27 Abril 2018
Especulação imobiliária avança, mesmo em meio à crise. Metrópoles expandem-se horizontalmente, tornam-se mais caras e segregadas. Um novo projeto é indispensável — e precisa superar inclusive as ambiguidades da esquerda.
O artigo é de Erminia Maricato, profa. titular aposentada da USP e Ana Gabriela Akaishi é arquiteta e urbanista, doutoranda da FAUUSP, publicado por Outras Palavras, 25-04-2018.
Com o boom imobiliário vivido pelas cidades brasileiras nos últimos anos — mas especialmente entre 2009 e 2015, a chamada dispersão urbana foi radicalmente ampliada. A histórica especulação rentista baseada na propriedade fundiária e imobiliária foi potencializada a níveis nunca vividos nas cidades. Loteamentos fechados — erradamente (e convenientemente) chamados de condomínios horizontais — e os conjuntos habitacionais populares do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) funcionaram como vetores de dispersão e fragmentação urbanas. Em 7 anos, aproximadamente R$ 788 bilhões provenientes do FGTS, Orçamento Geral da União (OGU) ou setor privado foram investidos nos mercados residenciais urbanos, isto é, sem considerar as demais obras urbanas como as de mobilidade e saneamento (MARICATO E ROYER, 2017). Ao invés da necessária regulação fundiária e imobiliária para aplacar o vendaval especulativo, governos e câmaras municipais flexibilizaram a legislação e ampliaram o perímetro urbano incluindo nele verdadeiros latifúndios, especialmente nas cidades de porte médio.
O resultado dessas práticas foi o aumento do preço do metro quadrado de construção e aumento generalizado do preço dos aluguéis muito acima do custo de vida (SECOVI-SP, 2017). Eles se mantêm em patamar alto mesmo após o desaquecimento da economia, acrescentando alguns graus no sofrimento das camadas populares submetidas ao aumento do desemprego e da informalidade especialmente depois do golpe de 2016. Diferentemente de outras mercadorias, a moradia não tem queda do preço com o aumento da produção. Para que a redução aconteça, as atividades especulativas devem ser freadas ou reguladas — como acontece em países do capitalismo central para os quais a elite brasileira gosta muito de viajar.
A cidade (hiper) dispersa, como mostra vasta bibliografia sobre urbanismo é insustentável do ponto de vista ambiental, mas também econômica e socialmente. Dados da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP) mostram por meio do SIM – Sistema de Informação sobre Mobilidade – o aumento no tempo médio das viagens para todas as formas de transporte (“modais”), nos últimos anos (ANTP, 2016a)[1]. Os dados mostram também o aumento do custo nos transportes individual e coletivo com a extensão das periferias. Claro que a desoneração fiscal para compra de automóveis, medida tomada pelo governo federal no mesmo período, tem sua parcela de responsabilidade nessa cena. Entre 2003 e 2014, o número de automóveis mais do que dobrou nas ruas e avenidas urbanas, contribuindo para ampliar a irracionalidade resultante da ocupação do solo orientada pelo rentismo fundiário e imobiliário.
Dados sobre tempo de mobilidade Brasil (Foto: ANTP)
A cidade dispersa resulta muito mais cara e improdutiva, pois acarreta a elevação do custo de implantação das redes de água, esgoto, drenagem, iluminação pública, dos serviços de coleta de lixo domiciliar, saúde, educação, etc. Mas se muitos perdem com a extensão da ocupação urbana rarefeita, poucos ganham e ganham muito. O rentismo imobiliário funciona como uma espécie de ralo da riqueza social que se cola no preço das propriedades. A burguesia brasileira parece ter migrado da atividade industrial – que cai a partir de 1980 – para o rentismo imobiliário além do rentismo financeiro. As formas como se deram os acordos entre proprietários de imóveis, capitais ligados à produção do ambiente construído e investimento público chegaram a promover aumentos de até 700% no preço de imóveis, entre 2002 e 2012, na cidade do Rio de Janeiro (SECOVI-RIO, 2012)[2], apenas para dar um exemplo radical.
Redirecionar esse rumo tomado pelas cidades exige contrariar interesses seculares no Brasil. A partir do final dos anos 1980, parecia que caminhávamos nessa direção. Logramos aprovar um dos arcabouços legais que estão entre os mais avançados do mundo com a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001), a Lei Federal da Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/2012), o Estatuto da Metrópole (Lei nº 13.089/2015), entre outras. Mas foi inútil pois, embora constando dos Planos Diretores, essa legislação não tem sido aplicada. E mais: o Judiciário mostra desconhecê-la na maior parte dos julgamentos. Sentenças judiciais que determinam despejos de populações vulneráveis, como foi o caso do Pinheirinho, em São José dos Campos, e desapropriações com remunerações milionárias, mesmo em se tratando de imóveis que devem milhões em impostos, mostram que manter a propriedade ociosa pode contrariar a lei (que prevê a função social da propriedade) mas é um bom negócio.
No momento em que forças vivas da sociedade brasileira reagem à perda de direitos sociais e agressão à soberania nacional retomando a construção de um projeto para o país (Projeto Brasil Nação, Projeto O Brasil que o Povo Quer, Projeto Popular para o Brasil e Plataforma Vamos) é hora de repensar também as cidades. A defesa de algumas condições é elemento de unidade para urbanistas do mundo todo, em que pese a diversidade das cidades e regiões. A cidade compacta (contrária à a dispersão horizontal), a mobilidade ativa (mais viagens a pé ou de bicicleta), o mix de usos (viabilizando a rua viva e segura durante a noite e durante o dia) são características que devem se somar à cidadania informada e participativa e ao combate à desigualdade de renda, raça e gênero. Nossas cidades que têm um histórico de desigualdade social e patrimonialismo estão bem longe dessas condições. Há muito trabalho pela frente. Um bom começo para a retomada de Um Projeto para as Cidades do Brasil – BrCidades seria ampliar as informações sobre elas. Seria importante começar, por exemplo, pelo conhecimento dos grandes proprietários urbanos – especialmente das terras e imóveis vazios e ociosos – a concentração das propriedades e as dívidas em IPTU. [3]
São Paulo é uma das poucas cidades no Brasil (se não a única) a abrir publicamente o cadastro imobiliário fiscal do IPTU, o que aconteceu durante a gestão de Fernando Haddad, por meio da plataforma Geosampa. Muitas e importantes informações vieram à tona.
Em maio de 2016, a Prefeitura de São Paulo disponibilizou, através do Geosampa, a base completa do cadastro imobiliário fiscal do IPTU do município de São Paulo inteiro, em formato aberto. Em outras palavras, qualquer cidadão pode ter acesso aos proprietários de todos os imóveis da cidade. Qual a importância disso? A plataforma Geosampa, seguindo as diretrizes do Plano Diretor, reúne mais de 150 tipos de dados georreferenciados — dentre eles cerca de 12 mil equipamentos urbanos, consulta do Zoneamento atual e antigos, rede de transporte público, infraestrutura urbana, mapas geotécnicos e dados populacionais, entre outros[4].
Este cadastro tem 3,3 milhões registros imobiliários, sendo que destes 8 mil são registrados em nome da prefeitura, governo do estado e união.
1% dos donos de imóveis na cidade concentra 45% do valor imobiliário de São Paulo. São R$ 749 bilhões em casas, apartamentos, terrenos e outros bens registrados no nome de 22,4 mil proprietários – os mais ricos entre 2,2 milhões de proprietários de imóveis da capital. Em dados quantitativos, isso representa 820 mil imóveis[5].
Os bens imobiliários desses 1% dividem-se em três grupos. O primeiro é composto por imóveis caros em áreas ricas da cidade: quase metade desse patrimônio está em 10 dos 96 distritos paulistanos mais valorizados: Itaim, Jardim Paulista, Pinheiros, Santo Amaro, Moema, Vila Mariana, Morumbi, Consolação, Bela Vista e Vila Andrade. O segundo tem galpões e outras áreas de grande metragem em antigos bairros industriais, como Barra Funda, Brás, Lapa e Vila Leopoldina. Por último, há vários terrenos vazios nas franjas da cidade, em distritos como Cidade Tiradentes².
O empresário João Carlos Di Genio, fundador do Grupo Objetivo e da Universidade Paulista (Unip), uma das maiores instituições educacionais do país, tem mais de R$ 1 bilhão em imóveis. O segundo no ranking é o empresário Hugo Eneas Salomone, fundador da Construtora e Imobiliária Savoy, que tem 66 anos de história e é proprietário de pelo menos 180 mil m2, dos quais 93 mil m2 no centro da cidade. Dentre eles, o Shopping Aricanduva, Shopping Central Plaza, Shopping Interlagos, Galeria Olido e grande parte do Conjunto Nacional.
Em terceiro lugar no ranking, está o espólio da mãe do deputado federal Paulo Maluf (PP), ex-prefeito e ex-governador, e o empresário Alécio Pedro Gouveia, um dos donos da rede de supermercados Andorinha. Seus 19 imóveis valem quase R$ 450 milhões. Entre eles há terrenos e galpões que pertenciam à Eucatex, empresa fundada por Salim Maluf, pai do ex-prefeito[6].
O acesso aos dados permitiu também à imprensa chegar a informações inesperadas. O desembargador José Antônio de Paula Santos Neto, com salário de R$ 30.471,11 além de receber auxílio-moradia, tem 60 imóveis registrados em seu nome na base do IPTU. Seu patrimônio inclui apartamentos em bairros valorizados da capital paulista, como Bela Vista, Perdizes, Pacaembu, Cerqueira Cesar, Higienópolis e Morumbi[7].
A questão da terra (rural e urbana) continua, há 500 anos, no centro do conflito social no Brasil. Há muitos interesses em jogo, lobbies fortes e bem organizados econômica e politicamente, inclusive internacionalmente. A ONG Transparência Internacional realizou pesquisa na qual demonstra que 3,4 mil imóveis em São Paulo avaliados em R$ 8,5 bilhões estão ou estiveram em nome de empresas offshore registradas em países como EUA, Panamá, Suíça, Uruguai e outros[8]. Por outro lado, existem os excluídos de sempre, que passam horas espremidos nos transportes públicos na metrópole de São Paulo, sacrifício que tem tudo a ver com os processos de valorização imobiliária e segregação urbana.
O nó da terra nas cidades pode ser escancarado através de ferramentas como o Geosampa. Ela deveria ser replicada nas cidades do país. A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) possibilitou a qualquer pessoa, física ou jurídica, receber, em 20 dias, informações públicas dos órgãos da União, Estados e Municípios, inclusive aos Tribunais de Conta e Ministério Público. A Constituição Federal prevê a Função Social da Propriedade e a Função Social da Cidade (art. 182 da CF de 1988). Vamos aplicar as leis. Não cabe mais ingenuidade sobre a dimensão que assumiu esse conflito de interesses. É por aí que poderemos retomar a luta por cidades mais justas, produtivas e sustentáveis.
Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Sistema de Informações da Mobilidade Urbana. Relatório Geral 2014. São Paulo, 2016.
Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Sistema de Informações da Mobilidade Urbana. Relatório Comparativo 2003-2014. São Paulo, 2016a.
MARICATO, E. e ROYER, L. A política urbana e de habitação. In MARINGONI, G. e MEDEIROS, J. (orgs) Cinco mil dias- o Brasil na era do lulismo. São Paulo/Boitempo. 2017
ONG TRANSPARENCIA INTERNACIONAL. SÃO PAULO: A CORRUPÇÃO MORA AO LADO? Empresas offshore e o setor imobiliário na maior cidade do hemisfério sul. São Paulo, 2017.
ROYER, Luciana de Oliveira. Financeirização da política habitacional: limites e perspectivas. Tese de doutoramento. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.
SECOVI-SP. Relatório Aluguel Índice do Valor Médio Contratado. Série histórica. 2017.
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O Brasil na era das cidades-condomínio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU