Por: Cesar Sanson | 13 Setembro 2013
“O velho precisa aprender com o novo”. A opinião é do escritor e jornalista uruguaio Raúl Zibechi, especialista em processos organizativos de movimentos sociais latino-americanos, se referindo a atual conjuntura da luta popular no Brasil após as manifestações de junho.
Para ele, que esteve presente na Escuelita Zapatista, em Chiapas (México), existe, em boa parte da luta social, uma rejeição forte em relação à aliança entre a burguesia e a elite sindicatal no país. “A vida dos pobres tem melhorado, mas não o seu lugar na estrutura”, ressalta em entrevista à Waldo Lao e publicada pelo Brasil de Fato, 12-09-2013. A tradução é de Fábio Alkmin.
Confira a entrevista.
Raúl, você apresentará em várias universidades na Cidade do México seu mais recente livro, chamado Brasil potência. Como você vê as manifestações que vêm ocorrendo desde junho no Brasil?
Maravilhosas. Parece-me que pela primeira vez desde 1989, de maneira muito superior às manifestações contra Fernando Collor de Mello, em 1992, o Brasil presencia uma grande mobilização urbana. Tenho a impressão de que o núcleo de resistência se move do campo para a cidade. Eu acho que há uma mudança, uma grande mudança política no Brasil, e isso é um acumulado da resistência à construção da usina de Belo Monte e da resistência do Movimento Passe Livre (MPL), que se organizam em dezenas de cidades.
E as críticas que diziam que lutavam por apenas “20 centavos”?
Não, não. De forma alguma. É algo muito mais profundo. É possível dizer que é uma luta contra o consenso lulista, entendido como a aliança das elites que gerou Lula ou o PT de gênero, que consiste em uma integração da elite sindical e da administração petista do aparato de governabilidade. Há uma rejeição forte em relação a isso. A vida dos pobres tem melhorado, mas não o seu lugar na estrutura; são pobres, comem melhor, vestem-se melhor, mas o seu lugar estrutural continua sendo a precariedade, que hoje se manifesta no transporte, dentre outras coisas. Então eu estou muito feliz com essa série de movimentos que ocorreram. Claro que, agora, os protestos caíram, mas imagine os núcleos do MPL no Brasil, em São Paulo ou Rio de Janeiro, grupos pequenos de 20 pessoas, no máximo, fortaleceram-se.
Como podemos definir estas novas manifestações, este algo “novo”?
Creio que o que está nascendo no Brasil é uma nova cultura política, ou uma nova cultura de protesto, que o MPL encarna de maneira muito clara, a partir da horizontalidade, da autonomia, de um apartidarismo que não é antipartidarismo, e o federalismo. Parece-me que é a primeira vez que isso ocorre, desde que o MST renovou a cultura política brasileira no início dos anos 1980, renovando a cultura de lutas, com os assentamentos, acampamentos, ocupando, resistindo, produzindo, com todo um estilo.
Agora, isso se manifesta nas áreas urbanas, onde os jovens se formaram de outra maneira, onde há por exemplo uma cultura do Hip Hop, uma cultura dos grupos autônomos. Essa cultura política do MST, da qual vêm muitos deles, enraizada nas cidades, deu outra coisa, distinta do MST, nem melhor, nem pior, senão diferente, que já tem o seu próprio caminho; já não são dependentes do apoio do MST. Há um movimento urbano que caminha, e espero que o MST o acompanhe; eu creio que sim.
Como é que se encaixam esses movimentos sociais com essas novas manifestações?
Olha, vou tocar em um tema muito crítico que depois lhe contextualizarei. No dia 24 de junho, em plena onda de manifestações, acontece a chacina da Maré, em Nova Holanda, com 11 mortos pelo BOPE. Em 11 de julho, quando os sindicatos fazem sua pauta de reivindicações, não mencionam a questão da militarização, não mencionam a chacina da Maré. É uma pauta de reivindicações basicamente corporativa. Eu penso que a cultura sindical tradicional, especialmente os sindicatos que hoje lutam, como a Conlutas e a Intersindical, necessitam se vincular a esses novos movimentos. Assim com também deveria fazê-lo o MST, que eu acho que é o único que tenta.
Do meu ponto de vista e com a maior humildade, creio que o MST foi o movimento mais importante da América do Sul. Todos temos aprendido e seguiremos aprendendo dele, mas hoje é importante potencializar essas lutas. O MST está em condições de se relacionar, de aprender com essa nova cultura política da juventude urbana; creio que pode fazê-lo, porque possui a ética de luta anticapitalista da mesma maneira que o MPL e esses outros movimentos também possuem. Eles estão tensionando um núcleo duro do capitalismo, que é a acumulação por espoliação urbana, na qual se enquadram as megaobras da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, o sistema de transporte excludente que possui o Brasil e etc. Portanto, há um desafio, que não é fácil assumir; sempre o novo questiona o velho: eu sou velho e o novo me questiona. Devemos aprender com este “novo”.
Em seu livro Pobreza e Política há uma frase que eu acho muito interessante, você escreve: “A América Latina é um laboratório de resistências sociais e, paralelamente, também é um laboratório de programas para aplicar à insurgência social.” Poderia nos falar um pouco sobre o tema das políticas sociais assistencialistas?
Olha, tenho visto isto em muitas comunidades hoje em dia: você tem uma comunidade zapatista e ao lado uma comunidade do PRI (Partido Revolucionário Institucional), que tem casas de alvenaria, aparentemente muito bonitas. As políticas sociais são uma forma de dividir as pessoas e acalmá-las. No caso do Brasil, existe uma gigantesca política social, o Bolsa Família por exemplo, que chega a milhões de famílias; sem este programa o Brasil estaria vivenciando um conflito social muito forte.
As políticas sociais surgem para controlar os pobres, deve-se entendê-las a partir desse ponto de vista. É bom que o Estado dê dinheiro aos pobres, mas o que deve dar, como disse Hugo Chávez, é poder: para combater a pobreza os pobres têm que ter poder. Aqui está, a meu ver, uma compreensão equivocada de boa parte da esquerda do continente de ver as políticas sociais como conquistas, quando são, na verdade, laboratórios de cooptação de pobres. Mas as políticas sociais também têm limites muito graves e agora nos deparamos com este novo desafio. Agora que sabemos que as políticas sociais são limitadas para mudar a estrutura do problema.
Bom, sabemos que os governos progressistas são muito melhores do que os governos conservadores, mas eles têm sérios limites e esses limites não vão ser quebrados pelos velhos movimentos ou sindicatos, mas sim por uma nova agenda. O que acontece é que quando os jovens saem às ruas já não saem disciplinados como anteriormente, saem de outra maneira, e isso choca, às vezes incomoda; é claro que a direita se utiliza disso, mas esse é um risco que sempre corremos.
Creio que estamos em uma nova fase e o Brasil é um exemplo disso. Estamos em uma nova fase em todos os lugares. No Chile há uma nova geração de movimentos sociais, com os estudantes, com os Mapuche. No Peru temos uma nova geração também, a resistência à mineração em Conga, os guardiões dos lagos etc. Nesse terreno estamos diante de uma nova situação e isso é para se alegrar e para ver como aprendemos, como nos reajustamos a esta nova situação.
Se com a aplicação dessas políticas alguns movimentos perdem espaço, então, quais estão ganhando?
Bem, quando se trata de movimentos, devemos ver de quem estamos falando. Falando dos novos movimentos, refiro-me ao MPL, aos Comitês da Copa, aos sem-teto, aos movimentos urbanos. Eles estão ganhando uma compreensão do que seria o agronegócio urbano, pois os megaprojetos são o agronegócio urbano, aqui é onde vem o novo. Imagine se favelados começam a tomar as ruas. Você pode imaginar isso? Eu acho que seria quase uma guerra, mas apenas a classe média tem o direito de sair às ruas, os sindicatos, os sem-terra. O que acontecerá quando você deixar sair os favelados? Eles não vão sair em filas como o MST, vão sair de outra forma, porque é outra cultura. A cultura política dos favelados é aquela em que não se tem nada a perder, a não ser suas correntes.
Uma jornalista brasileira disse recentemente que quando há manifestações na avenida Paulista, a polícia responde com gás e balas de borracha, mas quando há manifestações na favela, há balas de verdade. Isto demonstra que são dois espaços diferentes. Temos que escolher,sem cálculos mesquinhos, o que eu perco ou o que ganho, de que lado estamos.Isso é um pensamento de um revolucionário. Onde me coloco? Se não estamos lá, estamos deixando órfãos de políticas revolucionárias os favelados .
E para terminar Raul, conte-nos um pouco sobre sua experiência na Escuelita Zapatista. O que é liberdade segundo os zapatistas?
Bem, a liberdade para os zapatistas é a opção pela revolução por um mundo novo. O que eu vi foram muitas comunidades com uma grande força interior, com uma decisão de ir até o fim, isso eu vou deixar bem claro, eles derrotaram as políticas sociais. De uma comunidade de 100 famílias, restaram apenas 15 famílias zapatistas. Existem outras comunidades que são inteiras zapatistas. Outras que se perderam. Há de tudo. É o preço a se pagar para superar, neutralizar e derrotaras políticas sociais assistencialistas. Deve ter sido muito difícil para eles, mas por isso estamos aqui. O que eu vi, um poder autônomo, uma economia autônoma, eles são autossuficientes, sim, na pobreza, mas eles comem, educam-se, cuidam de sua saúde e defendem seu território sem o apoio do Estado. Têm seus campos de milho, café, feijão, gado; têm pequenas vendas cooperativas nas comunidades zapatistas, onde compram o que não podem produzir: sal, óleo, açúcar, sabão; não têm que ir para o mercado capitalista. O que está lá é uma outra maneira de se organizar socialmente, uma revolução.
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“No Brasil, uma nova cultura política e de protesto” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU