01 Junho 2022
A fome no Brasil de hoje é um “fenômeno nacional”, ou seja, há tanta gente em situação de fome no Sul e no Sudeste quanto no Norte e Nordeste, explica Tereza Campello, professora, pesquisadora e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo de Dilma Rousseff.
O cenário, entre outras coisas, é resultado do desmonte de políticas sociais e da falta de atuação do governo Bolsonaro durante a pandemia, já que o “próprio Estado era um agente desorganizador do combate à pandemia”, analisa a economista, que integrou a equipe que criou o Bolsa Família, em 2003, durante o governo Lula, e coordenou a criação do Plano Brasil Sem Miséria, em 2011, no governo Dilma.
O enfrentamento à fome em um novo governo deveria tomar uma série de medidas, avalia Campello, em entrevista ao Joio. “A começar olhando para as políticas exitosas e reconhecidas pela FAO para que a gente tivesse tido tanto sucesso na superação da fome ao longo daqueles 13 anos”, diz.
Tereza Campello, professora, pesquisadora e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo de Dilma Rousseff. (Foto: Divulgação | Rede Brasil Atual)
Embora avalie que não se alimenta hoje o Brasil sem parte da produção do agronegócio, Campello defende a necessidade de democratizar a terra no Brasil.
“Hoje tem uma parcela da população no campo que produz alimentos, com milhões de propriedades, mas numa área minúscula. E meia dúzia de milionários donos de um território gigantesco. Então existe a necessidade de se rediscutir a questão fundiária no Brasil.”
Tereza Campello atualmente coordena a Cátedra Josué de Castro, da Universidade de São Paulo.
A ex-ministra concedeu entrevista a João Peres, Marcos Pomar e Tatiana Merlino do portal O Joio e o Trigo, 31-05-2022.
Qual é a diferença entre o cenário da fome encontrado em 2003, no primeiro governo Lula, e hoje?
Em dezembro de 2020, a Rede Penssan [JP2] fez uma pesquisa nos mesmos moldes que o IBGE faz, que é utilizando a Escala Brasileira de Segurança e Insegurança Alimentar, chamada de Ebia. Comparando a Ebia de dezembro de 2020 com a de 2004, a situação é gravíssima em todos os cenários.
Quando o presidente Lula assumiu, a gente tinha em torno de 36% da população em situação de insegurança alimentar – computando os que passavam fome, aqueles em insegurança alimentar moderada e insegurança alimentar leve.
Em dezembro de 2020, eram 55%. Portanto, pula 20 pontos percentuais. Um salto gigantesco. Do ponto de vista geral, o quadro é muito pior em 2020.
Hoje, deve estar tão ruim ou talvez até um pouco pior frente ao fato de que temos um período prolongado de alto desemprego e uma população que foi tirada de qualquer programa de transferência de renda.
Algumas questões específicas que marcam 2020 também mostram a piora do quadro. Em 2004, havia uma fome muito localizada no Norte e no Nordeste do país. A fome hoje no Brasil é um fenômeno nacional. Há um número de pessoas em situação de fome no Sul e Sudeste similar ao do Norte, Nordeste.
A terceira questão é que é uma fome com uma característica urbana muito forte. E neste período, a população já se encontra numa fase mais avançada da transição alimentar: tem passado crescentemente a se alimentar com produtos ultraprocessados. Há um aumento da população em insegurança alimentar convivendo com o aumento da população em situação de sobrepeso e obesidade.
O quadro geral de saúde dessa população também é pior. Isso não é uma questão menor, porque convive no mesmo corpo, muitas vezes, o sobrepeso com a fome.
De 2003 para hoje, o cenário mudou economicamente e politicamente. Era mais fácil fazer política pública naquela época?
Existia um nível de dificuldade grande em 2003 e 2004, mas tinha uma parcela da política pública ligada à segurança alimentar e nutricional.
Foi a primeira vez que aconteceu no Brasil um chamamento para que o Estado brasileiro como um todo, portanto os órgãos públicos, as estatais, os equipamentos nos estados, nos municípios ou servidores públicos, o conjunto dos recursos fossem direcionados para enfrentar um grande problema.
A Conab era um equipamento histórico do Estado brasileiro. Ela não era voltada para comprar produtos da agricultura familiar. E ela passou a ser utilizada pelo governo para executar o Programa de Aquisição de Alimentos. Não foi fácil. Mas foi possível fazer isso.
Hoje, uma parte desses equipamentos está completamente desmontado. Hoje, o Estado não só está despreparado como parte do Estado não existe mais. Então, sim, hoje é mais difícil do que em 2004.
O que a gente tem de vantagem? É que parte desse conhecimento desses 15, 16 anos é retido pela máquina pública. Tem uma curva de aprendizagem tanto dos gestores num nível de comando quanto dos próprios servidores públicos. Está pior, mas isso não quer dizer que não seja reversível.
Em que medida a pandemia pode ser responsabilizada pelo atual cenário de fome no Brasil? E quais medidas emergenciais deveriam ter sido tomadas no início de 2020 para evitar essa crise social?
A pandemia acirrou sim o cenário de fome e de insegurança alimentar dramaticamente. Houve quebras de cadeias internacionais, nacionais e algumas quebras de cadeia locais. E teve uma perda de renda violenta na população.
Agora, qual teria sido o impacto se o Estado tivesse atuado para minimizar essa crise? Nós não só somos um país em desenvolvimento com alta renda, mas um Estado com uma rede de proteção social montada, coisa que outros países não têm. Tudo isso podia ter sido acionado se o governo estivesse preocupado com esta agenda. O Brasil teria tido condições de ter sofrido muito menos.
Se o Estado tivesse atuado para controlar a doença e a propagação do vírus, certamente não teria tido 650 mil mortes. Tivemos porque o próprio Estado era um agente desorganizador do combate à pandemia.
Em fevereiro de 2020 a gente já sabia que ia ter problema nas cadeias internacionais de arroz. O Brasil não só é um grande produtor de arroz como é um grande consumidor de arroz.
Se fosse um governo preocupado com a segurança alimentar, ele teria tomado medidas olhando esse cenário. Chamaria os vários atores para tentar entender o que estava por vir e o que poderia ser feito para garantir segurança alimentar ao mesmo tempo garantir renda etc e tal.
O que o governo fez? Disse: ”Nós não vamos interferir”. Dizer que não vai interferir é dizer: “Eu estou agindo a favor do interesse dos grandes exportadores de arroz”. Dito e feito. Quem produzia arroz no Brasil, os grandes produtores, exportaram e ganharam uma banana de dinheiro. Em detrimento do abastecimento interno.
Outro exemplo é o da merenda escolar, o Programa Nacional de Alimentação Escolar. O governo federal podia ter chamado estados e municípios para conversar. Sabia-se que uma das medidas seria fechar as escolas, e fechando as escolas o que fazer com os 43 milhões de crianças que se alimentavam na escola?
E o que um novo governo deveria fazer para combater a fome diante do cenário que a gente tem hoje?
Há um conjunto de medidas. A começar olhando para aquilo que foram as políticas exitosas e reconhecidas pela FAO para que a gente tivesse tido tanto sucesso na superação da fome lá ao longo daqueles 13 anos.
Primeiro, assumir a agenda da segurança alimentar e da alimentação com qualidade e comida de verdade como sendo prioritária. Segunda questão: nós precisamos recuperar a capacidade de renda da população para ter acesso a alimentos. Recuperar a política de valorização do salário mínimo, retomar a geração de empregos formais protegidos.
Reconstruir o mercado de trabalho, garantir direitos, construir políticas, como o Programa de Alimentação do Trabalhador.
E terceira questão: voltar a garantir programas de transferência de alimentação com qualidade em políticas que permitam que a população tenha acesso a alimentos indiretamente, como é o caso do Pnae. Com isso, também recuperar as compras locais e assim por diante.
A quarta questão: nós precisamos aumentar a produção de alimentos saudáveis no Brasil, inclusive de arroz, feijão e mandioca. E hoje nós temos 35% menos arroz, feijão e mandioca do que a gente tinha no final da década de 80. Hoje, há uma disponibilidade grande de ultraprocessados, macarrão instantâneo e tal tal tal.
Para isso, teria que também reorganizar o crédito, reorganizar as políticas de orientação e assistência técnica para que a gente volte a produzir arroz e feijão muito rápido, e além disso fortalecer a agricultura familiar e camponesa.
Nisso, vão entrar medidas emergenciais. Em algumas situações vai ser cesta [básica], mas essa é uma política pontual. E contando aí com apoio e com o conhecimento que a gente acumulou nesse período da própria sociedade civil, que fez um trabalho espetacular.
O MST tem uma frase que eu acho que é genial, que diz que eles não distribuíram o que sobrou: eles dividiram o que tinham. Eu acho que eles deveriam estar na mesa conosco para nos ajudar a pensar inclusive nesse pacote de saída dessa situação emergencial dramática.
Até que ponto a agricultura familiar e o agronegócio são conciliáveis, em questão de políticas públicas para os próximos anos?
Eu acho que, primeiro, não se alimenta hoje o Brasil sem parte da produção do agronegócio. Parte do arroz que se produz, do feijão, está no agronegócio. Então, qualquer discussão passa necessariamente por uma transição.
Essa ideia de que ‘vamos acabar com uma coisa e começar outra’, eu considero uma temeridade. Porque nós estamos trabalhando com a vida das pessoas. Tem lugar que não tem como abastecer. Então não dá pra discutir isso como se o Brasil fosse homogêneo. Tem lugar que a agricultura familiar tem condições de alimentar toda população, tem lugar que não tem.
É uma discussão de curto, médio, longo e longuíssimo prazo. No curto prazo, o que eu acho que a gente tem que perguntar é ‘como alimentar o povo?’. Segunda pergunta: como alimentar o povo com comida de qualidade?
Soja não é comida de qualidade. Então, como nós vamos transitar para produzir mais arroz e feijão que nós precisamos? Talvez a gente vá ter que contar com a ampliação da produção no curto prazo de setores produtivos, dos setores médios e de grandes produtores e induzir um aumento da produção que nos interessa.
Primeiro, nós precisamos democratizar a questão fundiária no Brasil, que não é uma questão menor. Hoje tem uma parcela da população no campo que produz alimentos, com milhões de propriedades, mas numa área minúscula. E meia dúzia de milionários donos de um território gigantesco. Então existe a necessidade de se rediscutir a questão fundiária no Brasil.
Nós precisamos aumentar a produção de alimentos saudáveis no Brasil. Isso envolve o que produzir e como produzir. Nós precisamos controlar a quantidade de agrotóxicos que se usa no Brasil. Independente se é grande, médio, pequeno ou minúsculo.
Então, qual é o caminho que nós vamos organizar como país para ter uma transição não só agroecologia, mas também uma transição para democratizar o solo no país? Esse é um debate não só muito complexo como não depende do governante.
Eu acho que temos que trabalhar nessas três frentes: a questão fundiária, a questão do que produzir e a questão de como produzir. Transição agroecológica, transição para redemocratização do campo, fortalecimento da agricultura familiar e camponesa.
Sobre a questão fundiária que você mencionou, a reforma agrária tem que voltar para o debate de projeto de país?
Sim. Nós temos que voltar a discutir reforma agrária no Brasil. Todos os países capitalistas, inclusive de ponta, fizeram algum nível de reforma agrária em algum momento da sua história: Estados Unidos, Japão…
Esse debate no Brasil recebe uma carga ideológica como se ele fosse um debate comunista. Quando, na verdade, está se falando quase de como administrar melhor o próprio capitalismo produzindo no meio rural.
Existe um nível de concentração de estoque de riqueza e de estoque de terra hiperconcentrado. Nenhum país vai para frente com esse nível de concentração de riqueza.
E nós temos como produzir bem. A agricultura familiar já mostrou isso de forma competitiva e com uma produção super qualificada de produtos de diferentes matizes. É muito mais sustentável com a agricultura.
Vamos conseguir fazer ou não? Uma coisa é quem é dono de um latifúndio ficar defendendo o latifúndio. Outra coisa é quem é pobre, classe média, ficar defendendo o latifúndio.
Tem um debate completamente interditado em setores médios, que é e um debate ideologizado, de direita, que não deveria acontecer. Essas pessoas estão defendendo privilégios que só as prejudicam.
Durante os governos Lula e Dilma o agro se fortaleceu, mas desde o golpe de 2016 e com o início do governo Bolsonaro, ele cresceu e ganhou muito espaço. Como é possível aumentar a produção de alimentos num país que está assim com um domínio, uma hegemonia da soja?
O agro é diferente? Eu acho que é. É muito mais conservador. Saiu do armário.
Setores do agro modernos hoje muito mais recolhidos. Inclusive setores que eu falo modernos, querem produzir de forma mais sustentável. Tem uma parcela do agro no Brasil que não compartilharia com o debate da bala, da violência.
Até por uma questão financeira. Não é por nenhum amor, diversidade ambiental ou por respeito à humanidade, mas porque tem espaço no mercado internacional para um tipo de produção que seja menos predatória do que ela é hoje.
Porque essa bancada que a gente chama hoje de bancada do boi é uma bancada que defende uma pauta também de violência, e uma pauta também de violência contra comunidades indígenas.
O grande financiador da agricultura no Brasil hoje é o Banco do Brasil. Se você começa a criar mecanismos para que se transite de uma produção de um crédito ofertado para produtos que não são adequados para produtos que são sustentáveis isso implicará numa mudança de atitude. É ruim para o agro? Acho que não.
Nós precisamos criar um ambiente e precisamos ser sérios para que esse ambiente não nos leve para a ingovernabilidade total.
Hoje, nós temos um conjunto de ferramentas. O crédito está na nossa mão. A questão da assistência técnica. A questão de abrir espaço no mercado internacional. O governo federal, o Itamaraty, o Ministério da Agricultura poderiam estar atuando para ter um nível de produção que fosse mais sustentável.
Mas, não. O próprio governo federal é o propagador da insustentabilidade. Defende queimada, defende invasão de terra indígena, defende o fim de reserva. Defende um debate que não só no curto prazo, mas no médio e longo prazo é insustentável. Inclusive para o agronegócio.
O que eu acho que a gente não pode é achar que nós vamos para um processo eleitoral e que isso resolve as coisas. Se elege o presidente, aí acontece uma mágica.
Quando vocês ainda estavam no governo, e especialmente no momento antes do golpe, vocês tinham uma visão diferente sobre a solidez das políticas que tinham sido desenvolvidas?
Eu nunca imaginei que fosse tão fácil desmontar o setor público. Nunca imaginei. E tem muita gente que fala assim: ‘ah, tinha que botar tal coisa na Constituição’. Não adianta. Eles derrubaram coisas que estavam na Constituição.
O que fazer para que isso não se repita, eu não acho que é somente fazer leis melhores, mais fortes e botar na Constituição. Eu acho que de fato faltou um processo de reconstrução de um nível de consciência cidadã de que essas coisas tinham vínculo com o projeto.
Talvez a alimentação seja um vetor de debate porque se fazer determinadas discussões é muito mais difícil do que a comida, que é comida. Quem é rico e quem é pobre come. A comida no Brasil ainda é uma cultura muito forte, que remete para questões territoriais. Nós temos uma cultura muito forte.
Tem debate que é difícil fazer chegar. E tem debate que chega. De comida, chega. Quem vai aos supermercados, sabe.
Se você voltasse hoje à condição de ministra do Desenvolvimento Social, no cenário político de 2015, o que faria diferente?
Eu acho que em 2015 o golpe já estava dado. Em 2013, a gente ouviu mal as ruas, entendeu mal o que estava acontecendo. É fácil olhar hoje, mas o que estava acontecendo no Brasil de certa forma estava acontecendo em vários outros lugares do mundo e muita gente não se deu conta.
Se eu pudesse fazer diferente, acho que teria organizado de forma diferenciada esta população. Mobilizando essa população que tinha acesso a políticas públicas – seja o Bolsa Família, seja o PAA, seja o Pnae – para que ela compreendesse o valor da política pública. Não [pra defender] o Lula, ou PT, mas a importância do Estado. Não era defender um governo ou outro governo, era defender o conjunto das políticas públicas e a importância [que elas tiveram].
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“Temos que voltar a discutir reforma agrária no Brasil”, afirma Tereza Campello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU