08 Outubro 2021
"A inerente questão da sociedade brasileira, ao contrário do que se acreditava na redemocratização, tão dividida nos seus interesses mesquinhos de classes e suas frações, e escancarada como nunca desde o caos político que levou ao impeachment da presidente Dilma, é buscar entender como foi possível atravessarmos mais de um século alardeando um regime político que nem na sua forma mais lendária jamais existiu nesse país", escreve André Márcio Neves Soares, mestre e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL/BA e pesquisador da democracia brasileira.
Apesar do prefixo “sub” não significar apenas inferioridade, ou seja, algo ou alguém “abaixo de”, mesmo quando o usamos para outras designações, na maioria das vezes o entendimento da palavra nos remete a um significante ruim, de baixa qualidade ou obscuro. Nesse sentido, podemos exemplificar as três qualidades desse significante com palavras como sub-hepático, submundo ou sub-humano, ou mesmo sub-reptício. É verdade que significantes como subconsciente e subestação não remetem, necessariamente, a um sentido questionável em si mesmo. Apenas indicam as especificidades inerentes ao prefixo.
Feito esse breve e necessário preâmbulo, passemos a discorrer sobre o título do texto em si. A priori, o leitor atento faria uma pergunta: como é possível qualificar o atual regime político nacional com um termo tão negativo? Não seria mais apropriado justificar apenas o momento, no mínimo constrangedor, pelo qual passa o nosso país, nas mãos de um grupo de claro viés autoritário? A resposta a esse leitor perspicaz é: não. Seria bom se fosse um desvio ao longo do nosso trajeto republicano, mas a rotina da nossa democracia é, justamente, ser um regime político incompleto, incapaz, inoperante e invisível para a maioria da população, ou seja, uma “democracia” abaixo das expectativas que a própria nomenclatura exige. Em outros termos: uma subdemocracia.
Sejamos claro e didáticos para corroborar nossa suspeita com alguns exemplos históricos:
1) Nunca houve participação popular nas mudanças de regimes políticos que tivemos ao longo dos nossos mais de 500 anos de subjugação aos interesses dos países poderosos da vez. Nesse sentido, passamos de mera colônia extrativista para império, no molde específico “tupiniquim” (com todas as nossas idiossincrasias), e depois para república, sem que o “povo” tomasse as rédeas do jogo que tem sido jogado nos últimos 132 anos (1);
2) Os avanços nas questões de proteção ao trabalhador brasileiro, mesmo nos seus momentos de maior fuzarca, lá no governo Vargas, não ocorreram através das lutas proletárias tão efetivas em outros países, mas tiveram como base o avanço capitalista e o necessário ajuste do liberalismo terceiro-mundista aos reclames do capital internacional e seus parceiros locais. É, no mínimo, uma meia-verdade colocar na conta do populismo varguista a alavancagem desse dispositivo jurídico-estatal (2);
3) A incapacidade de mobilização popular em termos absolutos, mostrada no advento do golpe civil-militar de 1964, retrata, fidedignamente, a inoperância dos aparatos contrários ao retorno de um período autoritário, mas também a completa invisibilidade das camadas populares aos olhos dos usurpadores do poder (3);
4) A tão esperada e propalada “redemocratização” foi um conchavo, mais uma vez, entre a elite civil nacional, já bastante globalizada, em plena década de florescimento da doutrina neoliberal, capitaneada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, e os militares, que já estavam fartos de gerir a bagunça que provocaram em mais de duas décadas de ditadura (lembrem-se de que o último presidente militar, General João Figueiredo, pediu para esquecerem ele). É verdade que os protestos já eram diários e alguns deles eram enormes, como o movimento pelas “diretas-já”, que chegou a reunir um milhão de pessoas num comício na Candelária, no Rio de Janeiro, em 1984. Contudo, esse foi o ápice da demonstração de força popular, que não voltou a se manifestar, o que favoreceu a “transição” lenta, segura e gradual, como disse Geisel. Em outras palavras, a volta da participação popular na escolha dos nossos líderes (prefiro essa maneira de enxergar o que sempre ocorreu no nosso país, a falar em termos de um conceito mítico como o democrático, ainda mais nesses trópicos, não obstante a manutenção do termo “democracia” por ser mais didático) está mais para autorizar os grandes acordos feitos intra-gabinetes dos poderes institucionais, “com o supremo, com tudo”, do que para revoltas populares de grande monta, planejadas e sustentadas (4);
5) Por fim, chegando ao período mais atual, o “cavalo de pau” na “democracia” brasileira, representado pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff - cujo desfecho estamos vivenciando, agora com um governo, como disse acima, de claro viés autoritário (mas ainda não totalitário, pelo menos até 2022) -, não pode ser imputado, mais uma vez, à vontade popular, ainda que tenha havido inúmeras manifestações a favor ou contra à queda da presidente. Não houve um movimento popular das camadas inferiores, às quais se juntou a classe média e que foi abençoada por parte da elite. Houve sim, e isso é fato, a manipulação do aparato midiático-jurídico-industrial a favor da queda de Dilma Rousseff e a demonização do PT, a partir de demandas populares legítimas, a exemplo da redução de tarifas no transporte público e melhorias das condições de atendimento no SUS (5).
Dessa maneira, o conceito de “subdemocracia” brasileira não está na forma como ela se deu, mas no método a que foi submetida. De fato, na nossa trajetória republicana o povo sempre foi excluído, enganado, marginalizado até, antes de ser reintroduzido na cena política, apenas para legitimar os acordos firmados entre os detentores do poder. Nessa toada, não importa se os governos que se sucederam foram encabeçados por militares, como nos períodos Vargas e na ditadura de 1964-1985, ou não, como no período pós-ditadura. Não à toa, a expressão “República Democrática de Direitos” só foi introduzida na Constituição de 1988. Não que espelhe a realidade, pois continuamos mais para uma “República Oligárquica de Direitos”. Mas é sintomático que, até 1988, a democracia sequer era mencionada na Carta Magna do nosso país.
O mais importante a frisar nesse momento é que a “subdemocracia” brasileira sempre navegou entre outros dois conceitos chaves da nossa história de participação popular na escolha dos representantes da nação: o mito e a necropolítica democrática. Sobre o mito democrático, já foi dito que: “A tragédia das democracias modernas está no fato de ainda não terem conseguido realizar a democracia” (6). Ora, se isso é um entendimento cada vez mais aceito por estudiosos da própria democracia ocidental (7), o que existe de fato no Brasil, calcado desde a sua invasão em 1500 pela desigualdade social, essência da nossa sociedade? Sobre a necropolítica nacional, pior do que a conceituada em termos gerais por MBEMBE (8) é a nossa “caminhada dura” (parafraseando o grande Gilberto Gil, meu conterrâneo) desde que sofremos a tragédia de sermos inserido no mundo mercantil, e depois industrial-financeiro. Só mudou o estágio imperial de quem nos controla.
Assim, a subdemocracia brasileira pelejou entre a ordem imaginada da democracia brasileira e a nossa peculiar necropolítica desde que a revolução industrial precisou de “ordem e progresso” para implantar um capitalismo verde e amarelo, porém com idioma estrangeiro. Não preciso lembrar-vos as reais intenções que levaram os ingleses a pôr fim à escravidão. Da mesma forma que, em escala cronológica, não preciso atinar-vos os verdadeiros ou principais objetivos do golpe militar, com gostinho “yankee”, ou mesmo as causas especiais do recente impeachment da presidente Dilma.
Realmente, como esse regime político jamais satisfez a contento a junção entre a ordem social e a ordem política, não se pode falar em democracia de forma definitiva. No nosso caso, muito pelo contrário, como bem nos mostra CARVALHO (9), a ordem primeva de nossa sociedade não foi a busca incessante pelo bem-estar social. Com efeito, invertendo a lógica das economias desenvolvidas, a busca por uma sociedade menos desigual foi a última preocupação do ordenamento legal, fato que fez com o Brasil sempre tenha figurado como um dos países de maior desigualdade social em todos os tempos, chegando a ser o campeão em vários momentos históricos.
Por fim, é preciso dizer nesse breve ensaio que a subdemocracia brasileira também mitigou a realidade concreta dos apadrinhamentos, nepotismos, cordialidades e violências de todos os tipos em solo nacional. A palavra “democracia” parece ter o condão de eliminar todos os males da sociedade burguesa. De fato, se o genocídio dos uigures em solo chinês é violentamente denunciado pela mídia ocidental (10), raras são as vezes que genocídios americanos são relatados pela mesma (11).
Apesar disso, os desmandos autoritários das elites que governaram o país sempre afrontaram o mínimo do bom senso. Não é possível questionar o tipo de democracia que tivemos desde o seu nascedouro em solo pátrio, sem lembrar que a mesma chegou através de um golpe militar. Seria também de bom alvitre criticar uma suposta democracia que possui, aproximadamente, metade dos seus pouco mais de 130 anos de história com militares no poder. E mais, como enaltecer algum “milagre brasileiro” em plena ditadura militar? O milagre foi econômico, se houve algum, não foi social. E ainda que tal “milagre” tenha relativamente modernizado o país, não traduziu essa modernização em redução significativa das desigualdades sociais e de maneira permanente. Quem ainda se lembra do “homem gabiru”, tão midiaticamente propalado pelas páginas amarelas de uma revista semanal, na década de 1990, como o retrato da nossa iniquidade social?
Acredito que a mesma lógica serve para nossa contemporaneidade. Eu sei que seria demais exigir dos nossos políticos um sistema de pesos e contrapesos como o americano, para evitar os “outsiders” (ainda que não seja perfeito, vide o período recente de Trump) (12), mas nos países ocidentais que ainda possuem verdadeiro apego à mítica democracia ateniense não se vê mais episódios como a entrada em cena de um Bolsonaro, como aqui, desde o fim da segunda guerra mundial. Salvo na periferia da Europa, claro! Embora seja importante observar que nem na própria Alemanha o nazismo morreu. Parece-me que, como a COVID-19, teremos que lutar e conviver contra esse espectro do mal rondando a terra por muito tempo ainda, como bem disse Tony Judt (13).
A inerente questão da sociedade brasileira, ao contrário do que se acreditava na redemocratização, tão dividida nos seus interesses mesquinhos de classes e suas frações, e escancarada como nunca desde o caos político que levou ao impeachment da presidente Dilma, é buscar entender como foi possível atravessarmos mais de um século alardeando um regime político que nem na sua forma mais lendária jamais existiu nesse país. Já existem alguns pensadores que estão capinando esses atalhos para melhor entendimento da nossa grande farsa (14).
Talvez FURTADO (15) tenha se precipitado ao considerar que o nosso impasse histórico se deu no período militar. Naquele momento tínhamos uma fresta de norte em nossos corações e mentes, qual seja, a luta pelo fim da ditadura, ainda que de forma bastante limitada na maior parte do tempo. O nosso impasse histórico parece estar se dando agora, ou seja, será que tudo que queremos é voltar para o lar tranquilo da subdemocracia, que dá sentido a essa sociedade tão desigual? Por consequência, é pertinente a pergunta feita por FURTADO (16): “...megulharemos definitivamente, quero dizer, no próximo século, na lúmpen-humanidade?” Como poucos, ele tinha sérias razões para ter medo dessa resposta.
1 – Para melhor entender esse período, ver: CARVALHO, José Murilo de. OS BESTIALIZADOS: O RIO DE JANEIRO E A REPÚBLICA QUE NÃO FOI. 4ª. Edição. São Paulo. Companhia das Letras. 2018;
2 – DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato. UMA BREVE HISTÓRIA DO BRASIL. São Paulo. Editora Planeta do Brasil. 2010;
3 – COMPARATO. Fábio Konder. A Oligarquia Brasileira: Visão Histórica. São Paulo. Editora Contracorrente. 2017;
4 – Idem;
5 – SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A DEMOCRACIA IMPEDIDA: O BRASIL NO SÉCULO XXI. Rio de Janeiro. Editora FGV. 2017;
6 – MARITAIN. Jacques. CRISTIANISMO E DEMOCRACIA. São Paulo. Editora AGIR. 1957;
7 – KURZ, Robert. A DEMOCRACIA DEVORA SEUS FILHOS. Rio de Janeiro. Editora Consequência. 2020;
8 – MBEMBE, Achille. NECROPOLÍTICA. São Paulo. Editora n-1. 2018;
9 – CARVALHO, José Murilo de. CIDADANIA NO BRASIL: O longo caminho. 21ª. Edição - Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira. 2016; 10) https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/relatorio-independente-aponta-possivel-genocidio-do-povo-uigur-na-china/;
11) https://www.monitordooriente.com/20190504-lembrancas-das-revelacoes-de-torturas-americanas-em-abu-ghraib/;
12 – LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. COMO AS DEMOCRACIAS MORREM. Rio de Janeiro. Editora Zahar. 2018;
13 – JUDT, Tony. O MAL RONDA A TERRA. Rio de Janeiro. Editora Objetiva. 2010;
14 – PENSO, especialmente em: SOUZA, Jessé. A ELITE DO ATRASO: DA ESCRAVIDÃO À LAVA JATO. Rio de Janeiro. Editora Leya. 2017;
15 – FURTADO, Celso. CORRESPONDÊNCIA INTELECTUAL: 1949 – 2004. 1ª. ed. – São Paulo. Companhia das Letras. 2021;
16 – Idem.
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A subdemocracia brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU