho que contradiz suas regras.
Normalmente, a comunidade que se considera prejudicada por um projeto do banco pode enviar uma reclamação, desencadeando uma investigação do Painel de Inspeção. Mas, quando três moradores de Badia East apresentaram a reclamação, funcionários do Painel adiaram o lançamento da queixa e a investigação. Em vez disso, levaram os moradores para participar de um programa piloto de mediação de disputas. O programa coloca a comunidade para negociar diretamente com o governo estadual de Lagos.
O Painel de Inspeção prometeu a Megan Chapman, uma advogada de uma organização local que representava os moradores removidos, que, se a comunidade de Badia East não ficasse satisfeita com o resultado, poderia demandar uma investigação a qualquer momento, de acordo com e-mails analisados pelo ICIJ.
As negociações não ocorreram bem para os residentes removidos. O governo de Lagos insistiu que eles eram invasores ilegais, ainda que alguns morassem no local havia décadas. E deu um ultimato ao grupo: aceitar um pagamento pequeno e assinar um documento abrindo mão de seus direitos legais ou ficar sem nada.
Chapman acredita que a oferta do governo violou a política de reassentamento porque não forneceu novas casas para os removidos nem compensação equivalente ao que eles perderam. Os pagamentos que as autoridades de Lagos ofereceram para estruturas maiores removidas, por exemplo, foram 31% mais baixos do que a avaliação do próprio Banco Mundial.
“Foi como Davi e Golias. Eram pessoas pequenas lutando contra um gigante”, disse Chapman. O banco “realmente deixou pessoas vulneráveis por conta própria”.
O ultimato do governo dividiu a comunidade. O líder da organização de Chapman disse que aquela era a melhor oferta que as pessoas removidas iam receber. Ele disse que estava satisfeito com o acordo. Muitos moradores e seus defensores, incluindo Chapman, foram contra.
Mas eles não tinham onde buscar ajuda. E-mails internos obtidos pelo ICIJ indicam que, no começo de 2014, o presidente do Painel de Inspeção, Eimi Watanabe, já estava tentando garantir que não se investigasse o papel do Banco Mundial no caso.
Depois de ter ouvido que o líder do grupo de Chapman estava satisfeito com o resultado das negociações, Watanabe encorajou sua equipe a emitir uma notificação oficial encerrando a possibilidade de qualquer investigação antes que o frágil acordo se desmantelasse, segundo os e-mails obtidos pelo ICIJ.
“Pl [por favor] emita uma notificação mais cedo, antes que isso se desenrole”, Watanabe escreveu em 6 de fevereiro de 2014.
A diretiva de Watanabe não acabou com a investigação imediatamente, mas ao longo dos meses seguintes o Painel deixou claro que não queria investigar mais a fundo as ações do Banco Mundial.
Em julho de 2014, dois dos três moradores que tinham enviado a reclamação disseram ao Painel que estavam insatisfeitos com o acordo e que queriam continuar com a investigação. O Painel rejeitou o pedido e fechou o caso com uma notificação oficial, afirmando que o reassentamento ficou aquém dos padrões do próprio banco.
Chapman e outros defensores dizem que o banco os enganou em relação ao funcionamento do programa piloto e abandonou o povo de Badia East.
Watanabe não respondeu às perguntas do ICIJ sobre o caso de Lagos.
O banco disse que o Painel de Inspeção tinha fechado o caso por causa “do progresso alcançado e a rápida provisão de compensações para as pessoas removidas”. Ele planeja expandir o programa piloto e já aplicou o modelo em um segundo caso no Paraguai.
Tempo futuro
Ao entrar em sua oitava década, o Banco Mundial enfrenta uma crise de identidade.
A instituição não é mais o único emprestador disposto a se aventurar em nações em desenvolvimento e financiar grandes projetos. Ela está sendo desafiada por novos competidores de outros bancos de fomento que não têm as mesmas garantias sociais – e estão rapidamente obtendo adesão dos que costumavam apoiá-la.
A China criou um novo banco de desenvolvimento e persuadiu a Grã-Bretanha, a Alemanha e outros aliados dos americanos a se juntar, apesar da oposição dos EUA.
Essas mudanças geopolíticas levantaram dúvidas sobre se o Banco Mundial ainda tem a influência – ou o desejo – de impor proteções fortes às pessoas que vivem no caminho do desenvolvimento.
Responsáveis por direitos humanos da ONU escreveram a Kim para dizer que estão preocupados com a facilidade cada vez maior dos clientes em acessar outras fontes de financiamento e impulsionou o banco a se juntar a uma “corrida para o fundo”, rebaixando ainda mais seus padrões de proteção.
As mudanças nas regras das salvaguardas propostas pelo banco garantiriam a muitos clientes a autoridade para se autopoliciar. No atual rascunho, seria permitido aos governos adiar a elaboração de planos de reassentamento até depois de o banco dar o sinal verde aos projetos. Eles teriam também a permissão para usar as próprias políticas ambientais e sociais em vez das salvaguardas do banco, contanto que este determine que essas políticas são condizentes com as suas próprias.
Alguns funcionários e ex-empregados da instituição dizem que essas mudanças resultariam em desastres para as pessoas que vivem no rastro cada vez maior dos projetos do banco – permitindo que os governos sigam padrões nacionais mais fracos e decidam se as populações precisam de proteção depois que eles já receberam financiamento.
Em dezembro, o Congresso americano, o grande esteio do Banco Mundial, aprovou uma medida orientando o representante dos EUA no conselho do banco a votar contra qualquer projeto futuro que esteja sujeito a salvaguardas mais fracas do que as atuais.
O banco disse que as novas regras fortaleceriam as proteções para as pessoas afetadas por esses projetos.
Theis, o porta-voz da instituição, disse que, sob as novas regras, “um adiantamento rigoroso do escopo dos projetos é sempre necessário” e os clientes ainda precisam preparar planos para tratar do reassentamento e outros impactos adversos do projeto “muito antes de qualquer atividade de construção”.
Funcionários do Banco Mundial estão desenhando uma nova versão das salvaguardas que, dizem, levará em conta as críticas do rascunho anterior. Eles esperam lançar o novo rascunho no fim deste semestre ou durante o verão americano.
No meio-tempo, o Banco Mundial continua aumentando seus investimentos em grandes projetos de infraestrutura, como o que destruiu a casa de Bimbo Osobe em Badia East.
Depois de sua remoção, Osobe passou meses dormindo embaixo de uma rede que servia de abrigo, ela disse.
No meio de março, ela estava ficando em uma clínica médica, dormindo na recepção, depois de fechar, à noite. Ela conta que foi forçada a mandar os três filhos para viver com parentes.
“Não é uma coisa boa para uma família ser dividida”, disse Osobe.
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Como o Banco Mundial quebrou sua promessa de proteger os pobres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU