Nos fastos de nossa história, o povo permanece sempre como o grande ausente. Os 200 anos de um Brasil independente e desigual. Entrevista especial com Fábio Konder Comparato

Tanto em Independência ou Morte, de Pedro Américo , quanto em Proclamação da República, de Benedito Calixto, o povo é posto como paisagem | Imagens: Museu do Ipiranga e Pinacoteca do Estado de São Paulo

Por: João Vitor Santos | 23 Agosto 2022

 

Estamos a praticamente duas semanas das festividades que marcam os 200 anos de Independência do Brasil. A efeméride nos faz olhar para o passado e pensar no que somos, como nos constituímos. No entanto, o jurista Fábio Konder Comparato, com o olhar na História e o pé na conjuntura atual, faz uma provocação para que olhemos para os vazios do passado, materializado em problemas ainda muito vívidos e presentes, como é o caso da desigualdade.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele chama atenção para o fato de que a Independência “paradoxalmente não foi o resultado de uma revolta do povo brasileiro contra o rei de Portugal, mas, ao contrário, do povo português contra o rei no Brasil” e “não suscitou o menor entusiasmo popular”. Anos mais tarde, quando o Brasil derruba a monarquia para ser República, “a mesma cena, com personagens diferentes”. Logo, conclui: “nos fastos de nossa história, o povo permanece sempre como o grande ausente; o que significa que jamais o encontramos ‘nos arranjos institucionais e culturais da nação’”.

 

Isso talvez seja um dos fatores geradores do que Comparato vem trabalhando em outros escritos, chamado por ele como dupla vigência das instituições políticas nacionais. “A oficial, nem sempre respeitada, e a não oficial, mas que acaba finalmente por se impor, pelo fato de corresponder aos interesses dos grupos dominantes em nossa sociedade”, resume.

 

O problema é que, no passar dos tempos, a imobilidade desse quadro em que o povo, as pessoas do cotidiano do campo e da cidade, são mera paisagem, gera e agudiza outro: um quadro de extrema desigualdade. Isso, para o jurista, é o grande problema. “A superação desse magno problema não se faz apenas por esta ou aquela eleição, nem no período de duração de uma vida humana. Para vencê-lo, é indispensável começar por estabelecer um plano adequado, cujo desenvolvimento não se dará em curto prazo nem mediante parcos recursos”, dispara. E aponta: “Tal planejamento há de fundar-se na principal riqueza nacional, que não é nenhum bem material, mas sim o povo. É preciso transformá-lo mediante adequadas políticas públicas. Para tanto, o que importa, antes de tudo, é reorganizar o Estado.”

 

Fábio Konder Comparato (Foto: IEA | USP)

Fábio Konder Comparato é professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor em Direito pela Universidade de Paris e Doutor Honoris Causa na Universidade de Coimbra. Suas principais obras são Muda Brasil. Uma Constituição para o desenvolvimento democrático (Editora Brasiliense, 1986), Para viver a democracia (Editora Brasiliense, 1989), A afirmação histórica dos direitos humanos (Editora Saraiva, 1999), Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno (Companhia da Letras, 2006) e Ruma à Justiça (Editora Saraiva, 2010).

 

O Instituto Humanitas UnisinosIHU acaba de publicar seu artigo O Direito e o Avesso, no Cadernos IHU Ideias, número 337, vol. 20, 2022

 

Igualmente pelo IHU, Fábio Konder Comparato publicou os seguintes artigos: Para arejar a cúpula do judiciário, Cadernos IHU Ideias, número 288, vol. 17, 2019; Compreensão Histórica do Regime Empresarial-Militar Brasileiro, entre 1964 e 1985, Cadernos IHU Ideias, número 278, vol. 16, 2018; Brasil: A dialética da dissimulação, Cadernos IHU Ideias, número 239, vol. 14, 2016; O poder judiciário no Brasil, Cadernos IHU Ideias, número 222, vol. 13, 2015; Compreensão histórica do regime empresarial-militar brasileiro, Cadernos IHU Ideias, número 205, vol. 12, 2014; Brasil: verso e reverso constitucional, Cadernos IHU Ideias, número 197, vol. 11, 2013.

 

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Em pleno ano eleitoral, em 2022, discutimos a lisura do processo eleitoral democrático no Brasil. Quais as questões de fundo que esse cenário nos revela?

 

Fábio Konder Comparato – A característica marcante de nossas instituições políticas é a sua dupla vigência: a oficial, nem sempre respeitada, e a não oficial, mas que acaba finalmente por se impor, pelo fato de corresponder aos interesses dos grupos dominantes em nossa sociedade.

 

Tal duplicidade corresponde à estrutura de nossa sociedade que comporta, de um lado, o poder efetivo, organizado em forma hierárquica, em cujo ápice encontra-se o poder supremo ou soberania; e de outro lado, a mentalidade coletiva, entendida como o conjunto dos valores éticos, sentimentos, crenças, opiniões e mesmo preconceitos dominantes, os quais tendem a se consolidar em usos e costumes.

 

 

Essa estrutura dúplice dá origem a uma correspondente duplicação de ordenamentos jurídicos: um declarado oficialmente pelo Estado, a culminar com o sistema constitucional; outro, composto por uma interpretação seletiva de normas, efetuada pelos agentes estatais – notadamente magistrados judiciais –, interpretação essa que quase sempre favorece os interesses próprios dos potentados econômicos privados.

 

 

É à luz desses dois fatores estruturantes da ordem social que a lisura do processo eleitoral é posta em dúvida praticamente a cada eleição, quando não o próprio sistema democrático como um todo. Foi o que acabamos de assistir, com o confronto entre os dois principais candidatos à presidência da República na eleição do corrente ano.

 

 

IHU – Há ainda no Brasil uma ideia de que democracia significa homogeneização dos sujeitos que, sob o argumento de que é preciso igualdade de direitos, ignora as desigualdades. Como podemos compreender a concepção dessa ideia e quais os desafios a superar?

 

Fábio Konder Comparato – Obviamente, o que se pretende com tal argumentação é manter a minoria detentora do poder político na posse de seus privilégios. A superação desse despropósito não se dará apenas mediante a edição de normas jurídicas. Ela exige um longo processo de educação popular e de informação pública.

 

IHU – Outra ideia reducionista sobre democracia que circula é a de que é uma liberdade indiscriminada, em que se é livre para fazer tudo. Como essa concepção foi gestada e por que é tão difícil avançar dessa percepção?

 

Fábio Konder Comparato – Montesquieu, em De Espírito das Leis (Livro XI, capítulo II), observando que a palavra liberdade apresenta múltiplos significados na História, chega à conclusão de que “cada povo denominou liberdade o governo conforme a seus costumes ou a suas inclinações”. A partir dessa constatação, o grande pensador francês passa a analisar a liberdade no contexto político, considerando-a sob um duplo aspecto: em relação à constituição do país, isto é, aquilo que os gregos denominavam politeia, e relativamente a cada cidadão em particular; ou seja, liberdades públicas e liberdades privadas.

 

Comparato busca na obra de Montesquieu a ideia de que “cada povo denominou liberdade o governo conforme a seus costumes ou a suas inclinações” | Imagem: divulgação

 

 

Ora, sob esse aspecto, o que a História nos ensina é que toda liberdade existe em contraposição a um poder; e que os titulares de liberdades privadas raramente se dão conta de que eles próprios são também detentores de um poder, em relação ao qual outras pessoas têm o direito de exercer sua liberdade.

 

 

IHU – Na sua opinião, que conceito de cidadania se forjou no Brasil ao longo dos tempos? Como avançar no entendimento da cidadania?

 

Fábio Konder Comparato – Para José Murilo de Carvalho (Cidadania no Brasil – O Longo Caminho), uma das marcas do esforço de reconstrução do Brasil, findo o regime militar instaurado em 1964, foi a voga que assumiu a palavra cidadania. “Políticos, jornalistas, intelectuais, líderes sindicais, dirigentes de associações, simples cidadãos, todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o próprio povo na retórica política.” E conclui: “Cidadania virou gente. No auge do entusiasmo cívico, chamamos a Constituição de 1988 de Constituição Cidadã.”

 

Para Comparato, a obra de Carvalho (Civilização Brasileira, 2001) revela usos do conceito de cidadania no Brasil, embora dissonantes em nosso tempo de ‘moderna civilização das massas’ | Foto: divulgação

 

É sabido que etimologicamente a palavra provém de civitas, ou seja, a cidade enquanto organização política no mundo antigo. Cidadão, por conseguinte, era todo indivíduo dotado de direitos e deveres, como membro de uma cidade. Na moderna civilização de massas, porém, o que conta não é o caráter individual de alguém, mas o fato de pertencer a um grupo social dotado de poder econômico.

 

 

IHU – Quem foram os sujeitos presentes na Independência do Brasil e, mais tarde, na Proclamação da República? Como essas ausências e presenças repercutem nos arranjos institucionais e culturais da nação?

 

Fábio Konder Comparato – Nossa independência, que paradoxalmente não foi o resultado de uma revolta do povo brasileiro contra o rei de Portugal, mas, ao contrário, do povo português contra o rei no Brasil, não suscitou o menor entusiasmo popular. Um observador judicioso, como Saint-Hilaire, que passou vários anos viajando pelo Brasil, pôde testemunhar: “A massa do povo ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: - Não terei a vida toda de carregar a sela de montaria?

 

Auguste de Saint-Hilaire, sobre a Independência do Brasil: “A massa do povo ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: - Não terei a vida toda de carregar a sela de montaria?” | Imagem: Acervo do Museu Paulista da USP

 

A mesma cena, com personagens diferentes, é repetida 67 anos depois, na Proclamação da República. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se.”

 

Aristides Lobo, sobre a Proclamação da República: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava” | Fotos: Acervo Histórico Câmara dos Deputados

 

Em suma, nos fastos de nossa história, o povo permanece sempre como o grande ausente; o que significa que jamais o encontramos “nos arranjos institucionais e culturais da nação”.

 

 

IHU – E no processo de anistia pós-ditadura militar, conseguimos alguma efetiva mudança na composição do poder institucional?

 

Fábio Konder Comparato – A Lei nº 6.683, de 1979, concedeu anistia a todos os autores de “crimes políticos ou conexos” durante o regime militar instaurado em 1964. Na qualidade de representante da Ordem dos Advogados do Brasil, tive ocasião de sustentar, perante o Supremo Tribunal Federal, a inaplicabilidade dessa esdrúxula lei aos crimes contra a humanidade, bem como aos crimes continuados. Nossa Corte Suprema, no entanto, por maioria de votos, convalidou a extravagante anistia.

 

Em 2010, porém, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou inaplicáveis as disposições da referida lei não só aos crimes de homicídio, tortura e ocultação de cadáver, cometidos por agentes militares durante a chamada Guerrilha do Araguaia, como também a crimes, cometidos em qualquer tempo e lugar, configurando graves violações de direitos humanos.

 

 

IHU – Para além do processo eleitoral desse ano, mas sem o desconsiderar, que caminhos precisamos forjar para frear retrocessos e restituir ao menos os sonhos de um país igual e com um projeto de nação?

 

Fábio Konder Comparato – Antes de mais nada, importa não confundir desigualdades com simples diferenças. As primeiras, ao contrário das outras, comportam sempre a relação de superioridade ou dominação social. Entre nós, por exemplo, ainda não foi superado o preconceito de que os negros constituem uma raça inferior à dos brancos.

 

Na verdade, o supremo problema brasileiro, que persiste inabalável desde a vinda dos portugueses a estas terras, é a desigualdade social. No relatório de 2022 do World Inequality Laboratory, elaborado pelo famoso economista Thomas Piketty, o Brasil ocupa, dentro do G-20, o grupo que reúne as maiores economias do mundo, o segundo lugar na lista dos países mais desiguais, atrás apenas da África do Sul. A parcela de 1% mais rica de nossa população possui metade de toda a riqueza nacional, ao passo que a mais pobre detém menos de 1% dela.

 

 

A superação desse magno problema não se faz apenas por esta ou aquela eleição, nem no período de duração de uma vida humana. Para vencê-lo, é indispensável começar por estabelecer um plano adequado, cujo desenvolvimento não se dará em curto prazo nem mediante parcos recursos.

 

Tal planejamento há de fundar-se na principal riqueza nacional, que não é nenhum bem material, mas sim o povo. É preciso transformá-lo, mediante adequadas políticas públicas. Para tanto, o que importa, antes de tudo, é reorganizar o Estado. Assim como a modernidade estatal principiou com a divisão de Poderes no Reino Unido e na França a partir do século XVII, da mesma forma o Estado do Futuro exige a implementação de um órgão de planejamento autônomo e não meramente burocrático, dotado de participação popular e submetido a um controle adequado.

 

 

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