"O trânsito no Brasil é uma multidão de surtados"; Entrevista com Roberto DaMatta

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07 Março 2011

O brasileiro não suporta a igualdade. Essa é a imagem sugerida por um dos intelectuais mais eminentes do país, o antropólogo Roberto DaMatta, para explicar a origem da atitude do servidor do Banco Central Ricardo Neis, que atropelou um grupo de ciclistas em uma rua de Porto Alegre.

Com uma carreira dedicada à tarefa de explicar o Brasil e os brasileiros, DaMatta sustenta que carregamos um sentimento aristocrático, que nega a igualdade com o outro. No trânsito, isso se traduz na dificuldade para seguir regras e para aguardar nossa vez. Na entrevista a seguir, concedida por telefone na tarde de sexta-feira, DaMatta aborda o atropelamento da Capital sob a luz dessa tese, desenvolvida por ele no recém-publicado Fé em Deus e Pé na Tábua - Ou Como e Por Que o Trânsito Enlouquece no Brasil.

A entrevista é de Itamar Melo e publicada pelo jornal Zero Hora, 05-03-2011.

Eis a entrevista.

O que leva alguém a cometer um ato como o atropelamento de ciclistas?

Há uma questão que permeia as sociedades que transitam para a modernidade, que é a dialética entre familismo e universalismo, entre regras particulares e regras universais. São essas regras que possibilitam a democracia liberal, ainda um nome feio no Brasil, o que permite o golpe de Estado e o atropelamento de ciclistas. Todos nós, não só esse criminoso que teve um surto psicótico, surtamos no trânsito. O trânsito no Brasil é uma multidão de surtados. Ele permite que a gente enxergue com clareza que os brasileiros sentem mal-estar diante da igualdade. Não é diante da desigualdade que temos mal-estar.

Qual seria a causa desse mal-estar?

Temos uma matriz aristocrática, ibérica e patrimonialista, que nunca discutimos. Achamos que o Estado vai mudar isso, mas os caras que dirigem o Estado, que se transformam em governadores, em deputados, em juízes, são os nossos irmãos, os nossos primos, os nossos tios. A mudança a partir do Estado é uma falácia. Obviamente, esse sujeito tem um incômodo com a igualdade, a igualdade no sentido de que o trânsito obriga você a esperar a sua vez. Não somos educados para isso. Não temos uma pedagogia da igualdade no Brasil.

Então esse episódio revela algo sobre o comportamento do brasileiro em geral?

O trânsito revela o comportamento e os valores do brasileiro. É evidente que, na cabeça desse sujeito, quem está de automóvel é superior ao pedestre. Há uma hierarquia projetada em um espaço que, na realidade, é igualitário.

O brasileiro não enxerga isso?

Não enxerga. Em outras situações igualitárias, como a fila do banco, você passa na frente se for primo de quem está no guichê. Temos um desconforto muito grande com componentes da modernidade democrática, liberal e igualitária, um desconforto com o anonimato, a meritocracia, a paciência de esperar sua vez, de não reclamar.

Dentro desse contexto, que papel o carro assume no imaginário do brasileiro?

O carro vira o emblema, a couraça do brasileiro. Quando a pessoa entra no seu carro, está em uma carruagem com 250 cavalos na sua frente. O carro é uma espécie de casa. Ele se sente um aristocrata. Como o trânsito é uma situação igualitária, impessoal, se ele buzina, o sujeito manda ele tomar banho. Então ele se enfurece porque se sente ofendido.

Esse é um fenômeno exclusivamente brasileiro?

Enxergo esse fenômeno em todos os lugares, só que nos outros lugares as pessoas têm consciência disso e educam os meninos, desde a escola, a esperar na fila.

No Brasil, como ficam o pedestre e o ciclista?

O ciclista, o motociclista, o carroceiro e o pedestre têm uma hierarquia complicada. Porque o ciclista também, sem querer minimizar o incidente, que foi um crime, anda por onde ele quer. Acha que está isento de regras. Quase todo ciclista que encontro está na contramão. É a mesma coisa com os pedestres. É uma atitude tipicamente aristocrática. A pessoa não dá lugar para o outro. O outro não existe. Como é que você pode viver em uma sociedade igualitária em que o outro não existe?

A forma de alterar esse comportamento seria a partir da educação?

A única maneira de alterar é, primeiro, discutir. Tomar consciência, admitir que a gente tem um viés aristocrático que precisa ser discutido. A mudança está no redesenho de comportamentos, de valores. Por isso falei em pedagogia. Não é só na escola. É todo um sistema educacional, uma consciência de que os outros também existem. Nós estamos com os outros, e não contra os outros.

O senhor entende que o atropelamento dos ciclistas pode ter algum efeito positivo, no sentido de favorecer essa discussão?

O choque provocado por essa situação é equivalente a uma rasteira, a tomar um tiro nas costas. Tem de ser aproveitado como uma lição.

O que isso está dizendo sobre Porto Alegre, sobre o trânsito e sobre o Brasil?

As pessoas em geral vivem sua vida e não vão repensar suas atitudes. Mas aqueles que têm um desconforto, como eu com a desigualdade, esses repensam.

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