21 Novembro 2024
Naomi Klein, ativista e intelectual canadense, explica a vitória de Trump pela incapacidade da esquerda e dos ambientalistas de falar sobre os problemas concretos das pessoas. Ela defende o “ecopopulismo”.
A entrevista é de Hervé Kempf, publicada por Reporterre, 15-11-2024. A tradução é do Cepat.
A jornalista e ensaísta canadense Naomi Klein, conhecida pela publicação de Sem Logo (Record, 2002) e A doutrina do choque (Nova Fronteira, 2008) acaba de lançar [na França] um novo livro: Doppelgänger: uma viagem através do mundo-espelho (Editora Carambaia, 2024). Nesta entrevista, ela critica a esquerda estadunidense: “Devemos concentrar-nos em políticas ecológicas que sejam também políticas de redistribuição econômica”.
Como analisa a vitória de Donald Trump?
A direita se aproxima das classes trabalhadoras com mais facilidade do que a esquerda ou os liberais. Isto deveria ser um verdadeiro sinal de alerta e nos fazer pensar sobre como o discurso progressista é percebido: elitista, desconectado e sem um plano para ajudar as pessoas. Sempre acreditei que era possível conceber uma estratégia política que enfrentasse a crise ecológica e o agravamento das desigualdades. Mas não foi assim que a esquerda moldou a sua política climática. Vemos um certo cansaço dos trabalhadores que têm a impressão de que estas questões são um luxo com o qual não se podem preocupar.
A esquerda social-democrata não aceita seguir este caminho e falar com as pessoas?
Este é um fracasso da esquerda como um todo. Não apenas do Partido Democrata, que não é de esquerda, mas representa o establishment. A ala do Partido Democrata afiliada a Bernie Sanders foi completamente marginalizada. Bernie ainda está tentando encontrar um entendimento. Esta é a sua estratégia política: “O que pode unir a coligação mais ampla possível?”. Devido a esta ausência, a esquerda dividiu-se em pequenas facções e muito agressivas que se atacam mutuamente. Não criou um movimento benevolente capaz de atrair os trabalhadores, algo que a campanha de Trump conseguiu fazer: atraiu muitas pessoas de esquerda, que trabalham e precisam de uma esperança econômica.
É um paradoxo, porque o mundo de Trump é o mundo dos super-ricos, de Elon Musk e de muitos bilionários.
O Partido Democrata é visto como mais elitista que o Partido Republicano, que é uma mistura de pessoas ricas que estão dispostas a ser rudes e outras mais acessíveis, em contato com as classes trabalhadoras. Elon Musk interage com os usuários do Twitter, enquanto os democratas ricos não falam com ninguém fora de seus círculos. Em 2016, escrevi que o Partido Democrata é como uma festa para a qual você não foi convidado. É uma super elite que deu um show e pensou que os trabalhadores iriam aderir. Mas as pessoas se sentiram insultadas e excluídas. Foi assim que elegeram Trump.
Claro, o Partido Republicano está a serviço do dinheiro. No entanto, ele não foi condescendente com os trabalhadores como foi o Partido Democrata. Além disso, as deportações em massa prometidas por Trump não são apenas uma política racista, mas também uma política econômica, no sentido de que promete uma redistribuição da riqueza à classe trabalhadora, da mesma forma que os fascistas apresentaram o antissemitismo como uma redistribuição das riquezas. Foi o que Trump disse aos eleitores negros e latinos: “Estes imigrantes estão tomando os empregos de vocês. Vamos expulsá-los para que vocês possam ter mais empregos”. É horrível, mas é importante compreender que há uma lógica econômica por trás deste voto.
Qual deveria ser a estratégia da esquerda e dos ambientalistas?
Devemos começar examinando honestamente como somos percebidos. Nós temos de nos concentrar em políticas ambientais que sejam também políticas de redistribuição econômica, que mostrem muito concretamente que não é necessário escolher entre o ambiente, a família e a carteira. Deveríamos lutar por transportes públicos municipais gratuitos e por bombas de calor para todos, que reduzam o consumo de energia e permitam aquecer e refrigerar as casas. Podemos ter políticas verdes que sejam políticas que tornem a vida muito mais acessível. Precisamos de um populismo ecológico, de um ecopopulismo.
O problema é que precisamos de uma redistribuição, mas que parece absolutamente bloqueada. As pessoas sabem que existem grandes desigualdades, mas não pensam que seja possível alterá-las. O fatalismo domina.
A melhor maneira de combater o fatalismo é ser estratégico. Escolher 2 ou 3 projetos nos quais você pode ganhar e ganhá-los! Então as pessoas recuperarão a esperança. Não conseguimos convencer um fatalista apenas com argumentos. Temos que mostrar a ele que é possível.
Como?
Nos Estados Unidos, Trump está no comando a nível federal, mas os Democratas estão no comando em estados como a Califórnia e em grandes cidades como Nova York. Há muitas críticas a serem feitas a Joe Biden em relação ao clima, mas ele conseguiu aprovar a legislação da Lei de Redução da Inflação (IRA) [um plano de investimento de dez anos no valor de 370 bilhões de dólares para fazer a transição energética]. Portanto, espero que a revolução das energias renováveis esteja suficientemente avançada para poder continuar sem política federal. Joe Biden deve liberar este dinheiro antes do final do seu mandato para que os projetos possam ser implementados. Alguns governadores republicanos já dizem que não querem se desfazer da IRA porque esta lhes proporcionará o financiamento de que necessitam.
Outra dificuldade é que Trump e a extrema-direita assumem completamente que estão mentindo, os fatos já não são mais elementos com base nos quais possamos discutir.
Ninguém está completamente comprometido com a verdade. Todos nós escolhemos nossas fantasias. O peso da realidade ecológica, econômica e militar torna os tempos muito difíceis de suportar. Portanto, todos vivemos nas nossas bolhas e projetamos nos nossos adversários tudo o que não suportamos entre nós.
Mas é verdade que há uma abordagem cada vez mais criativa dos fatos por parte do Partido Republicano. Sofremos os efeitos de uma estratégia levada a cabo durante cinquenta anos pela direita, que destruiu o ecossistema da informação. É por isso que falo de coisas como o transporte público, o preço do aquecimento, o preço dos produtos alimentares... Quanto menos estivermos em debates abstratos sobre as causas das mudanças climáticas, melhor.
Quando falamos de populismo ecológico, que é uma palavra muito forte, isso significa que temos de usar as armas do adversário, a sua retórica, ou mesmo ser mais brutais?
Para mim, o populismo não é um palavrão.
Na França, o populismo é um estigma usado para desacreditá-la.
Falamos de uma política de redistribuição e da vontade de encontrar as pessoas ali onde elas estão. A esquerda tornou-se muito acadêmica e elitista. Seu discurso não está em sintonia com o povo. Quando você fala sobre comércio de carbono, as pessoas não entendem do que você está falando. É muito fácil para os seus oponentes distorcerem os seus conceitos. O que a direita muitas vezes faz é pegar um termo acadêmico, como a teoria de gênero, e fazer a sua própria interpretação. Eles conseguem fazer isso porque as pessoas não sabem o que é a teoria de gênero. Ao passo que dizer “gosto do transporte público gratuito” é fácil.
Como definiria o populismo?
O populismo deve ser redistributivo, em resposta direta às necessidades econômicas das pessoas. Bernie Sanders é um populista econômico porque fala em redistribuir as riquezas, concentrando-se no aumento dos salários, nos cuidados de saúde universais, em serviços que irão satisfazer diretamente as necessidades das pessoas. Isto é ridicularizado pelo centro como sendo populista. Acho que deveríamos, em vez disso, abraçar esses conceitos. É bom ser populista!
No início dos anos 2000 ocorreram os Fóruns Sociais Mundiais, como o de Porto Alegre no Brasil. É imaginável tentar redefinir a situação a partir do zero, partindo da ecologia? Como reviver um grande movimento popular? Isso é um sonho?
Não é um sonho tão distante. Pode haver outra onda que capte e direcione essa energia. As pessoas estão com raiva. Elas entendem que suas condições de vida são cada vez mais difíceis e estressantes. Elas sentem que o sistema está fraudado. O populismo de direita pega esta raiva e a dirige contra as pessoas mais vulneráveis, fazendo dos imigrantes bodes expiatórios. O populismo de esquerda tenta dirigir a energia popular contra as corporações e as elites. Mas esta energia foi cooptada por Steve Bannon [ex-braço direito de Donald Trump], Giorgia Meloni [presidente do Conselho Italiano, de extrema-direita], Marine Le Pen...
A ameaça militar parece estar aumentando em todo o mundo. Como lidar com esta questão?
Trump vai alimentá-la. Ele quer mais gastos europeus em armas. É também um convite à esquerda para investir na saúde e na habitação em vez do militarismo. É uma escolha difícil. Vamos construir bombas ou hospitais?
Qual seria a resposta da esquerda a esta questão? Deveríamos aumentar os nossos gastos militares?
Não, mas podemos investir numa economia que dê esperança de paz com a Terra e entre nós. Trump está criando um mundo onde investimos em armas ofensivas e num domo de ferro global. As nossas fronteiras estariam assim protegidas contra os efeitos das nossas políticas e da imigração em massa... Poderia haver outra visão para a esquerda populista, focada na guerra climática e na injustiça econômica.
A inteligência artificial tornou-se o motor do capitalismo. Como ela vai mudar o cenário político e qual deverá ser a resposta da esquerda e dos ambientalistas?
Temos de identificar as falhas da coalizão remendada pela direita, que tem muitas vulnerabilidades. Uma delas é que Trump já fala em investir em inteligência artificial, mas isso contradiz o que Bannon e as novas figuras da direita dizem sobre um possível colapso espiritual. A esquerda não tem sido boa para falar sobre este sentimento de que o mundo está se desumanizando. Trata-se de uma questão climática, de direitos trabalhistas, mas também uma questão espiritual sobre a qual precisamos falar mais.
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“Precisamos nos concentrar em políticas ambientais que sejam também políticas de redistribuição econômica”. Entrevista com Naomi Klein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU