22 Março 2025
"Não basta somente ouvir o outro em brincadeiras ou em momentos de confraternização, mas é preciso criar vínculos sinceros, estabelecer relações de confiança, ter disponibilidade e sensibilidade para escutar o outro, criar oportunidades para que sejam constituídos laços profundos, amizades sinceras, saudáveis, duradouras e que sejam, de fato, um apoio para o outro" escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
A dimensão comunitária do ministério presbiteral tem sido objeto de várias reflexões no cenário socioeclesial, devido aos desafios apresentados pelos presbíteros em relação à vivência dessa dimensão no exercício de seu ministério. A comunhão e a fraternidade são elementos fundamentais na vida do presbítero para que ele exerça seu ministério em unidade com a Igreja, com o bispo, com o presbitério e com os cristãos leigos. Contudo, apesar de ser amplamente reforçada nos documentos eclesiais, a dimensão comunitária no ministério presbiteral é, muitas vezes, marcada por conflitos que geram distanciamentos, divisões, disputas e contratestemunho.
Nessa conjuntura, situa-se a obra: Comunhão e fraternidade no ministério presbiteral: desafios e perspectivas da Igreja no Brasil (Santuário, 2025, 272 páginas). A obra é fruto de parte das pesquisas de doutorado de Sandro Ferreira. O referido autor é doutor em Teologia Dogmático-Sacramentária pelo Pontifício Ateneo Santo Anselmo em Roma.
Livro "Comunhão e fraternidade no ministério presbiteral: desafios e perspectivas da Igreja no Brasil" de Sandro Ferreira (Foto: Reprodução)
Servindo-se dos Documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e dos Instrumentos Preparatórios dos Encontros Nacionais de Presbíteros - ENPs, além das teorizações de diversos autores que refletem essa temática, bem como de sua experiência pessoal e pastoral como presbítero, membro do presbitério de uma Igreja particular e de seus estudos sobre teologia do ministério ordenado – o texto foi estruturado em três momentos e tem como base de pesquisa e perspectiva de estudo a dimensão eclesial e pastoral do ministério presbiteral. Para o autor, o estudo e a reflexão sobre essa temática é fundamental neste momento histórico-cultural que abarca uma tendência social e eclesial influenciada por profundas, complexas e rápidas mudanças tecnológicas e comportamentais que geram relacionamentos caracterizados a partir do prisma da superficialidade, do individualismo e de uma vivência mais intimista e emocional da fé.
No primeiro capítulo (p. 29-96), são apresentadas algumas características da cultura moderna e da realidade urbana, que desafiam a vivência da dimensão comunitária do ministério presbiteral e provocam atitudes como o individualismo e certa indiferença nas relações interpessoais. O objetivo destas páginas é apresentar os desafios socioeclesiais da contemporaneidade e observar o modo como eles influenciam as relações que marcam a vida cristã e presbiteral. O autor faz notar que não quer abordar a temática como se os presbíteros fossem vítimas de um contexto social que os corrompe, nem tampouco responsabilizar somente a sociedade ou instituição – Igreja – pelas dificuldades que os presbíteros enfrentam no âmbito relacional, pois, muitas vezes, são eles mesmos que provocam ou acentuam certos conflitos, devido as próprias fraquezas e limitações humanas. Nesse sentido, entende que cada um – sociedade, instituição e pessoa –, a seu modo, forma um conjunto e todos possuem suas responsabilidades específicas nesse processo.
Ao apontar esses desafios, o autor não ignora a teologia do ministério, seu caráter sacramental, suas riquezas, sua beleza e as tantas atividades realizadas de maneira integral por presbíteros, que se doam inteiramente à missão de construir o Reino de Deus, seja testemunhando o Evangelho de Jesus Cristo com a própria vida, seja pelo anúncio explícito da Palavra. No entanto, o propósito do autor neste momento é elencar os elementos socioeclesiais, que impedem uma vivência mais profunda e autêntica da fé cristã, ocasionando, muitas vezes, o individualismo e o intimismo religioso, demonstrando ainda, como os presbíteros são influenciados pelo contexto contemporâneo socioeclesial, quais são os modelos de ministério que emergem dessa realidade e, por fim, apontar as dificuldades relacionais existentes na tríplice relação com o bispo, com os outros presbíteros e com os cristãos leigos.
Após abordar os desafios socioeclesiais da atualidade para a vivência da dimensão comunitária do ministério presbiteral, no segundo capítulo (p. 97-170) o autor reflete sobre o modo como essa temática é tratada e vivenciada no contexto eclesial brasileiro. O objetivo é expor como a Igreja no Brasil tem refletido a respeito dos principais desafios referentes à dimensão relacional do presbítero e como ela tem respondido a eles.
Para isso, primeiramente, o autor traz o apontamento das orientações da CNBB, a partir de seus Documentos, com enfoque nos textos sobre a formação presbiteral nos seminários, no modo como a comunhão deve ser vivida na Igreja local e na proposta de uma pastoral presbiteral que favoreça a formação permanente e a unidade entre os presbíteros. Em seguida, apresenta a dimensão comunitária do ministério presbiteral a partir da CNP por ocasião de seus ENPs, cujas reflexões fundamentam a dimensão comunional a partir da perspectiva cristológica e eclesial, ressalta a importância da relação com os cristãos leigos na comunidade eclesial, e, em unidade com a CNBB, sublinha a necessidade de uma pastoral que fortaleça o vínculo de unidade entre os presbíteros.
E, por fim, a parte final de segundo capítulo versa sobre a relação do presbítero na paróquia, pois considera que ela é o local privilegiado – não exclusivo – no qual o presbítero desenvolve seu ministério e sua missão. Sendo constituída como comunidade de comunidades, a paróquia é o lugar onde os cristãos vivem sua fé e celebram os sacramentos; nela, o presbítero, seguindo o exemplo de Cristo, o Bom Pastor e servo de todos, é chamado a ser um sinal de unidade e de comunhão, anunciando, santificando e governando o povo de Deus a ele confiado.
No terceiro capítulo (p. 171-245), são apresentadas as perspectivas de ação para que os presbíteros possam vivenciar melhor a dimensão comunitária em seu ministério. Para tanto, o autor salienta que, muito embora a temática seja relativa à dimensão comunitária do presbítero no Brasil, as reflexões feitas neste capítulo não são orientadas apenas pelos Documentos da CNBB ou da CNP, mas considera, também, textos do Magistério eclesial e de autores que estudam essa temática dentro e fora do Brasil.
Para alcançar os objetivos que o autor traça para este momento, primeiramente discorre sobre os aspectos que visam fortalecer a comunhão entre o bispo e os presbíteros na Igreja local e no presbitério, com ênfase no zelo que o bispo, como “pai” e como pertencente ao mesmo e único ministério de Cristo, deve ter para com os presbíteros. Em seguida, trata sobre a fraternidade e a comunhão entre os presbíteros, com enfoque na qualidade das relações, na cooperação recíproca que deve haver entre os presbíteros de diferentes idades e em algumas formas de viver a fraternidade. Por fim, traz uma abordagem sobre a comunhão entre os presbíteros com os cristãos leigos, enfatizando que a participação destes na missão da Igreja tem como fonte e fundamento sua dignidade batismal.
Diante deste percurso o autor observa que os bispos do Brasil têm consciência dos desafios vividos pelos presbíteros, conhecem seus limites e apontam caminhos para que eles sejam superados; em contrapartida, nota-se que o modo de abordagem dessas temáticas não tem conseguido transformar a realidade de muitos presbíteros, pois prevalecem situações desafiadoras e que denotam a necessidade dos presbíteros serem envolvidos nessa reflexão de forma mais incisiva e perspicaz. Não obstante a esses desafios, o autor reconhece que a CNBB, por meio de seus Documentos, Estudos, suas reflexões e de seu apoio aos ENPs, tem colaborado de forma direta e indireta, mesmo que timidamente, para a construção de um presbitério mais unido, mais fraterno e com maior consciência sobre o ministério dos cristãos leigos na evangelização.
Também têm contribuído para esses aspectos positivos as iniciativas dos bispos que se esforçam para estar próximos de seus presbíteros, dialogando com eles e ouvindo-os em suas necessidades pessoais e pastorais. Contudo, o autor ressalta que a pastoral presbiteral não pode reduzir seu campo de ação à realização de atividades pontuais, sem relação entre si ou sem continuidade, mas deve ser concebida como um programa no qual haja gradualidade, sistematicidade, de modo que as ações sejam pensadas e analisadas a partir da realidade da própria Igreja local, ou seja, a partir dos desafios específicos e inerentes à realidade na qual os presbíteros estão inseridos.
Esses aspectos positivos, todavia, não eliminam as dificuldades encontradas nessa área, pois a pesquisa revela que há diversos desafios que tocam os presbíteros em relação a sua dimensão comunitária. A esse respeito, o autor destaca que, influenciados pela cultura atual, pelo estilo de formação no seminário e por concepções equivocadas do ministério, alguns presbíteros e também cristãos leigos têm exercido seu ministério de um modo mais individualista e intimista, mais centrado no eu do que no nós e, assim, essas atitudes têm provocado solidão, isolamento, competições, falta de solidariedade e desinteresse pelas ações em conjunto com a Igreja local. Como consequência estão surgindo novos modelos de presbíteros que, às vezes, fazem uma cisão entre o exercício do ministério e sua vida particular, e também de cristãos que fazem uma adesão parcial à fé cristã, priorizando apenas os elementos que lhe parecem mais convenientes. No relacionamento com os bispos, o autor observa que há falta de diálogo, decisões autoritárias e mesmo tratamentos infantilizados, ao passo que, entre os presbíteros, há difamações, falta de ética, disputas de poder, carreirismo, ciúmes e invejas.
Em relação aos cristãos leigos, o autor observa que, no Brasil, tem crescido o respeito pela dignidade batismal e eles têm assumido sua missão cristã em ações eclesiais internamente e externamente. Em geral, as diversas iniciativas, nas quais eles exercem seus carismas e ministérios, têm contribuído para que haja uma maior proximidade entre eles e os presbíteros e para que a dignidade batismal seja exercida de forma plena. Além disso, o autor observa que essas iniciativas têm despertado nos cristãos leigos o interesse pela formação teológico-pastoral, apesar de faltar apoio efetivo nesta área.
No entanto, o autor constata também que, na atualidade, nem todos os presbíteros dão o devido valor aos cristãos leigos e, consequentemente, ainda agem de forma autoritária ou concebem-nos como simplesmente “leigos” no sentido pejorativo da palavra, ou seja, como pessoas que não são capazes de contribuir efetivamente para a pastoral eclesial, sendo apenas agentes passivos da comunidade, meros receptores de uma ação evangelizadora. Essa concepção, errônea em seu princípio, gera conflitos eclesiológicos, ignora as orientações do Concílio Vaticano II e revela a persistência da compreensão de uma Igreja piramidal, com relações verticais, centradas na hierarquia.
Frente a isso, o autor ressalta que, em todos esses casos: no relacionamento dos presbíteros com o bispo, com os outros presbíteros e com os cristãos leigos, faltam relacionamentos horizontais que sejam marcados pelo respeito, pela maturidade, pelo diálogo, pela confiança e pela compreensão dos limites de cada um em seus ministérios específicos. Algumas atitudes assumidas nesses relacionamentos, às vezes, provocam rupturas e divisões, pois as decisões tomadas sem diálogo ou sem consulta prévia, a falta de atenção diante de um momento de crise pastoral ou pessoal, a difamação e a calúnia, o autoritarismo e os interesses pessoais acabam agravando os conflitos entre eles. Nesse campo, o autor, observa que há, em alguns casos, falta de caridade de uns com os outros, principalmente quando se trata do relacionamento dos presbíteros com o bispo e dos presbíteros entre si. Por isso, tanto por parte do bispo, quanto da parte dos presbíteros, é preciso haver maior abertura ao diálogo, correção fraterna e evangélica, aceitação madura das críticas, desejo de crescimento em conjunto, interesse pelas necessidades humanas e ministeriais do outro e atenção para os que mais precisam.
Diante destas constatações negativas, o autor observa que, além do empenho pessoal do bispo e de cada presbítero, o testemunho de unidade, associado aos esforços do Conselho Presbiteral, às iniciativas da pastoral presbiteral e das associações de presbíteros, podem auxiliar os presbíteros a superarem essas situações desafiadoras, fazendo-os recordar que sua missão, enquanto ministros ordenados, é a edificação da Igreja e o serviço ao povo de Deus por meio de seu próprio testemunho de unidade e de comunhão.
Com rigor metodológico esta obra expõe os desafios sociais e eclesiais que o clero deve enfrentar. Um desafio enorme: na crise dos compromissos comunitários, recuperar a comunhão e a fraternidade no ministério presbiteral entendendo que o resgate da dimensão comunitária não deve permanecer na superficialidade, pois, não bastam encontros superficiais, não basta estarem juntos. Não basta somente ouvir o outro em brincadeiras ou em momentos de confraternização, mas é preciso criar vínculos sinceros, estabelecer relações de confiança, ter disponibilidade e sensibilidade para escutar o outro, criar oportunidades para que sejam constituídos laços profundos, amizades sinceras, saudáveis, duradouras e que sejam, de fato, um apoio para o outro.
Com páginas provocativas este estudo contribuirá para que os presbíteros do Brasil vivenciem melhor a dimensão comunitária no exercício de seu ministério e que deem testemunho de unidade e de comunhão entre si, com o bispo e com os cristãos leigos nas Igrejas locais.