"A luta pela terra visa criar as condições materiais objetivas para que, de fato, Terra de Deus seja terra do povo, que vive a verdadeira fraternidade entre si e com a natureza. A terra é dom, mas exige conquista, enfatizamos", afirma Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.
Siga comigo a reflexão sobre o livro bíblico de Josué, que será o tema do Mês da Bíblia de 2022, em setembro. O livro de Josué se destina aos grupos sociais marginalizados de todos os povos escravizados. No livro de Josué, a palavra terra (erets, em hebraico), aparece 121 vezes. A terra é também adamah (Js 23,13.15), terra fértil, húmus, fonte de vida. Segundo o livro de Josué, a terra não pertence aos senhores deste mundo, mas a Deus. A terra é boa (Js 23,13.15.16); nela corre leite e mel (Js 5,6). É terra sagrada, como “santuário de Javé”, em que se entra com os pés descalços (Js 5,15; cf. 24,26). Todas estas expressões indicam o que significa a terra para povos sem-terra, que têm a fé segundo a qual a terra é prometida por Deus a todos/as, mas que esta promessa não cai pronta do céu, exige-se luta para conquistá-la e socializá-la, ou seja, a terra é dom que exige luta coletiva para conquistá-la. A terra é graça, é dom, é presente, é dádiva. Deus a “dá” a seu povo. Essa mística é enfatizada à exaustão, porque a realidade está sendo o oposto disso: terra privatizada em poucas mãos, seja de reis cananeus ou de imperialistas e “reis” constituídos por vacilo do povo.
A terra é dom, dádiva que se torna realidade na luta dos povos escravizados e organizados. Deus solidário e libertador, Javé age, não de cima pra baixo, de forma mágica, mas age em quem luta coletivamente testemunhando o projeto de Javé. A terra é dom na conquista, com uso de estratégias e táticas (Js 8), o que pode passar por: espionagem (Js 2; 7,2), emboscada (Js 8), enganações (Js 9,3-18), alianças (Js 9), solidariedade (Raab e tribos do Além Jordão), sagacidade (como a dos gabaonitas, que percebem os critérios para aliança entre os empobrecidos e os indicativos de vulnerabilidade do inimigo (Js 9,4-6). A terra é “herança” (nahalah, em hebraico). Herdar (verbo NHL, em hebraico). Lote/parte/porção (heleq).
Pela infinidade de vezes em que se repete no livro de Josué que a terra é herança, podemos concluir que afirmar ser a terra herança é uma forma de refutar com veemência o aprisionamento da terra em poucas mãos gananciosas, expropriando-a dos camponeses posseiros. Afirmar e reafirmar de forma peremptória que a terra é herança é dizer com ênfase nas entrelinhas que a terra não é mercadoria para ser vendida, comercializada, pois é presente, dádiva de Deus. Herança é apenas para posse e usufruto coletivo, a ser exercido pelos/as herdeiros/as com responsabilidade social, ambiental e geracional. Pelos clãs/famílias/casas (mishpahah, em hebraico) (47 vezes) e (bayt, 24 vezes em Josué - o que está na linha da agricultura familiar camponesa.
Segundo a vontade de Javé, a terra precisa ser partilhada (HLQ, verbo em hebraico), não por mérito e nem por critérios de um Estado cúmplice do latifúndio e do status quo opressor, mas segundo as necessidades (Nm 26,52-56; 33,53-54). O livro de Josué acentua que o exercício do poder prima pela participação popular. As decisões são tomadas em assembleia, em reunião, em comunidade (qahal, em hebraico): Js 8,35;
(edah, em hebraico).
Na luta pela terra, realizada com muita fé em Deus Javé, em si mesmo, nos/as companheiros/as, Deus vai junto, é parceiro, é presença - Shekinah - (Js 1,5.9). Deus luta junto, derruba os opressores (Js 6,2; 8,1; 10,8.12). A Terra conquistada (Js 1-12) precisa se tornar terra partilhada (Js 13-19), terra libertada das mãos dos reis opressores e latifundiários espoliadores, ontem e hoje. A Terra é para ser herança, trabalhada em usufruto e jamais comercializada. O livro de Josué cheira a terra. Terra boa, sagrada (Js 5,15; 24,26). A partilha da terra foi o fundamento para um novo sistema econômico, político e sociorreligioso, que se opunha à escravidão e opressão então dominantes, tanto no Egito com o imperialismo dos faraós quanto em Canaã, onde a terra se concentrava nas mãos dos reis nas Cidades-Estados.
O livro de Josué não legitima ‘guerra santa’ contra os povos que se opõem ao povo que luta pela terra. Legitima, porém, a luta de hoje, justa e necessária, para que a terra seja libertada das garras do latifúndio e do agronegócio e se torne território de todos e todas, no qual reinem relações sociais de justiça, respeito e solidariedade. A intrepidez com que os camponeses lutam pela terra não é porque querem a eliminação física dos latifundiários, mas é que, movidos pela fé no Deus Javé, sabem que a forma libertadora de amar os inimigos é retirar das suas mãos opressoras as armas da opressão. E o latifúndio é uma arma nas mãos dos latifundiários e dos agronegociantes. Libertá-los desta arma é sinal de amor ao próximo. Por isso, a luta pela terra visa criar as condições materiais objetivas para que, de fato, Terra de Deus seja terra do povo, que vive a verdadeira fraternidade entre si e com a natureza. A terra é dom, mas exige conquista, enfatizamos.
E agora, José? E agora, Maria? Em sociedades com relações sociais escravocratas, que reproduzem a latifundiarização, partilhar e socializar a terra é ato revolucionário e tem o aval do Deus Javé, porque cria condições materiais objetivas que viabilizam respeito à dignidade humana. Atualmente, as muralhas que precisam ser derrubadas não são as de Jericó, mas as muralhas que são as cercas dos latifúndios, o sistema capitalista, o agronegócio, com monoculturas insustentáveis ambientalmente e uso indiscriminado de agrotóxicos, o Estado capitalista, o poder midiático, os fundamentalismos religiosos, com todos os seus vassalos que violentam brutalmente, diariamente. E, o que é pior: mesmo sendo violentadores, acusam de violenta a contra violência, a resistência popular, a fim de continuarem reproduzindo mais violência.
1 Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
2 Cf. Js 1,2.4.6.11.13.14.15.15.
3 Cf. Js 3,11.13; 2,11; Ex 19,5; Lv 25,23; Dt 10,14; Sl 24,1-2; 97,5; Is 66,1-2.
4 Js 1,2.6.11.13.14.15.15; 2,9.14.24; 5,6; 9,24; 11,23; 12,6.7; 13,8.15.24.29.31.33; 14,3.12.13; 15,13; 17,4.14; 18,3.7; 21,43; 22,4.7; 23,13.15.16; 24,4.13.33.
5 Js11,23; Js13,6.7.8.14.14.23.28.32.33; Js14,1.2.3.3.9.13.14; Js15,20; Js16,4.5.8.9; Js17,4.4.6.14; Js18,2.4.7.20.28; Js19,1.1.2.8.9.9.10.16.23.31.39.41.48.49.51; Js 21,3; Js 24,28.30.32.
6 Js1,6; Js16,4; Js17,6; Js19,9.49.51.
7 Js 14,4; 15,13; 18,5.6.7.9; 19,9; 22.25.27.
8 1Rs 21,3; Lv 25,23; Nm 36,7). Pelas tribos (aparece em Josué 79 vezes): shebéth (32 vezes) e matheh (47 vezes.
9 Js 13,7; 14,1.5; 18,2.5.10; 19,51; 22,8.
10 Js 9,15.18.18.19.21.27; 18,1; 20,6.9; 22,12.16.17.18.20.30.