A pandemia da Covid-19: entre Gaia e o Antropoceno. Artigo de Andityas Soares de Moura Costa Matos

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18 Abril 2020

“Só superaremos a crise pandêmica mediante a criação de sistemas políticos-econômicos-sociais que não sejam apenas isso, mas também naturais, de modo que se possa dar um fim ao Antropoceno enquanto marca da intrusão humana negativa no planeta, preparando assim a nossa reconciliação com Gaia. Uma reconciliação com nós mesmos”, escreve Andityas Soares de Moura Costa Matos, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, em artigo publicado no sítio da UFMG, 13-04-2020.

Eis o artigo.

O que a Covid-19 põe em xeque é a pensabilidade da realidade a partir de esquemas simplistas. Um dos mais influentes é o que a separa em natureza e cultura, entendendo que a natureza é tudo aquilo que não foi construído pela ação humana, de modo que ambos os domínios teriam leis próprias. Ora, essa divisão rígida é inútil para se pensar a pandemia da Covid-19. Com efeito, consideremos a seguinte questão: a pandemia deriva e depende de fatores naturais ou humanos? A pergunta não é apenas retórica, já que nossas ações de prevenção e combate ao novo coronavírus dependem diretamente da resposta.

Uma primeira tentativa de responder poderia se fixar no caráter natural do vírus, que apareceria então como um eloquente exemplo da “intrusão de Gaia”. Essa expressão se deve à belga Isabelle Stengers, química e filósofa da ciência. Ela argumenta que o planeta TerraGaia, em grego – irrompe violentamente em nossas vidas, mostrando que todos os aparatos humanos e sociais são incomparáveis às forças de tufões, terremotos, maremotos e outros fenômenos naturais capazes de demonstrar que o planeta ainda é dono de si mesmo. Assim, alguns pensadores veem a pandemia como um exemplo do poder intrusivo de Gaia em nossas sociedades, que se creem imunes às ações da natureza e, por isso mesmo, estão cada vez mais expostas à extinção.

Outra interpretação, que guarda relações com a ideia de intrusão de Gaia, mas que com ela não se confunde, consistiria em ver no coronavírus um construto humano que traduz de maneira trágica o conceito de Antropoceno. Para os autores dessa linha, como Paul Crutzen, ganhador do prêmio Nobel de 2000, o Antropoceno corresponde ao momento em que vivemos, ou seja, uma nova era geológica na qual as sociedades humanas, pela primeira vez na história, deixam de ser elementos passivos e atuam como agentes que podem mudar os ritmos do planeta, como se fossem forças ambientais – quase sempre negativas – responsáveis por mudanças climáticas, extinções de seres vivos, emissões de gases poluentes etc.

Nesse sentido, o novo coronavírus seria algo semelhante ao efeito estufa, ou seja, um elemento aparentemente natural, mas que se deve à ação de seres humanos. De fato, se não tivéssemos um mundo ultraintegrado pelo comércio capitalista, com seus aviões, carros, estradas, migrações e fluxos populacionais, seria muito difícil que um vírus surgido na China – ou nos Estados Unidos, segundo certos estudos – pudesse contaminar o mundo todo na velocidade que vemos hoje. Assim, mais do que de causas naturais, a Covid-19 dependeria de ações humanas, pois seria um subproduto indesejável da globalização.

Mas, afinal, a pandemia de Covid-19 é um exemplo de intrusão de Gaia ou um fruto humano e “logístico” do Antropoceno? Ao que me parece, essa pergunta só tem sentido, pelo menos no atual momento, para traçar estratégias de combate à pandemia, o que é impossível se julgamos que a “normalidade” anterior deve ser restabelecida. Um dos grandes efeitos da pandemia é a inequívoca demonstração, para aqueles que insistem em negá-lo, do caráter suicida do capitalismo e da força que a natureza tem quando se trata de maximizar seus efeitos negativos. Pouco importa a origem natural ou humana do novo coronavírus, dado que seus efeitos desconhecem essa divisão, intensificando-se por meio de estruturas ao mesmo tempo naturais e humanas. Isso significa que só um sistema político-econômico-social que leve em conta essa complexidade – o que é impraticável no capitalismo, que trata a natureza como dimensão separada, como pura “externalidade” a ser controlada ou mera matéria-prima – pode oferecer soluções efetivas à crise em que sobrevivemos.

Desse modo, não faz sentido a discussão sobre vida ou economia que se desenvolve com fervor nas redes sociais e nos mais diversos fóruns, tendo em vista as conclamações de volta ao trabalho de parte da população para que a economia não seja destruída. Pensar assim é pensar em termos de díades, de natureza (vida) e cultura (economia) que não se comunicam, quando o problema a ser vencido não é nem totalmente natural e nem totalmente humano. Somente uma mudança completa em nossas formas de vida poderá garantir a vitória sobre a pandemia, dado que ela não é algo isolado, mas, sim, um perfeito exemplo do nível de complexidade a que chegamos. Qualquer ação que privilegie apenas um dos lados do problema, natural ou cultural, está fadada ao fracasso.

Mais do que bradar pela volta da normalidade, trata-se de entender que o que vivemos até aqui nada tem de normal, pois só pode gerar e manter um sistema separador que constantemente sacrifica vidas em nome da economia. É essa a “normalidade” do sistema capitalista. Não admira, portanto, que, para se retomar a normalidade, exija-se a escolha entre vidas e a economia, entre natureza e cultura. Ora, é preciso destituir o sistema capitalista e inventar formas de con-vivência em que a vida não precise ser sacrificada em nome da economia, em que não haja separação entre vida e economia e não estejamos enfrentados com o planeta.

Um primeiro passo nesse sentido, como nota Isabelle Stengers, pode se dar com uma efetiva aproximação – eu diria mais,“fusão” – entre, de um lado, a filosofia, as ciências humanas e sociais e, de outro lado, as ciências naturais e exatas, para que umas esclareçam às outras as respectivas zonas de sombra que as habitam. Assim, por exemplo, se cabe às ciências naturais desenvolver uma vacina para a Covid-19, cabe às ciências sociais demonstrar as consequências de sua monopolização por apenas um país, como quer Donald Trump, ou seu oferecimento somente àqueles que podem pagar altos preços.

Nesse convite à consideração total de um fenômeno complexo, não há qualquer moralismo, mas uma exigência dos tempos atuais: seria pouco efetivo imunizar apenas os estadunidenses ou os ricos e deixar o resto do mundo à mercê da Covid-19, pois não haveria com quem comerciar e se relacionar; o vírus poderia mutar e novamente atacar aqueles que foram imunizados, entre várias outras hipóteses. Meu exemplo simplório apenas indica o óbvio, que está marcado no novo coronavírus, esse evento ao mesmo tempo humano e natural: só superaremos a crise pandêmica mediante a criação de sistemas políticos-econômicos-sociais que não sejam apenas isso, mas também naturais, de modo que se possa dar um fim ao Antropoceno enquanto marca da intrusão humana negativa no planeta, preparando assim a nossa reconciliação com Gaia. Uma reconciliação com nós mesmos.

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