12 Setembro 2017
“Foram necessários 16 anos para se dar conta de que a pretensão de controlar tudo do centro, de transformar as línguas vernáculas em simples instrumentos do latim era uma ideia unilateral e distorcida, fruto de uma teoria do texto, da comunicação, da teologia e da eclesiologia sem verdadeiros fundamentos na tradição.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 11-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Uma das primeiras manchetes de um grande jornal italiano, que dava a notícia do motu proprio Magnum Principium, soava assim: “Papa concede mais liberdade aos episcopados...”. Um bom colega teólogo, o professor Stefano Parenti, logo observara em um comentário na rede: “Atenção: aqui o papa não concede, mas restitui”, assinala Andrea Grillo.
A publicação do motu proprio Magnum Principium, assinado no dia 3 de setembro e que entrará em vigor no dia 1º de outubro de 2017, é uma virada importante na longa questão das “traduções litúrgicas”. Para compreender o seu significado, é necessário contextualizar brevemente o texto na história dos últimos 20 anos, para depois examinar os conteúdos normativo, eclesiológico e teológico do documento.
Trata-se de um documento curto (aqui a referência ao texto, acompanhado de uma nota jurídica e de uma interpretação do secretário, Dom Roche), mas cujos efeitos estão destinados a modificar profundamente os hábitos eclesiais, as representações teológicas e as práticas institucionais.
Em primeiro lugar, tento reconstruir o contexto no qual o documento pode assumir, hoje, toda a sua importância.
O título e a abordagem do documento remetem a um “grande princípio” afirmado pelo Concílio Vaticano II, ou seja, a “compreensão dos textos litúrgicos” por parte do povo, para assegurar a participação na ação celebrativa. A história da “grave tarefa” de traduzir os textos litúrgicos conheceu diversas fases, mas, nos últimos 30 anos, tinha conhecido, progressivamente, uma espécie de paradoxo: com a instrução Liturgiam authenticam (2001), tinha-se afirmado um princípio de “tradução literal”, como garantia da fidelidade ao texto em latim, que, de fato, tinha tornado impossível toda boa tradução.
As Conferências Episcopais encontravam-se pressionadas por uma polaridade insolúvel: ou obedeciam à normativa da instrução e traduziam de modo incompreensível ao seu povo; ou traduziam de modo compreensível, mas não tinham as traduções aprovadas pela Congregação.
A partir de 2001, o desconforto crescera cada vez mais, até os protestos explícitos que, nos últimos anos, tinham chegado dos episcopados alemães, franceses, estadunidenses, canadenses, italianos...
Na realidade, o “bloqueio institucional” dependia, como veremos, de um duplo bloqueio teórico, que pretendia garantir a fidelidade segundo dois princípios drásticos demais: devia-se traduzir literalmente e devia-se traduzir sem interpretar. Mas a experiência eclesial e a reflexão teológica demonstraram a ilusão teórica e a distorção prática dessa pretensão.
O coração de motu proprio é uma modificação do Código de Direito Canônico, no cânone 838, que é reformulado, introduzindo uma distinção decisiva (cf. Nota Oficial, aqui).
A relação entre a Santa Sé e os episcopados locais previa um único instrumento de correlação – a recognitio. Agora, retomando uma distinção nada nova, prevê duas: ao lado da recognitio, é introduzida a confirmatio. Com a primeira, a Santa Sé entra diretamente nas escolhas feitas pelas Conferências Episcopais quando dizem respeito à adaptação dos textos. Com a segunda, ela se limita a um controle formal, pressupondo a “fidelidade de tradução”, tal como garantida pela experiência local dos episcopados.
Essa distinção tem imediatamente dois efeitos:
- redimensiona a pretensão de controle central, que, desde 2001, tinha crescido desmedidamente, inspecionando detalhada e unilateralmente cada palavra traduzida;
- leva em conta a exigência de “interpretação” para a tradução do latim a uma “língua do povo” e a confia, ordinariamente, à competência dos bispos do lugar.
Com essa articulação entre recognitio e confirmatio, não apenas teremos uma simplificação processual na aprovação das traduções, mas também o delineamento de uma teologia e de uma eclesiologia em que a “sinodalidade” e a “descentralização” se tornam práxis necessária.
Com efeito, embora na sua concisão, o documento papal não renuncia a um espaço de “argumentação teológica” no qual encontramos afirmados pelo menos quatro princípios que não ouvíamos com tanta clareza há quase 50 anos:
- o “grande princípio” da exigência de compreensão da oração litúrgica por parte do povo;
- o princípio segundo o qual a “palavra” é mistério, sem que isso dependa da “incompreensão”, mas da profundidade inesgotável do seu significado;
- o terceiro princípio é a “competência episcopal”, que é reiterada fortemente, como herança conciliar e como exigência intrínseca para a renovação da vida litúrgica do povo de Deus. A composição entre exigências dos episcopados e exigências da Santa Sé encontra, com a reforma do Código, uma correlação mais fácil e feliz.
- o quarto princípio é uma “teoria da tradução”, bem expressa na frase:
“fideliter communicandum est certo populo per eiusdem linguam id, quod Ecclesia alii populo per Latinam linguam communicare voluit.”
Essa formulação mostra bem a importância de traduzir não palavra por palavra, mas de cultura para cultura. O que deve ser comunicado – a palavra da salvação – deve encontrar uma expressão diferente quando entra em línguas e culturas diferentes. A correspondência entre línguas não é estática, mas dinâmica. Enrijecer o “conteúdo” em palavras fixas leva, irreversivelmente, a traduções incapazes de comunicar. A exigência de um “glossário comum” não contradiz, mas justifica essa escolha comum.
Uma das consequências desse motu proprio é uma preciosa reflexão sobre o tema da “fidelidade”. O que significa, de fato, ser “fiel ao texto”?
Isso envolve uma dupla fidelidade: não só para o texto, mas também ao destinatário. Para garantir essa dupla fidelidade, não é suficiente uma competência central, mas também é decisiva uma competência local. A lógica do motu proprio é a de uma “reconsideração da periferia”: para traduzir plenamente o significado de um texto litúrgico, originalmente em latim, devemos entrar na língua do povo não só com a cabeça, mas também com o corpo. Quem pode fazer isso não são funcionários romanos, mas sim bispos in loco. Uma fidelidade apenas literal contradiz a complexidade da estrutura eclesial e da história dos povos.
A referência ao Concílio Vaticano II é o horizonte em que, para ser fiel à tradição, é preciso se reconhecer a possibilidade de mudar.
Um segundo aspecto, que devemos considerar no documento, é a superação da ilusão de que se pode traduzir sem interpretar. Por trás da distinção entre recognitio e confirmatio, está, no fundo, a consciência de que não é possível um ato de tradução real e eficaz que não caia na interpretação particular que toda língua “diferente” oferece sobre o texto em latim.
Para passar do latim às línguas faladas, é preciso não simplesmente uma transposição lexical, mas sempre também uma interpretação cultural, existencial, histórica, social. Aquela que, à primeira vista, parece ser uma distinção jurídica e fria permite que o frescor e a riqueza das vidas entrem nas palavras da liturgia, que sabem ser fiéis ao latim somente se permanecerem cheias de frescor e vivas.
Uma teologia da liturgia participada e uma eclesiologia de comunhão são o pressuposto e o efeito dessa importante reforma do Código. E a unidade é garantida não por um regresso ao latim, mas por um avanço na tradução das línguas do povo.
Uma das primeiras manchetes de um grande jornal italiano, que dava a notícia desse motu proprio, soava assim: “Papa concede mais liberdade aos episcopados...”. Um bom colega teólogo, o professor Stefano Parenti, logo observara em um comentário na rede: “Atenção: aqui o papa não concede, mas restitui”.
Esta observação está totalmente correta, e sou-lhe grato por isso. Foram necessários 16 anos para se dar conta de que a pretensão de controlar tudo do centro, de transformar as línguas vernáculas em simples instrumentos do latim era uma ideia unilateral e distorcida, fruto de uma teoria do texto, da comunicação, da teologia e da eclesiologia sem verdadeiros fundamentos na tradição.
Agora, o motu proprio restabelece a lógica da tradução ao leito da sua tradição mais saudável. Será muito difícil subestimar essa passagem. Mas o que aqui foi reconhecido como necessário e que deve ser saudado como uma salutar contribuição ao caminho da reforma litúrgica deve ser julgado, com igual clareza, como insuficiente.
As duas intensas páginas do motu proprio, que têm grande eficácia no plano processual e que definem lucidamente uma renovada consciência teológica e eclesiológica dinâmica, devem recriar as condições de uma “comunicação litúrgica em torno da tradução” que não pode deixar de exigir, urgentemente, uma nova instrução.
O motu proprio desbloqueia a vida da Igreja que celebra, mas também revela um grande desejo de novas motivações: tal desejo deverá ser preenchido por uma Nova Instrução, que saiba sair dos baixios – não só processuais, mas também argumentativos – em que a Liturgiam Authenticam tinha nos conduzido.
Talvez a mesma comissão que elaborou esse “procedimento de urgência” poderá se ocupar em redigir uma nova Instrução que considere cuidadosa, serena e extensivamente todo o desenvolvimento da Reforma já feito, assim como aquele desenvolvimento rico e fecundo que ainda resta a ser feito.
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Motu proprio ''Magnum principium'', o desbloqueio das traduções e a retomada do Vaticano II. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU