O apartheid social da lógica do condomínio põe em risco a República. Entrevista especial com Roberto Andrés

Para professor, Jair Bolsonaro opera nessa mesma lógica do “cidadão de bem” que vive em condomínio fechado, pensa só nos seus interesses e nega a vida republicana no espaço público como bem comum

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 05 Março 2021

Que o Brasil é um país desigual em que algumas pessoas parecem valer mais do que as outras já é dado concreto, mas o professor e pesquisador Roberto Andrés diz que é preciso nomear esse fenômeno que, para ele, é um apartheid social. “Como relatou Denis Burgierman em um artigo recente, precisamos nomear esse apartheid social para começarmos a encarar a gravidade do nosso problema”, completa, em entrevista concedida via mensagens de áudio pelo WhatsApp para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Ele ainda lembra Milton Santos, com a ideia de que a cidadania brasileira é marcada por uma segregação, em que de fato ninguém é cidadão. “A classe média e as elites não são cidadãos porque não querem ser, preferem buscar privilégios. Enquanto a maioria da população, especialmente a população negra, não tem direito de ser cidadão”, explica.

 

Andrés chega a tais elaborações a partir da reflexão sobre a separação que se dá nos espaços urbanos. Segundo ele, as próprias cidades foram se forjando com essas desigualdades e separações. Mas o mais impressionante é que isso leva aos condomínios fechados e suas lógicas paralelas. “Esse tipo de conformação urbana, em que uma parte da sociedade se isola da esfera pública e busca resolver seus problemas de uma forma privada, é um grande degradador da vida democrática e da possibilidade de uma vida compartilhada nas cidades”, observa. E essa realidade paralela não só separa as pessoas e fragmenta a cidade, como cria as chamadas ilhas de privilégios enquanto o resto rui. “Os condomínios e os shoppings centers, por exemplo, dão concretude territorial e material às ilhas de privilégio legal estruturadas no coração da nossa sociedade em que a parcela rica sempre teve acesso a diversos elementos da cidadania”, detalha.

 

O problema, segundo o professor, é que esses empreendimentos e suas lógicas têm um boom justamente no momento em que o Brasil saía de um processo de repressão cívico-militar. “O esforço de retomada da democracia política acabou sendo esvaziado, erodido por essa ‘desdemocratização’, esse acirramento da segregação do espaço público”, completa. E o caldo vem entornado até esse grupo social que gosta de garantir os seus privilégios encontrar eco numa figura como o atual presidente da República. “Toda lógica de atuação de Jair Bolsonaro é a lógica de um morador de condomínio. Ele não enxerga a República, o espaço universal, só enxerga a facção e o espaço particular como beneficiários de sua atuação”, analisa.

 

O resultado é devastador, pois temos um processo de democratização interrompido pela segregação de pessoas e espaços públicos que, agora, ignoram os rompantes e devaneios do presidente pelo simples fato de que, apesar de tudo, suas benesses estão garantidas. “Jair Bolsonaro sempre se viu como uma pessoa, dotada de privilégios à margem da lei, e a lógica do condomínio enfatiza essa dinâmica. E os indivíduos, aqueles que estão sujeitos a desvantagens da lei, ficam do lado de fora”, resume.

 

Para Andrés, estar atento a esse processo é necessário para que possamos pensar em como reconstruir a cidade, o espaço público, o bem comum e livrar a República, no seu sentido pleno, dessas ameaças que conformam o próprio espírito cívico brasileiro. “Sinto que a sociedade brasileira, mesmo sem motivos para otimismo, precisa superar essa ideia de estarmos entre sermos o pior do mundo ou os melhores do mundo e começar a olhar com mais nuances e matizes os nossos problemas e potencialidades”, finaliza.

 

Roberto Andrés (Foto: Ricardo Machado)

Roberto Andrés é professor na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e doutorando em História das Cidades na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU-USP. Atualmente é pesquisador visitante no Urban Democracy Lab, da New York University. Foi um dos fundadores da revista Piseagrama, é pesquisador do grupo Cosmópolis e colaborador da revista Piauí. É revisor do Journal of Public Spaces e membro da Rede de Inovação Política da América Latina. Foi pesquisador da Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais e sócio-fundador do Instituto Maria Helena Andrés.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que as lógicas e os modos de vida nos condomínios fechados de classe média e alta revelam sobre a sociedade de nosso tempo?

Roberto Andrés – O Brasil está na vanguarda do mundo na segregação murada e no espalhamento de condomínios e shoppings centers, aquilo que chamamos de enclaves fortificados. Esse tipo de conformação urbana, em que uma parte da sociedade se isola da esfera pública e busca resolver seus problemas de uma forma privada, é um grande degradador da vida democrática e da possibilidade de uma vida compartilhada nas cidades.

A cultura de exclusão urbana brasileira hoje é vista, por urbanistas mundo afora, como uma possibilidade de tendência, visto que esse modo de segregação acaba sendo um sintoma de sociedades com alta desigualdade, como é a sociedade brasileira, uma das mais desiguais do mundo. E, mais do que isso, a segregação espacial torna-se um elemento que acaba por garantir e manter essa alta desigualdade. Em um contexto de aumento da desigualdade econômica global, a lógica dos condomínios brasileiros acaba por ser uma tendência em muitos países do mundo no que diz respeito ao isolamento das elites e de abandono da esfera pública.

 

 

IHU On-Line – O senhor destaca, em artigo recentemente publicado na Piauí, que a reconstrução democrática no Brasil, a partir dos anos 1980, coincidiu com um abandono dos espaços públicos pelas elites. Gostaria que detalhasse esse processo e avaliasse o impacto disso para a vida nas cidades e nessa própria ‘democracia reconstruída’.

Roberto Andrés – A sociedade brasileira, marcada pela escravidão, algo que definiu nosso modelo cívico, retomando os termos de Milton Santos, é uma sociedade de intolerância e de segregação sociorracial cuja presença sempre esteve no território e nos espaços. Historicamente, desde a República Velha, mesmo nas cidades desse período em que diferentes classes conviviam em áreas relativamente densas, as elites criaram uma série de artefatos, códigos e modos de promover e garantir a segregação em nosso país. Esse modo de segregação foi se alterando ao longo dos tempos, mas de forma a manter sempre as coisas como estão. É um país que tem um apartheid social próprio e, como relatou Denis Burgierman em um artigo recente, precisamos nomear esse apartheid social para começarmos a encarar a gravidade do nosso problema.

 

 

O processo da ditadura militar e civil de 1964 acentuou as desigualdades brasileiras. Foram anos de concentração de renda por uma gestão autoritária do Estado, em que as classes altas passaram a receber estratos cada vez maiores da renda nacional e as classes baixas a aferir parcelas cada vez menores dessa renda. Junto a esse processo nós vimos dois fenômenos muito marcantes.

De um lado, o aumento de uma certa intolerância autoritária – e ela é muito marcada naquele momento pela expressão ‘sabe com quem está falando?’, que, como notou o antropólogo Roberto DaMatta, era disseminada de alto a baixo no Brasil e que aponta para uma sociedade extremamente hierarquizada, em que a possibilidade de convívio na esfera pública regido por regras democráticas, em que todos são iguais, parece muito distante.

De outro lado, a degradação dos centros urbanos, promovida especialmente pelo rodoviarismo, foi tornando a convivência nos espaços públicos e nos centros das cidades cada vez mais difícil.

Esse é um processo interessante porque na primeira metade do século as elites utilizaram dos ônibus, dos automóveis e das estradas para criar o espraiamento urbano em que os pobres sempre foram morar nas lonjuras, enquanto as elites ficavam nas áreas bem providas de infraestrutura. Os ônibus urbanos foram fundamentais para que as pessoas pudessem morar nas periferias distantes e vir aos centros para trabalhar; também os automóveis, criando essa distinção de modos de deslocamentos. Esse modelo vai se esgarçando e quando chega nos anos 1970, já se torna um campo minado de conflitos por todos os impactos que ele gera.

 

 

Da cidade degradada para ilhas de privilégios

Os centros urbanos ficam cada vez mais poluídos e barulhentos, degradados com esse excesso de automóveis, e então surge um desejo das elites de ir morar junto da natureza, fora das cidades. É nesse momento que ‘se junta a tampa com a panela’, junta-se a degradação dos centros urbanos com a cultura autoritária brasileira e se forma o caldo necessário para a criação desses condomínios e para que estratos da sociedade fossem morar apartados da cidade, em espaços privativos. São ilhas de privilégios legais operando à margem da lei, mas que foram toleradas no Brasil desde os anos 1970.

 

 

E lembrando que isso aconteceu justamente no momento em que se retomava a democracia no país. O esforço de retomada da democracia política acabou sendo esvaziado, erodido por essa “desdemocratização”, esse acirramento da segregação do espaço público.

 

 

IHU On-Line – Como compreender a forma que se dá o processo de urbanização brasileiro e seus impactos na ideia de cidadania?

Roberto Andrés – O processo de urbanização brasileiro, como abordamos nas questões anteriores, se deu sempre a partir de elementos segregadores que mantiveram nosso apartheid social. Esses elementos eram a localização das casas nas cidades compactas da República Velha. Depois, num segundo momento, que a gente chama de cidade centro-periferia, a segregação passa a operar pelo completo descaso do Estado com os novos bairros que surgem nas periferias das cidades, enquanto o Estado segue a prover infraestrutura nas áreas ricas. É uma atuação ambivalente, própria do Estado, garantindo direito e privilégios para alguns e abandonando a maioria.

Milton Santos se referiu a uma série de cidadanias mutiladas na sociedade brasileira. Não custa lembrar que o Brasil viveu um dos maiores processos de urbanização do mundo, quando, entre os anos 1940 e 1980, as cidades brasileiras passaram de 12 milhões para 80 milhões de pessoas. Esse crescimento todo foi feito na base do desleixo, deixando que os mais pobres tivessem que se virar para fazerem seus próprios bairros, negando cidadania, direito à existência plena numa democracia que deveria prover um mínimo de direitos substantivos, como acesso à moradia, água, luz, urbanidade básica e serviços públicos.

E essa ausência de cidadania é também marcada nas classes altas que, a partir dos anos 1980, passam a abandonar a cidade e buscam resolver seus problemas nos espaços privados. Aqui quero retomar Milton Santos, que nos diz que no Brasil quase ninguém é cidadão. A classe média e as elites não são cidadãos porque não querem ser, preferem buscar privilégios. Enquanto a maioria da população, especialmente a população negra, não tem direito de ser cidadão, não consegue conquistar os direitos substantivos básicos da cidadania. Essa lógica é plenamente visível na conformação territorial e espacial das cidades brasileiras.

 

 

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre a ideia da classe média brasileira sobre bem-estar em lugares privados e a desconstrução do Estado como gestor de espaços públicos para a comunhão e vida em sociedade nas cidades?

Roberto Andrés – Com o processo que narramos acima, desenvolveu-se na classe média brasileira e nas elites uma ideia de bem-estar que é basicamente resolver suas vidas se voltando para elementos privados. Desde a forma de deslocamento no transporte privado até o acesso à educação privada, saúde privada e até resolver a questão de moradia e da vida nos bairros dentro dos condomínios, se tornam aspirações do país que passam a não depender mais da esfera pública. Essa é uma aspiração que ganhou muita força a partir dos anos 1980 e que se tornou um modelo de desenvolvimento pessoal na sociedade.

É preciso dizer que essas são lógicas exclusivistas, pois para funcionar pressupõem que a maior parte da população não tenha acesso ao mesmo tipo de serviço. Se todas as pessoas pudessem morar em condomínio, os problemas que os condomínios supostamente resolvem deixariam de ser resolvidos, porque os problemas da cidade estariam partilhados lá dentro. Se todas as pessoas pudessem se deslocar em automóvel, ninguém se moveria um centímetro, porque o espaço que um automóvel ocupa para transportar poucas pessoas é enorme, proporcionalmente ao transporte coletivo. Se todas as pessoas pudessem utilizar a saúde privada e a educação privada, essas formas de prover serviços não se pagariam, visto que os preços que elas praticam são exclusivos para uma certa classe social.

Assim, esse viés privatista da sociedade brasileira, embora tenha ocorrido com muita intensidade a partir dos anos 1980, está um pouco no DNA, no nosso modelo cívico. Esse modelo cívico teve um papel de erosão e redução da importância da vida coletiva e da vida compartilhada em um momento de democratização. É como se a vida política andasse num sentido e a vida cotidiana apontasse para o sentido oposto.

 

Bomba-relógio das cidades brasileiras

Essa foi nossa vivência no país nos últimos 40 anos. Como essa tendência não foi questionada nem mesmo quando tivemos um governo de esquerda, ela foi sendo aprofundada e chegou aos seus limites. O viés exclusivista mostrou que não era possível que todos tivessem carros sem que nós tivéssemos uma grande tragédia nas grandes cidades, que foi o que passamos a viver com o boom de automóveis no final da década passada, de aumento de acidentes, de poluição, da população se endividando, o abandono da esfera pública, o crescimento dos condomínios.

Tudo isso foi gerando o que a professora Ermínia Maricato chama de bomba-relógio das cidades brasileiras e que teve seu momento de explosão principalmente marcado naquelas revoltas de junho de 2013. Na época, uma parte da sociedade veio dizer que esse modelo não dava mais e que precisamos de outros modelos da esfera pública diferentes desse privatista. Era isso que estava muito em jogo em parte daquelas manifestações.

 

 

 

IHU On-Line – De que forma as lógicas de ilhas de privilégios erguidas nos espaços privados, como condomínios e shoppings, podem se tornar uma ameaça a estruturas do Estado e à própria instituição democrática?

Roberto Andrés – As ilhas de privilégio, que são os condomínios e os shoppings centers, por exemplo, dão concretude territorial e material às ilhas de privilégio legal estruturadas no coração da nossa sociedade em que a parcela rica sempre teve acesso a diversos elementos da cidadania, sejam os elementos básicos para existência, seja a capacidade de interferência no poder público, enquanto a maioria da sociedade seguiu alijada de direitos básicos. Os condomínios consolidam essa lógica e garantem que, para quem está dentro, as questões da vida comum possam ser regidas por regras à margem do Estado de Direito.

A segurança passa a ser privada e em muitos momentos a polícia não consegue nem entrar e nem se imagina, como argumenta Teresa Caldeira, a polícia entrando nesses condomínios para cumprir seu papel de fiscalizar e colocar ordem como coloca no restante da cidade. O único papel imaginado para a polícia seria manter os traficantes, os assaltantes, os estupradores do lado de fora, como se aquele espaço ali fosse uma ilha de cidadãos de bem.

Essa é a ideia consolidada nesses condomínios. De fato é uma manutenção de privilégios e de formas de driblar as regras do Estado Democrático de Direito por uma certa elite que nunca quis se curvar a essa universalidade e que até hoje gosta de dizer ‘sabe com quem está falando?’ em diversas situações para manter suas diferenciações não universalistas, suas diferenciações de classes sociais e raciais para assegurar seus privilégios.

 

IHU On-Line – Voltando ao seu artigo, o senhor detalha como o presidente Jair Bolsonaro, morador de um condomínio fechado na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, levou essa lógica e esse modo de vida para o centro do poder nacional. Como podemos apreender tais lógicas nas ações do atual governo?

Roberto Andrés – Toda lógica de atuação de Jair Bolsonaro é a lógica de um morador de condomínio. Ele não enxerga a República, o espaço universal, só enxerga a facção e o espaço particular como beneficiários de sua atuação. Aqui vale lembrar de um ditado de origem fascista que diz ‘aos amigos tudo, aos inimigos a lei’. É um ditado que tem muita adesão na lógica brasileira, e Roberto DaMatta trata dele em sua análise do ‘você sabe com quem está falando?’. Para o antropólogo, a sociedade brasileira sempre se dividiu entre os indivíduos e as pessoas.

 

 

Os indivíduos são qualquer um, o cidadão qualquer, a imensa maioria de desprovidos de direitos; e as pessoas são aquelas de um seleto grupo da elite. Jair Bolsonaro sempre se viu como uma pessoa, dotada de privilégios à margem da lei, e a lógica do condomínio enfatiza essa dinâmica. E os indivíduos, aqueles que estão sujeitos a desvantagens da lei, ficam do lado de fora. Por isso Jair Bolsonaro entende que poderia pescar em uma área irregular e o fiscal não teria direito de o multar, porque Bolsonaro não estaria submetido a essa desvantagem da lei.

Essa é uma lógica comum dentro dos condomínios. Quem já visitou esses condomínios sabe que crianças e adolescentes dirigem bugues e carros sem fiscalização da polícia, desrespeitando o Código de Trânsito, gerando acidentes e mortes, porque se entende que aquelas pessoas ali não precisam estar submetidas à universalidade das leis, que colocam para todos os mesmos direitos e deveres.

 

 

“Já adverti o garoto”

Isso é exemplar da conduta do atual presidente. Quando o deputado Eduardo Bolsonaro ameaça fechar o Supremo Tribunal Federal - STF com um cabo e um soldado, a resposta do presidente em que ele diz ‘ah, já adverti o garoto’ se parece muito com a resposta de um pai quando o filho, no condomínio, é pego fumando maconha atrás do muro do clube. Ou seja, você não precisa acionar a polícia, as instâncias do Estado de Direito, das nossas regras de convivência que são acionáveis para todos os sujeitos, porque nesse espaço se está entre pessoas e se resolve entre esse seleto grupo de bem-nascidos à margem da lei.

 

 

Essa é a conduta do presidente da República, toda baseada nessa diferença entre pessoas e indivíduos e buscando garantir que a atuação de alguns seja premiada em não ser punida pelas legislações que afetam a todos.

 

IHU On-Line – Podemos perceber lógicas repressivas e totalitárias da extrema direita de hoje com raízes comuns aos modos de vida em condomínios?

Roberto André – A extrema direita no Brasil se forma pela radicalização dessa lógica distintiva da qual falamos até aqui, da lógica de que a vida de alguns vale muito e a da maioria não vale nada. É a radicalização da lógica de que alguns têm direitos especiais e não precisam se submeter às leis, enquanto outros são detentores de uma vida que não vale nada e que podem ser exterminados ‘recebendo tiros na cabecinha’ pela polícia.

A cruzada de Jair Bolsonaro pelo fim dos radares e das multas no trânsito é uma cruzada pelo direito à contravenção, para que uns possam dirigir impunemente, possam passar dos limites de velocidade, furar sinais, colocar a vida de outros em risco e não receber nenhuma punição por isso. É a mesma lógica que vemos dentro dos condomínios em diversos de seus aspectos.

A cruzada de Jair Bolsonaro para que policiais que cometam atos de violência contra a população não sejam punidos é uma cruzada pelo direito à contravenção, pelo direito à ilegalidade, para que alguns possam agir impunemente à revelia das normas do Estado. No fim, estamos falando de uma busca da extrema direita por institucionalizar mais, fortalecer e garantir privilégios e condutas à margem do Estado de Direito, em uma dinâmica que é profunda na sociedade brasileira e que encontrou abrigo territorial na configuração daquilo que chamamos de enclaves fortificados, que são esses espaços que operam à margem da lei.

 

 

IHU On-Line – Que nexo há entre as lógicas de segurança, e também financeira, de condomínios fechados de classe média alta e as milícias, especialmente as que atuam nas periferias do Rio de Janeiro?

Roberto Andrés – Os condomínios surgem, como dizíamos, com a degradação dos centros, no caldo da cultura autoritária brasileira, mas também junto a um aumento da violência que justamente essa degradação dos centros e a enorme desigualdade econômica no Brasil nos legaram com muita força a partir dos anos 1980. Esse aumento de violência opera no mundo real e também por aquilo que chamamos de narrativas do crime, pelo falar sobre o crime, a propagação de uma ideia de violência, em que a imprensa acaba atuando sem desempenhar um papel crítico em torno disso.

No fim, o que os condomínios vendem é segurança para alguns. Então se servem desse espalhamento da violência e da narrativa do crime para impulsionar seus próprios negócios. Da mesma maneira, as milícias se servem da precariedade, da falta de atuação do Estado e aumento da violência em certas áreas para extorquirem bairros e pessoas em troca de segurança paga.

Estamos falando em controle paraestatal de territórios nas duas situações, de um modo de extorsão e de garantir um certo benefício econômico para um grupo de controle graças a um problema de segurança e ineficiência do Estado. Esse controle paraestatal, miliciano para as áreas mais pobres e “condominializado” para os mais ricos, é uma moeda de duas faces: a da falência urbana brasileira como modo organizador da vida em sociedade.

 

 

IHU On-Line – Que cicatrizes as lógicas dos modos de vida dos condomínios fechados levadas ao centro do poder nacional podem deixar nas experiências de cidadania e democracia do país?

Roberto Andrés – As cicatrizes que os modos de vida dos condomínios nos legaram estão aí, muito representadas no momento político pela ascensão do autoritarismo, do banditismo bolsonarista, desse grupo miliciano que busca privilégios pessoais e atuam pela lógica de que a vida de alguns vale muito e a da maioria não vale nada.

Os impactos futuros disso são mais difíceis de prever, mas é difícil ter um otimismo num momento como esse. É importante olhar para trás e perceber que mesmo há uma década, quando o país era extremamente otimista quanto ao seu futuro, estávamos completamente cegos para esse processo subterrâneo, cotidiano da milicianização da lógica de vida, de condominialização da política e de intensificação do autoritarismo, da hierarquia, do racismo e das diversas formas de distinção social na vida cotidiana de nossas cidades.

Precisamos revisitar o momento de otimismo extremo, como aquele de uma década atrás, em que acreditávamos que o país iria decolar, crença que só se sustentava fechando-se os olhos para processos que ocorriam na base da sociedade com extrema força e que hoje são sentidos em seus impactos. Também convém ter um olhar crítico para um momento extremamente pessimista como o que vivemos hoje. Sinto que a sociedade brasileira, mesmo sem motivos para otimismo, precisa superar essa ideia de estarmos entre sermos o pior do mundo ou os melhores do mundo e começar a olhar com mais nuances e matizes os nossos problemas e potencialidades, nossos desafios.

 

 

IHU On-Line – Levando em conta que o ‘cidadão de bem’, de uma classe média condominial, esteve entre parcela significativa do eleitorado de Bolsonaro, como o senhor analisa o abandono do projeto bolsonarista de parte desse eleitorado?

Roberto Andrés – Seria muito bom se o cidadão de bem, da classe média condominial, estivesse abandonando o projeto bolsonarista. Acredito que o presidente perdeu popularidade entre alguns setores econômicos mais ricos – também muito menos do que deveria perder se essas pessoas levassem minimamente a sério a ciência, a gestão pública –, mas ainda assim me parece que esse eleitorado fica um pouco em trânsito e tem possibilidade de voltar para o bolsonarismo num momento de polarização, como a próxima eleição.

Não sou muito otimista sobre esse abandono, com a percepção de que há algo mais enraizado, mais profundo nessa aderência desse setor ao bolsonarismo. Não se trata somente de uma pauta de liberalismo econômico, há um autoritarismo estrutural na sociedade brasileira que esse setor encontra no bolsonarismo como alternativa e que por mais que o presidente tenha por demais ficado xucro para alguns deles, me parece que uma polarização eleitoral pode fazer com que esses setores retornem para a base do presidente ou para uma espécie de voto crítico.

 

IHU On-Line – Como o senhor imagina que a experiência da pandemia pode impactar as relações com a cidade, especialmente nesse binômio espaços públicos e privados, além dos modos de vida urbanos?

Roberto Andrés – Num primeiro momento, a pandemia tem potencializado a erosão da vida urbana e a dispersão da concentração urbana, visto que o maior cuidado das pessoas é para justamente não se aglomerarem. Embora isso também não seja a regra, pois muita gente negacionista segue a vida como se as aglomerações não tivessem impacto. No entanto, a história de outras pandemias nos mostra que elas não foram capazes de reverter a tendência ao adensamento contemporâneo; as cidades continuaram se adensando depois que essas pandemias passaram.

É complicado prever, mas em um país como o Brasil é difícil imaginar que a vida urbana vá se desfazer de um dia para outro. Até porque a maior parte da população não está vinculada a trabalhos que sejam possíveis em home office e vai continuar fazendo trabalhos presenciais; e os lugares onde tem a oferta de trabalho maior são os centros urbanos e dificilmente isso muda num futuro próximo.

 

A volta das disputas pré-pandêmicas

A convivência em espaços públicos e privados também pode passar por movimentações, mas a tendência é que a gente volte para uma situação de disputa que vivíamos antes da pandemia. De um lado, a tendência de gerações mais jovens de busca por uma ideia de esfera pública que se expressou em 2013. E de outro lado a tendência econômica e conservadora majoritária da sociedade de intensificação da segregação, inclusive com todos os conflitos que gera, porque essa tendência produz impactos que a fortalece.

É o que chamamos de retroalimentação positiva. Quanto mais gente adere ao automóvel, mais se geram impactos que deterioram os espaços urbanos e tornam mais difícil a convivência de pedestres nesse espaço. A própria escolha do modo de vida privatista acentua em outras pessoas a escolha por esse mesmo modo de vida. Essa disputa me parece que retorna depois da pandemia e o que seremos capazes de avaliar é se ela retorna muito avariada para o grupo que é mais jovem, mais progressista na sociedade, que aponta para vida no espaço público, ou se justamente esse distanciamento da pandemia acabe fazendo com que essa tendência volte com mais força.

 

IHU On-Line – A pandemia também trouxe à tona o flagelo das desigualdades em diversos espaços, entre eles a cidade. Como evitar que essa seja mais uma experiência de segregação e exclusão?

Roberto Andrés – A pandemia revela todas essas segregações e exclusões da sociedade brasileira e as intensifica. As nossas desigualdades de moradias se explicitaram, já que alguns puderam se isolar com o conforto de suas casas e outros não. Da qualidade das moradias, uns moram em casas ventiladas e outros em casas pouco ventiladas, com muitos moradores e sujeitos à transmissão do vírus. Da desigualdade dos bairros, alguns moram em bairros em que podem caminhar ou que têm seus próprios espaços privados, outros moram em bairros em que os espaços de lazer seguros não são possíveis. E há a desigualdade de mobilidade, pois uma maioria da população teve de continuar se deslocando de ônibus, com muito pouco investimento em modos de circulação seguros, e a parte mais rica da sociedade pode se deslocar em automóveis, garantindo muito mais a sua segurança.

 

 

Todas as desigualdades expostas e intensificadas fizeram parte do mecanismo que distribuiu o vírus pela sociedade. E o resultado está nos números que revelam impacto muito maior da Covid na população pobre e negra, nesse contínuo repetir do nosso apartheid social, a nossa forma de segregação social cotidiana e não enfrentada basicamente por nenhum governante nessa pandemia.

 

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