25 Setembro 2012
A comunidade jurídica em peso está mobilizada contra o projeto do novo Código Penal, apresentado pelo senador José Sarney (PMDB-AP). Representantes de entidades ligadas à advocacia, o Ministério Público do Estado de São Paulo e a Defensoria Pública paulista organizaram o "Ato em Defesa do Direito Penal: Crítica ao Projeto Sarney". São 19 entidades contrárias ao texto, que devem formalizar um manifesto pela paralisação de sua tramitação no Senado. Entre elas, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
O movimento é liderado, entre outros, pelo jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, professor decano e chefe do departamento de direito penal da Faculdade de Direito da USP, que faz severas críticas ao projeto. Em entrevista ao Valor, Reale Júnior é enfático ao afirmar que não há como consertar o texto. "Só jogando no lixo e fazendo um novo", diz. Por isso, defende a retirada da proposta da pauta do Senado.
De acordo com o jurista, que participou de várias comissões de elaboração legislativa para a reforma do Código Penal, - entre elas a de 1984 e a de 1996 -, há erros gravíssimos em todo o texto, que atentam contra a segurança de toda a população. Entre os muitos vícios, está a falta de proporcionalidade entre crimes e penas. Ele cita, por exemplo, o artigo 394, que prevê uma pena de um a quatro anos para quem deixar de prestar assistência ou socorro a qualquer animal. Por outro lado, a omissão de socorro à criança abandonada ou extraviada ou à pessoa inválida ou ferida seria punida com prisão de um a seis meses ou multa.
A entrevista é de Adriana Aguiar e publicada no jornal Valor, 24-09-2012.
Reale Júnior critica ainda o fato de o texto incluir altas penas para aquele que molestar ou pescar um cetáceo. Pode-se ficar quatro anos na prisão pela morte de uma baleia ou golfinho. Uma pena muito superior a de agressão grave cometida contra um humano.
Também há erros, de acordo com Reale Júnior, na parte que trata de crimes cometidos na área empresarial. O texto inclui, por exemplo, o crime de corrupção privada, quando algum funcionário recebe uma vantagem em prejuízo da empresa. Nesse caso, porém, segundo o projeto, apenas o representante legal pode ser responsabilizado. O que, para o jurista, torna o dispositivo inaplicável. "Qualquer funcionário da empresa deveria poder responder."
Eis a entrevista.
Qual o objetivo do ato contra o projeto do novo Código Penal?
Organizamos a manifestação para mostrar força e alertar a nação e o Senado sobre os perigos desse código. O texto apresenta erros gravíssimos de termos e conceitos jurídicos. Ao mesmo tempo, cria penas elevadas e permissões inaceitáveis. De um lado, pune gravemente a difamação praticada por jornalistas, com penas de dois a quatro anos, quando a Lei de Imprensa, considerada de cunho autoritário, previa de um a três meses. De outro, permite a eutanásia praticada pela família, sem a exigência de um diagnóstico médico, desde que a vítima esteja em estado terminal. É um projeto com absoluta falta de nexo.
Existe uma oposição generalizada contra o projeto?
Sim, uma oposição generalizada.
Seria possível consertar o texto?
Não. Só jogando no lixo e fazendo um novo. Não tem outro jeito. É inconsertável. Por isso, o ato a favor de paralisar o projeto. Rebatem as críticas dizendo é que eu gostaria de fazer parte da comissão. Como se eu estivesse preocupado com isso. Já sou decano da Faculdade de Direito da USP, tenho 68 anos. Eu já fui de tantas comissões neste país. Eu já tenho meu nome gravado na elaboração legislativa e, se fosse um bom código, eu estaria aplaudindo. Até porque acho necessária a modernização do Código Penal. Só que isso tem que ser feito com muito cuidado.
De que forma isso poderia ser feito?
Existem jovens penalistas de grande competência, que deviam fazer parte de uma nova comissão. Entreguem isso para os jovens, como fizeram comigo quando eu era jovem. Eu fiz parte da comissão para reformar a parte especial do código em 1984, e depois em 1989. Mas todos esses anteprojetos eram publicados para serem submetidos à apreciação, à critica, à comissão revisora. Tinham um longo caminho para percorrer.
Não havia bons nomes na comissão?
O ministro Gilson Dipp, que foi um grande corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é um nome de relevo, mas não é penalista. O relator geral é o procurador regional da República Luiz Carlos Gonçalves. Alguns advogados tiveram participação pequena. O professor Luiz Flávio Gomes participou e, em manifestação no seminário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), disse que foi vencido em grande parte das propostas. O professor René Dotti se afastou em março em consequência da forma como se realizavam os trabalhos. Eram aprovações em massa, muitas vezes por e-mail. Os artigos foram sendo colocados e resultou nesse código sem nexo.
Não houve consulta popular?
Não ouviram a comunidade jurídica e nem a sociedade em geral. O que ouviram foram os grupos de pressão, que foram defender a criminalização de certos atos, de acordo com seus interesses. Mas um código não se faz assim. A assessoria de imprensa do Senado dava notícia de cada proposta mirabolante que estava sendo discutida, mas dava em pílulas, ninguém podia dizer nada porque não conhecia o todo.
O senhor considera que a elaboração do texto foi feita às pressas?
Membros da comissão me contaram que eles recebiam as propostas por e-mail e tinham três dias para responder, caso contrário tinha-se por aprovadas. Tanto que a exposição de motivos do projeto é parcial. Cada um fez o texto do artigo que propôs. Não há uma preocupação com o conjunto. Isso vai ser uma bomba relógio no aumento da população carcerária. E feito às pressas para quê? Todos estão intensamente preocupados. Até porque um Código Penal interfere diretamente na segurança e na liberdade.
O código aumenta as penas para a maioria dos crimes?
No caso do roubo, por exemplo, a pena foi reduzida de quatro para três anos. Mas a penas para quem pescar ou molestar um cetáceo é de dois anos de prisão. Se o golfinho é filhote, são três anos. Se a baleia morre, a pena é de quatro anos, uma pena muito superior da de quem fura um olho do outro.
Quais são os outros problemas do projeto?
São tantos. Eu digo para não se assustarem com o absurdo que estarão lendo. Leia o artigo seguinte. O projeto prevê, por exemplo, que quem deixar de prestar assistência a um animal em perigo pode pegar uma pena de um a quatro anos. Porém, quando a omissão de socorro envolve uma criança abandonada, a pena é de um a seis meses. Não tem coerência.
E com relação aos crimes empresariais?
A comissão resolveu definir novamente gestão fraudulenta, que já tem uma definição criticada na Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro. No projeto, a gestão fraudulenta consiste, no artigo 154, em praticar ato fraudulento na gestão de instituição financeira. Dessa forma, ato fraudulento pode ser tudo. É, por exemplo, um presidente atestar a presença da secretaria que faltou durante um mês. Isso é um ato fraudulento, mas que nada tem a ver com preservação da higidez da instituição financeira. É completamente genérico. Assusta pela absoluta impropriedade.
Há outros vícios nessa área?
No artigo 167, a comissão, ao tratar de corrupção privada, define que comete esse crime o representante legal. Mas esse tipo de crime, quando alguém recebe uma vantagem em prejuízo da empresa, como venda com sobrepreço ou compra de uma mercadoria a mais do que o necessário e o fornecedor dá uma gratificação para o empregado, pode ser praticado por qualquer um. Pelo presidente, pelo gerente ou por um almoxarife. Não se pode limitar isso ao representante.
Qual o impacto para as empresas?
Somente o representante legal iria responder pelo crime. O sujeito poderia, então, deixa de ser o representante legal, colocar alguém para responder pela companhia. O crime poderia, então, ser cometido por todos aqueles que são da empresa e não são representantes. O tipo penal vai ser inaplicável.
O que pode ocorrer caso o projeto seja aprovado dessa forma?
Vai ser uma balbúrdia, uma insegurança total. As pessoas não saberão se estão praticando crime. A omissão da pessoa que vê um crime, por exemplo, seria considerada coautoria, segundo o artigo 17. Isso é gravíssimo. Qualquer policial ou pessoa pode ser considerado coautor porque tinha o dever de agir para evitar o crime. É uma loucura. Não tem nexo. Foram mexer em questões delicadíssimas sem conhecimento técnico.
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Reale Júnior pede retirada de novo Código Penal da pauta do Senado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU