23 Novembro 2024
Na sexta-feira, 15 de novembro, a Pontifícia Universidade Gregoriana sediou uma conferência internacional sobre Matteo Ricci, o famoso missionário jesuíta do século XVI na China e um dos ex-alunos mais notáveis da universidade.
A reportagem é de Geraldo O'Connell, publicada por America, 19-11-2024.
O evento, intitulado “Matteo Ricci: Uma herança de amizade, diálogo e paz”, não apenas revisitou o século XVI, explorando a vida e a missão de Ricci na China, como também analisou eventos em Roma e na China dos últimos 40 anos. Esses acontecimentos revelaram o que pode ser chamado de uma redescoberta — ou reavaliação — da contribuição do missionário jesuíta para a evangelização e o cristianismo na China.
A conferência foi organizada pela Companhia de Jesus, pelos Arquivos da Companhia de Jesus e pela Universidade de Georgetown, dos EUA. Federico Lombardi, SJ, postulador da causa de canonização de Ricci, foi o moderador do evento, que reuniu cerca de 150 participantes. Entre eles, estavam professores universitários, padres, estudantes chineses e figuras importantes do Vaticano envolvidas no diálogo com a China, incluindo o Cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado. Outras figuras de destaque incluíram Arturo Sosa, SJ, superior geral dos jesuítas.
O objetivo da conferência, segundo o Padre Lombardi, foi “celebrar a memória e a missão de Matteo Ricci”, com ênfase no “diálogo exploratório” que esse grande missionário pioneiro conduziu na capital chinesa. Hoje, afirmou ele, Ricci é “uma figura de referência e inspiração” para a Igreja e para seu diálogo com a China.
O Padre Sosa destacou a importância central de Matteo Ricci para a atividade missionária dos jesuítas, ressaltando que ele não deve ser visto como “um gigante isolado”, mas como alguém profundamente conectado ao esforço evangelizador da Igreja.
Ricci nasceu em Macerata, na Itália, em 05-10-1552, dois meses antes de São Francisco Xavier, o primeiro grande missionário jesuíta no Oriente, falecer de febre na Ilha Shangchuan, enquanto aguardava um barco para levá-lo à China continental. Mais tarde, Ricci realizou o sonho de Xavier de chegar à China.
Ricci ingressou no noviciado jesuíta em Roma em 1571, aos 19 anos. Entre 1571 e 1577, estudou no Collegio Romano (hoje Universidade Gregoriana), fundado por Santo Inácio de Loyola em 1551. Lá, ele não se dedicou apenas à teologia e à filosofia, mas também à astronomia, matemática e geografia — conhecimentos que mais tarde seriam essenciais em sua atuação na corte imperial chinesa.
Ricci chegou pela primeira vez à costa leste da China, na atual Macau, em 1582. Em 1595, mudou-se para Nanchang, onde viveu como um homem de letras confucionista. Em sua residência, mantinha um mapa-múndi que despertava grande interesse entre os literatos chineses. Ricci passou 28 anos na China, até sua morte, em 1610, em Pequim, onde foi enterrado.
Durante séculos após sua morte, a memória de Ricci foi obscurecida, em parte devido à polêmica dos ritos chineses — um debate sobre até que ponto a filosofia e os rituais confucionistas, particularmente a veneração dos ancestrais, eram compatíveis com o cristianismo.
O Papa Pio XII encerrou definitivamente essa controvérsia em 08-12-1939, ao emitir um decreto autorizando os católicos chineses a observarem seus ritos ancestrais, conforme explicou o Cardeal Parolin. Recentemente, os papas têm “reavaliado a figura de Matteo Ricci”.
Pietro Parolin lembrou que os papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco destacaram o trabalho de Ricci em prol da inculturação da fé católica, reconhecendo-o como uma referência para o diálogo da Santa Sé com a China. Esse diálogo atingiu um novo patamar com a assinatura do acordo provisório sobre a nomeação de bispos, em 22 de setembro de 2018.
O cardeal recordou que o Papa João Paulo II exaltou a vida e o legado de Matteo Ricci em diversas ocasiões. “O jesuíta Padre Matteo Ricci compreendeu e valorizou a cultura chinesa desde o início, e seu exemplo deve servir de inspiração para muitos”, afirmou João Paulo II em um discurso em Manila, em 1981. “Outros, às vezes, não demonstraram a mesma compreensão”.
João Paulo II também mencionou Ricci em 1982, durante uma conferência sobre o quarto centenário da chegada de Ricci à China. O papa destacou que Ricci, ao aprender a língua e os costumes chineses, tornou-se “uma ponte entre duas culturas” por meio de um “estilo de vida pessoal” que combinava intelecto e virtude. Sua inculturação do Evangelho mostrou aos chineses que era possível ser um bom cristão e um bom cidadão chinês.
O prelado também citou o Papa Bento XVI, que elogiou Ricci em 2010, ao saudar peregrinos que comemoravam o 400º aniversário de sua morte. Bento XVI destacou que Ricci “chegou ao fim de sua vida terrena em Pequim, em 11 de maio de 1610. O privilégio extraordinário que lhe foi concedido, impensável para um estrangeiro, de ser enterrado em solo chinês, demonstra o alto respeito que ele conquistou, tanto na capital chinesa quanto na Corte Imperial”.
Na época da morte de Ricci, havia 16 missionários jesuítas na China e cerca de 3.000 católicos, incluindo um pequeno número de literatos. “Era uma realidade muito modesta, uma porcentagem totalmente insignificante em um imenso país com cerca de 150 a 200 milhões de habitantes, já na época o mais populoso do mundo”, comentou o Rev. Gianni Criveller, missionário italiano do PIME e estudioso de Ricci, que passou muitos anos na China, em um artigo publicado no Asia News.
O Pe. Gianni, que presidiu a comissão histórica da causa de canonização de Ricci, acrescentou: “A missão na China é uma evidência eloquente de que o significado de uma experiência cristã não pode ser medido em termos de resultados numéricos, mas por sua qualidade evangélica. E, mais de 400 anos depois, a experiência cristã de um pequeno grupo de missionários estrangeiros e alguns católicos chineses continua a ser uma luz que ilumina o presente, uma mina preciosa de onde seguimos extraindo novos significados e direções”.
Na conferência, Parolin concluiu sua palestra mencionando o Papa Francisco, que apresenta Ricci como exemplo do tipo de inculturação essencial para a evangelização. De certa forma, o cardeal afirmou, Ricci encarna a “cultura do encontro” que Francisco promove. O papa não o apresenta apenas como uma figura do passado, mas como “uma figura profética” que inspira esperança para os encontros atuais.
O último palestrante da sessão da manhã foi o Cardeal Stephen Chow, bispo jesuíta de Hong Kong, que ofereceu um panorama da história da Igreja Católica na China, especialmente entre 1949 e os dias de hoje. Ele destacou que, quando os jesuítas chegaram no século XVI, a China se via como o centro do mundo, com a cultura confucionista como núcleo, considerando outras culturas religiosas como estrangeiras. Segundo ele, os jesuítas “se dedicaram ao apostolado intelectual com as elites socioculturais, aquelas que poderiam examinar e recomendar à autoridade os novos elementos que estavam chegando à China”.
Como resultado, disse Chow, “o cristianismo não foi categorizado como heresia a ser suprimida, mas como um novo ensinamento compatível com a cultura chinesa”. Contudo, ele lembrou que esse tratamento favorável mudou com a controvérsia dos ritos chineses, quando alguns católicos na China negaram os fundamentos culturais do culto ancestral, levando à proibição do catolicismo.
Nas décadas de 1950 e 1960, com o governo comunista que assumiu o poder em 1949, iniciou-se uma transformação social que buscava “livrar o país do controle ocidental”. “Missionários que desempenhavam papéis de liderança na Igreja foram identificados com outros estrangeiros e expulsos da China”, explicou o cardeal. “Somente clérigos chineses locais foram autorizados a permanecer e administrar a Igreja por conta própria”.
Ele detalhou que campanhas sociais para “transformar a China em uma realidade socialista” submeteram a Igreja Católica Chinesa a um programa de nacionalização sob autoridade civil. Essa transformação radical culminou na dizimação total de culturas e instituições tradicionais, incluindo religiões, durante a Revolução Cultural.
Já na década de 1980, quando a China adotou políticas pragmáticas para atrair investimentos estrangeiros e expertise, “a Igreja foi reconstituída como parte da iniciativa geral de reforma”. Gradualmente, a religião passou a ser vista como uma entidade neutra, permitida a operar de forma independente.
Nos anos 1990, as autoridades adotaram uma política de “não apoio, mas também de não interferência”, exceto quando a religião fosse vista como uma ameaça à segurança social ou nacional. Nesse cenário, a Igreja Católica desfrutou de uma política mais branda e começou a crescer rapidamente. Além disso, houve um consenso de que a religião poderia contribuir para o desenvolvimento social da China, o que permitiu à Igreja Católica ampliar seu impacto social em áreas como educação, caridade e assistência em desastres.
Atualmente, o Cardeal Chow afirmou que as autoridades chinesas sentem que a China, como a segunda maior economia do mundo, está em uma posição de criar características únicas em relação à comunidade internacional. Por isso, todas as instituições sociais estão sendo submetidas a um processo de “sinicização”.
Nesse contexto, ele disse, a Igreja Católica chinesa enfrenta uma nova realidade: tornar-se uma comunidade indígena sob autoridade civil, com crescente incorporação de elementos chineses, a fim de se integrar à sociedade chinesa. Ele concluiu: “Assim como os jesuítas nas cortes Ming/Qing ajudaram a Igreja a ser aceita na China, muitos acadêmicos locais, nas últimas décadas, têm trabalhado para moldar a mentalidade das autoridades em direção a uma atitude mais aberta à Igreja. O conteúdo da sinicização da Igreja Católica ainda não está definido, o que significa que podemos ser parte dessa construção.”
Embora o Cardeal Chow tenha se referido principalmente aos jesuítas, ficou claro na conferência que Matteo Ricci ganhou reconhecimento quase universal por sua contribuição ao encontro entre culturas e à inculturação da fé. Não foram apenas os papas e a Igreja que reconheceram seus méritos; as autoridades da República Popular da China também o fizeram, listando-o entre as figuras importantes da história chinesa no “Millennium Museum” em Pequim. Lá, apenas dois estrangeiros são homenageados: Marco Polo e Matteo Ricci.
Contudo, como destacou um artigo de 2022 no site oficial da Companhia de Jesus, esse reconhecimento universal ainda não foi acompanhado por grande apreciação de sua “grandeza espiritual e virtudes”.
Isso pode mudar, já que a conferência na Gregoriana ocorreu quase dois anos depois de o Papa Francisco, em 17-12-2022, reconhecer que Matteo Ricci viveu as virtudes cristãs “em grau heroico”, colocando-o no caminho da santidade.
A beatificação é o próximo passo para ser declarado santo, mas isso exige um milagre pela intercessão de Ricci. “Precisamos de um milagre!”, disse o Pe. Federico Lombardi durante o evento em Roma. Ou seja, a causa precisa inspirar devoção ao Venerável Matteo Ricci, incentivando os fiéis a rezar por um milagre por intercessão daquele que se provou uma ponte entre a China e o Ocidente e uma figura profética para a evangelização na Ásia e no mundo.
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Redescobrindo o grande missionário jesuíta na China: Matteo Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU