29 Mai 2020
Cria da favela da Portelinha, no extremo sul da cidade de São Paulo, o rapper Mano Cobra, 42 anos, nome artístico de Jorge Rodrigues Ferreira, sabe bem quem são os inimigos da quebrada, como a violência policial e o preconceito.
Ex-integrante do grupo Conexão do Morro, o artista se dedica à carreira solo e no novo trabalho, a canção Inimigo Invisível, fala de um inimigo não tão ostensivo, mas que tem matado muita gente, principalmente entre a população pobre e negra: o coronavírus.
“Inimigo Invisível é um presta atenção. Muitas vezes as lideranças políticas não têm a mesma credibilidade que o rap construiu [na periferia]”, avalia Mano Cobra.
É aqui na Ponte que Cobra lança, com exclusividade, o clipe da música em que busca mandar um papo reto e conscientizar as pessoas sobre a pandemia da Covid-19. Para o rapper, o mais importante é que seus versos cheguem nas periferias de todo o Brasil. E ironiza o termo usado na quarentena. “O que existe é um isolamento físico. Isolamento social sempre existiu na periferia”, pontua.
Em entrevista à Ponte para falar do lançamento de “Inimigo Invisível”, Mano Cobra contou sobre sua carreira, as dificuldades diárias encaradas pelos mais pobres e da saudade de DJ Lah, amigo e parceiro de música, assassinado na chacina do Jardim Rosana, em 4 de janeiro de 2013, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Sete pessoas foram mortas naquela noite no Bar do Rob, entre elas Láercio de Souza Grimas, 33 anos, o DJ Lah. Dez PMs foram acusados de participar da matança, mas nenhum foi punido. “De vez em quando me pego com lágrimas nos olhos pensando no DJ Lah”, desabafa.
A entrevista é de Paulo Eduardo Dias, publicada por Ponte, 28-05-2020.
Como surgiu a ideia de escrever uma música sobre o coronavírus?
O rap é uma autoajuda e num momento desse não poderia se calar. A gente tem que se expressar. Eu sou amigo há muitos anos do Fernando Costa Netto [jornalista e parceiro em Inimigo Invisível] e, assim que a pandemia começou a chegar no Brasil, ele foi uma das primeiras pessoas que se mobilizou para auxiliar as comunidades. E aí nós fomos distribuindo alimentos para algumas delas. Nessa distribuição de alimentos, nós fomos fazendo alguns registros e daí surgiu a ideia de fazer um alerta para as pessoas que não têm um compromisso com as normas que precisam ser seguidas, principalmente na periferia.
O que você pode falar sobre a música Inimigo Invisível?
Abordo muitas coisas, mas tem um trecho que diz “se você morrer, vai apodrecer, e depois eles vão dizer ‘e daí?’ pra você'”.
Você acha que a periferia sofre mais com essa briga de política sobre se deve ser mantida ou não a quarentena?
Algumas pessoas são desinformadas e, às vezes, ignorantes pelo lado da doença. Contudo, as lideranças políticas cada uma fala uma coisa. O brasileiro tem uma ideia imbecil de achar que é invencível, que é diferente do resto do mundo, acha que não vai chegar até ele, mas o vírus está aí.
Como você analisa o isolamento social para o pobre?
Eu costumo dizer que o isolamento em que nós estamos é físico, porque o social sempre existiu. Numa pandemia dessa, se não fosse a ajuda de um brasileiro com o outro, se não fosse a periferia se mobilizar por alimento, a situação poderia estar pior.
Ponte – O auxílio emergencial supriu as necessidades?
Esses R$ 600 só dá para comprar mistura. Quem deu a comida foi a caridade um com outro. Foi tirado uma venda dos olhos de uma parte da elite. Muita gente acha que não, mas muitas vezes na sua casa não falta arroz e feijão, mas na casa de muita gente, sim. O brasileiro faz um pelo outro, mas na verdade, esse papel é do governo.
E você, Mano Cobra, como está se prevenindo?
Eu tenho uns animais, cachorros e gatos na favela, então tenho que levar comida para eles. Eu vou de máscara. Na volta, a roupa que uso coloco em um saco, passo álcool em gel e lavo bem as mãos ao entrar em casa. Depois que entro, troco os calçados, tomo banho e mais álcool na mão e procuro não sair novamente. Está chegando cada vez mais perto da gente.
Como você analisa o fato de a pandemia afetar mais negros e pobres?
A pessoa mais pobre é negra e negra é a mais pobre. A periferia está desguarnecida, está esquecida. O único que chega na periferia nessa hora de pandemia é a polícia, mas isso não é muito diferente da rotina, do que já acontece em outras situações. Não tem plano social. Na periferia é tudo emergencial, porque as pessoas não podem mais esperar. Um dia de espera significa uma vida ou várias vidas. Não se pode esperar.
O álbum “Saiam da mira dos tiras” (1998) foi o que projetou nacionalmente o Conexão do Morro e o Mano Cobra. Qual o significado do título?
A gente pedia para sair da mira dos tiras e não ir de encontro com a polícia. Se manter trabalhando, se manter na escola. Isso é sair da mira dos tiras.
Como gosta de passar seu tempo quando não está empenhado em compor ou com agenda cheia de shows?
Eu me dedico exclusivamente ao rap, mas sou cozinheiro. A vida da música é corrida, mas tem horas que fica um período sem gravar, aí você fica livre. Eu procuro cozinhar, eu gosto de fazer comida.
Como está o Conexão do Morro?
Em 2013 DJ Lah foi assassinado em uma chacina em um bar, daí as atividades pararam. Não me vi continuando sem o DJ Lah. Entrei numa depressão cabulosa. Eu ficava muito triste, amargurado. De vez em quando me pego com lágrimas nos olhos pensando no DJ Lah. Para absorver tudo isso demora um tempo, mas ao mesmo tempo não quero parar de fazer música. Tem um pessoal que gosta do meu trabalho. Pessoas se espelham na gente e isso mantém vivo nossos sonhos.
Inimigo Invísivel
Música: Mano Cobra
Instrumental: DJluiz Só Monstro
Produção Musical: Zezinho Mutarelli
Gravado e Mixado no estúdio Sax so Funny
Imagens do videoclipe: João Wainer e Fernando Costa Netto
Direção, montagem e finalização do videoclipe: Georgia Guerra-Peixe e Giulas Saade
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Mano Cobra lança música sobre coronavírus: ‘Isolamento social sempre existiu na periferia’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU