"A luta pela terra, tanto na Bíblia como nos tempos atuais, demonstra que o protagonismo das mulheres tem sido imprescindível nas lutas pela libertação da terra das garras do latifúndio, tendo, inclusive, muitas delas sido martirizadas por este compromisso, como, por exemplo, Margarida Alves e a Irmã Dorothy Stang", afirma Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.
Em setembro de 2022, Mês da Bíblia, o tema bíblico sobre o qual a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) convida todas as pessoas e comunidades cristãs a refletir será o livro de Josué. No sexto e último pequeno texto com chaves de leitura para se ler e interpretar de forma justa e libertadora o livro de Josué apresentamos as Mulheres no volante da luta pela terra.
Na época do pós-exílio, quando o livro de Josué já estava pronto, com as três edições, as mulheres, autoras dos livros de Rute e Cântico dos Cânticos (em + ou – 400 a.E.C.), podem ter inserido, nos primeiros capítulos do livro, escritos na época do rei Josias (640 a 609 a.E.C.), os relatos sobre Raab (Js 2; 6,17.22). Em Js 2, portanto, temos a saga de Raab, em que o clã de uma mulher marginalizada por sua condição social se alia aos hebreus para derrubar a classe dominante da cidade de Jericó e construir uma sociedade alternativa justa e democrática com acesso de todos/as à terra (Js 6,17.22-25). A saga de Raab aglutina inúmeras experiências de grupos cananeus submetidos a relações sociais escravocratas (hapirus) que se integram no povo liberto por Javé da escravidão sob o imperialismo dos faraós no Egito.
No capítulo II do livro de Josué: Raab é duplamente oprimida, por ser mulher e por ter sido empurrada para a prostituição, isto é, prostituída. Em Canaã, a cidade-estado Jericó precisa de Raab, mas como objeto de prazer, coisificada, violada na sua dignidade humana. Raab representa os explorados da cidade-estado, diríamos hoje, das cidades-mercado. Ela se alia aos camponeses expropriados e transformados em sem-terra, porque está indignada com a opressão que se abate sobre si mesma e sobre seu clã. Raab vê no movimento dos rebeldes que marcharam “40 anos pelo deserto” em busca da terra prometida uma alternativa para a construção de relações sociais justas que iria resultar em libertação para ela e para os superexplorados da cidade. Raab descobre que não pode continuar submissa à opressão da cidade e nem ficar neutra diante do iminente embate entre o status quo da cidade opressora e os revoltosos vindos das montanhas e do deserto.
Pressupondo que o capítulo I de Josué também tenha sido acrescentado posteriormente, tem-se hoje a verdadeira porta de entrada do livro de Josué, na primeira versão, em Js 2, com a emblemática narrativa popular, em forma de saga, sobre Raab, que acolhe e protege os espiões da luta pela terra, com muita astúcia, adere à fé em Javé e ao final, é preservada, ela e todo o seu clã. Essa narração, logo no início do livro de Josué pode indicar que de fato a luta pela terra, ao se tornar exitosa não tenha implicado na eliminação de “todos os habitantes”, mas apenas deposto a classe dominante do poderio escravocrata que exercia sobre os grupos marginalizados nas periferias da cidade e nas regiões rurais montanhosas. Js 2, por ser do gênero literário saga indica que a narrativa de Raab representa as experiências congêneres de vários grupos: os escravizados sob o imperialismo dos faraós no Egito, os camponeses empobrecidos e seminômades surrados pelas Cidades-Estados sob o arbítrio dos reis cananeus e grupos urbanos explorados, representados por Raab. Javé liberta todos estes grupos subalternizados e agora irmanados para conviverem de forma fraterna e respeitosa.
As narrativas sobre Raab, a estrangeira prostituída (Js 2,1-21; 6,17.22-25), propõem a superação de um “povo de Deus” etnocêntrico e a abertura a “povos de Deus” irmanados na luta pela terra e pela sua partilha para ser espaço de vida em usufruto e jamais como mercadoria passível de ser vendida ou comprada.
O livro de Josué nos informa que várias outras mulheres conspiravam, irmanadas na luta pela terra, assim como Raab. São elas: Acsa, filha de Caleb, que reivindica terra com poços/fontes de água (Js 15,16-19; Jz 1,12-15; 1Cr 2,49), Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa, filhas de Salfaad, que reivindicam o direito das mulheres à terra como herança (Js 17,3-6; Nm 26,33; 27,1-11; 36). A luta pela terra, tanto na Bíblia como nos tempos atuais, demonstra que o protagonismo das mulheres tem sido imprescindível nas lutas pela libertação da terra das garras do latifúndio, tendo, inclusive, muitas delas sido martirizadas por este compromisso, como, por exemplo, Margarida Alves e a Irmã Dorothy Stang.
Dia 13 de agosto último (2022), tive a alegria de visitar uma camponesa exemplar na luta pela terra e na terra: Santana, companheira de João, assentada no Assentamento Paulo Freire, no município de Arinos, no noroeste de Minas Gerais. Santana e João nasceram na roça no distrito de Serra das Araras, atualmente município de Chapada Gaúcha, MG. Como jovens foram forçados a migrar para Brasília, onde João se tornou pedreiro, e Santana, doméstica e depois diarista. Após mais de dez anos de labuta na capital do Brasil como doméstica e diarista, Santana, já com três filhos pequenos, vendo e sentindo as agruras de mães da periferia que não conseguiam salvar seus filhos adolescentes diante das seduções do submundo das drogas e da falta de oportunidades para educar os filhos com dignidade, ela pensou consigo mesma e disse ao João: “O melhor lugar para criar nossos filhos é na roça, no campo, não é aqui na cidade. Quero entrar na luta pela terra junto com os sem-terra do MST1.” João não se opôs. Com dois filhos pequenos, Santana acampou debaixo do barraco de lona preta em um acampamento no município de Uruana de Minas, vizinho do município de Arinos, no noroeste de MG. Após três anos de muita luta, Santana conseguiu ser assentada no Assentamento Elias Alves, em Uruana de Minas, mas em um lote que não tinha água. Depois, Santana e João conseguiram se transferir para um lote que nenhuma família estava aceitando no Assentamento Paulo Freire, no município de Arinos. Trocaram um lote que não tinha água por um lote que em parte do ano fica alagado pelas enchentes do rio Urucuia que represa o rio Claro. De 2012 pra cá, Santana e João se tornaram um ótimo exemplo de reforma agrária. Toda quarta-feira e aos domingos, Santana, em uma motocicleta, leva cerca de 110 quilos de feijão, abóbora, ovos, queijo etc para vender na feira dos Pequenos Agricultores na cidade de Arinos. João diz feliz da vida: “Uma família assentada como a nossa alimenta cinco famílias lá na cidade. E mais: gera saúde também para o povo lá da cidade, pois nossa plantação aqui é toda agroecológica.”
Enfim, a luta pela partilha da mãe terra em usufruto passou por Raab e por muitas mulheres da Bíblia e da história da humanidade e hoje passa por Santana e João. Assista abaixo videorreportagem que gravei com Santana e João.
1 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (acesse aqui)