A deriva fascista de setores importantes do eleitorado que tradicionalmente se dirigia ao centro político é um fenômeno global e consistente. Nossa prioridade deve ser entender por que as mobilizações democráticas têm falhado cada vez mais.
Além disso, pontuam os autores, os sujeitos pobres "fazerem tudo por si mesmos, apoiando-se estrategicamente nas relações de sujeição que tocam seus corpos, conforme elas encarnem a promessa de um potencial de maximização de suas liberdades. Esse desejo é uma forma de crença no único futuro realista – mínimo, infinitamente contraído, autorreferente, e sediado num planeta em que a vida apenas começou a desmoronar".
O artigo é de Giuseppe Cocco, Murilo Corrêa e Allan Deneuville.
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e é editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Entre outros livros, publicou: New Neoliberalism and the Other: Biopower, Antropophagy and Living Money (Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava, Entre cinismo e fascismo (Autografia, 2019), Dopo la marea (Derive e Approdi, 2021) e, em parceria com Bárbara Szaniecki, O making da metrópole: rios, ritmos e algoritmos (Rio BOOKS, 2021).
Murilo Corrêa escreveu Ódio ao direito (Sobinfluencia, 2024) e Filosofia Black Bloc (Circuito/Hedra, 2020). Professor associado de Teoria Política na UEPG, onde coordena o Laboratório de Teoria Social, Teoria Política e Pós-Estruturalismo (Labtesp). Pesquisador associado na Vrije Universiteit Brussel, Bélgica e investigador e professor visitante na Universidad de Buenos Aires, Argentina. Realizou pós-doutorados em Political and Legal Theory (VUB) e Ciencias Sociales (UBA). Professor permanente do PPG em Direito (UEPG). Doutor (USP) e mestre (UFSC) em Filosofia e Teoria do Direito. Atualmente, trabalha com Deleuze e o direito, e com as transversais e os problemas sensíveis que atravessam o social, o político, as técnicas e tecnologias no capitalismo contemporâneo. Suas iniciativas na popularização da Ciência e Tecnologia incluem o blog "A Navalha de Dalí", o canal do YouTube VanFilosofia e o podcast Chapação Maquínica.
Allan Deneuville, docente em Ciências da Informação e da Comunicação na Universidade Bordeaux Montaigne, na França, e vice-presidente de Relações Internacionais do SFSIC.
Enquanto todos oferecem respostas para as causas das vitórias das extremas-direitas, elas vencerão e continuarão vencendo. Para nos desviar do futuro que essa tendência encerra, deveríamos, ao contrário, estar nos fazendo perguntas melhores.
No catálogo das respostas prontas sobre a vitória retumbante do trumpismo, diz-se que a social-democracia, presa no seu espelho de Narciso, já não consegue ver as classes populares, os blue collars e as desigualdades sociais. Aliás, os democratas seriam o próprio sistema – a casta cosmopolita diante de uma nova extrema direita que, ela sim, consegue ser autêntica, sexy e antissistema. O fato é que enfrentar a irresistível emergência do fascismo é um desafio de longa duração para o qual ainda não temos fórmulas gerais.
Para diferenciá-lo do fascismo histórico, inspirado num termo de Daniel Bell mais tarde popularizado por Fareed Zakaria, alguns analistas têm preferido chamar seus governos de “democracia iliberal”, ou de “neofascismo” – como propôs Enzo Traverso. Entre todos, ficamos com o historiador do fascismo Robert Paxton, que definiu o MAGA (Make America Great Again) como “[Um movimento que] borbulha de baixo para cima de maneiras muito preocupantes, e isso é muito parecido com os fascismos originais”.
Acabamos de ver que o sistema de freios e contrapesos, tímidos e constituídos, não basta, e que o acanhamento institucional da luta contra Trump, decorrida nos quatro anos que se seguiram à invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, tampouco foi suficiente. A lição que tiramos disso é que a democracia precisa, em todos os seus níveis, ser potencializada, exponencializada. Melhor correr o risco de levar às últimas consequências a luta jurídico-legal contra o fascismo do que deixar suas armas à disposição dos novos tiranos – como a formação do novo governo Trump já anuncia.
Mas a luta pela democracia deve assumir outras formas que não apenas a representativa. Foi o que aconteceu com o desdobramento do levante de Minneapolis na eleição de Joe Biden, com a derrota eleitoral de Bolsonaro no Brasil, e o que ocorre na relação virtuosa que a resistência ucraniana pode ter com a recomposição política – ainda precária, mas real – da Europa. Não importa como se o nomeie, o fascismo de novo tipo é o sintoma de uma grave crise, mas isso não significa que ele seja uma “resposta errada a demandas justas”. Muito pelo contrário, seu tremendo sucesso radica na negação dos enigmas que nossas sociedades enfrentam.
Foi Sigmund Freud quem afirmou que “a negação é um modo de tomar conhecimento do reprimido; na verdade, já é um levantamento da repressão, mas naturalmente não a aceitação do reprimido”. No nosso caso, a negação não incide apenas sobre conteúdos que preferiríamos reprimir, mas alcança os paradoxos materiais que não ousamos enunciar. Isso aconteceu na pandemia, e hoje se manifesta “ao cubo” ante a crise climática, a emergência bélica do chamado “eixo da resistência” (China, Rússia, Irã e Coreia do Norte), o papel cada vez mais importante dos fluxos migratórios e da emergência de uma proposta totalitária global que já tem uma guerra para chamar de sua.
Ao contrário do que se poderia pensar, ao ver todos os estados-pêndulos estadunidenses ficando vermelhos (a cor dos Republicanos), a eleição de Trump não foi fruto de uma imensa mobilização Republicana, mas da combinação de dois fenômenos: a manutenção por Trump do mesmo patamar de votos que teve em 2020 e uma massiva desmobilização do voto democrata. Em 2020, Trump recebeu 74,2 milhões de votos, enquanto Joe Biden atingiu 81,3 milhões. Em 2024, Trump obteve um ganho apenas marginal (74,6 milhões), mas Kamala Harris perdeu mais de 10 milhões de votos (70,9 milhões) na comparação com Biden. A deriva fascista de setores importantes do eleitorado que tradicionalmente se dirigia ao centro político é um fenômeno global e consistente. Nossa prioridade deve ser entender por que as mobilizações democráticas têm falhado cada vez mais.
Ao invés de dar as mesmas respostas de sempre, precisamos formular as perguntas que não estamos fazendo. Uma delas é: quais os paradoxos em meio aos quais nos movemos, e como a sua formulação gera – não novas respostas, mas – melhores perguntas sobre o que estamos fazendo, e o que podemos fazer, de nós mesmos.
Pensemos no assalto ao Capitólio, de 6 de janeiro de 2021, em Washington, e no saque ao Planalto de 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Em ambos os casos, Trump e Bolsonaro emularam o que fizeram Mussolini e Hitler, e repetiram Vladimir Putin e Xi Jinping: nomeados legalmente, tentaram se eternizar no poder.
Talvez, Trump e Bolsonaro não tenham conseguido se tornar tiranos porque as instituições se mostraram mais sólidas do que a determinação deles em atravessar o rubicão. Ou, quem sabe, os dois eventos atestem que as novas extremas direitas não precisam destruir as instituições formalmente democráticas para se perpetuarem no poder. De toda maneira, o fascismo acaba de conseguir – por vias democráticas – uma segunda chance nos Estados Unidos. Trata-se do mesmo fascismo que se prepara para repetir a dose no Brasil. Esse fascismo já virou ditadura nos países onde chegou ao poder com uma retórica de esquerda: na Venezuela chavista e na Nicarágua de Ortega.
As instituições republicanas, suas dinâmicas procedimentais e seus freios e contrapesos, por um lado, são mais necessários do que pensávamos, mas por outro já não são suficientes. Isso reposiciona o simplismo das lutas que se voltam contra as dimensões autoritárias e representativas do Estado. A democracia, entendida ingenuamente como o “poder do povo”, coloca em risco a República como uma forma de governança e o Estado de Direito.
É evidente que não faltam boas razões para criticar o Estado. Bastaria pensar nos assassinatos de George Floyd em Minneapolis (2020) e de Marielle Franco, no Rio (2018). Porém, a crítica deve estar voltada sem ambiguidades ao reforço e à expansão de mecanismos democráticos e republicanos. Enquanto eles funcionam bem, quase tudo vai bem; mas quando param de funcionar, entramos no terreno da exceção, que pode reinventá-los, mas também arrisca destruí-los de vez.
O segundo paradoxo diz respeito ao fato de que, no capitalismo contemporâneo, não existe mais Fora. O capitalismo global, financeiro e cognitivo, inclui todo mundo e o planeta todo. Marx chamou esse processo de “subsunção real”. O nome que esse fenômeno recebeu mais recentemente foi “antropoceno”. Porém, isso acontece por modulação de fragmentos, singularidades ou “divíduos” nas sociedades de controle, e não mais pela homogeneização das massas nas instituições concentracionárias da sociedade disciplinar.
Não teria sido preciso esperar pelo advento dos trabalhadores de aplicativos para falar de trabalho fora da relação salarial – quer dizer, por dentro da própria produção de subjetividade. Que isso aconteça na transformação da informalidade de massa como resíduo do subdesenvolvimento no horizonte da própria modernização, ou na algoritmia que modula em tempo real todas as dimensões de nossas vidas – que, por sua vez, in-formam os algoritmos –, essa é a nossa condição.
Dizer que não há mais fora significa dizer que o fora e o dentro se misturam e circulam, exatamente como circula a violência nas periferias brasileiras, onde não se sabe – na demonstração cabal que é o infame assassinato de Marielle – quem é a polícia e quem é a milícia que já nos governa. O fascismo não passa da construção do fora “por dentro” que oferece a figura nítida (e fake) de um inimigo provindo de uma exterioridade apenas imaginada: o migrante, a China, o comunismo, o wokismo.
Mas essa formulação do paradoxo ainda é apenas aparente. Depois da invasão russa da Ucrânia apoiada pela China (24/02/2022), e do pogrom perpetrado pelo Hamas sob a batuta do Irã e da Rússia, no sul de Israel (07/10/2023), quando jovens de origem migrante saem às ruas das cidades europeias para reivindicar o 7 de outubro com bandeiras do Hamas, aos olhos das bases eleitorais das novas extremas-direitas, isso funciona como uma confirmação da sua teoria xenófoba da “grande substituição” e, pois, da inimizade em torno da qual se organizam esses movimentos mortíferos.
Os desafios que se colocam para a União Europeia são o emblema dessa complexidade. Ela precisa continuar unida, apoiar a Ucrânia – muito provavelmente, sem o concurso dos Estados Unidos –, lutar contra o antissemitismo sem endossar a islamofobia. Trata-se de uma dinâmica em espiral que, a cada dia, se torna mais difícil de se enfrentar. Essa complexidade aparece claramente nas tentativas do governo Lula de normalizar a situação venezuelana: o ditador Maduro, aliado de Putin, China, Irã e Coreia do Norte, passou a usar os mesmos argumentos dos bolsonaristas contra o sistema eleitoral brasileiro.
Enquanto isso, Rússia e Turquia controlam as principais rotas de migração (via Síria e Sahel africano) em direção à Europa, onde as variações dos fluxos de migrantes e refugiados já se traduzem em ulteriores acréscimos nos resultados eleitorais da nova extrema-direita. Essa que, por sua vez, é aliada de Putin e retroalimenta tanto o antissemitismo quanto a islamofobia. Os fundamentalismos islâmico e judaico se enfrentam no Oriente Médio ao mesmo tempo em que alimentam no mundo os massacres por vir de muçulmanos e judeus. Por sua vez, o fechamento das fronteiras e as deportações de massa de migrantes que Trump 2.0 realizará inundarão a América Latina com um aumento das tensões sociais que fizeram o “sucesso” do governo Bukele em El Salvador.
As esquerdas que se querem “puras” também sonham com um fora. Elas aplicam ao conflito israelo-palestino os velhos esquemas dos anos 1970, ou mesmo mais antigos. Na época, a luta palestina era uma luta de libertação nacional. Hoje, organizações como o Hamas são fundamentalistas religiosos que lutam pela implementação de uma teocracia, ao mesmo tempo em que se mantêm funcionais ao subimperialismo regional e teocrático do Irã. Essa narrativa se torna explicitamente delirante quando grupos como o “Queers for Palestine” aplaudem seus atuais ou futuros algozes. No entanto, o mesmo ocorre em Israel. Enquanto isso, o governo Netanyahu se apoia na deriva messiânica e fundamentalista da extrema direita israelense que agride diariamente a população de West Bank, provando que o fascismo sempre vem de dentro – mesmo que sua narrativa se organize em torno dos inimigos “externos”.
Isso explica por que as mesmas esquerdas que dizem detestar Trump, adoram Putin – e sob o ponto de vista democrático, ambos não poderiam estar mais próximos. Há algo de perversamente cínico no espetáculo da extrema-direita fascista usando a retórica da esquerda. Por exemplo, na mobilização da bandeira dos direitos humanos na cúpula do BRICS em Kazan, ou na recolonização da África pelo grupo russo de mercenários Wagner, e outras Rotas da Seda chinesas, em nome do “decolonial”. A guerra de alta intensidade desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia, com apoio da China, do Irã e da Coreia do Norte, caminha de mãos dadas com a construção do “fora” pelos intestinos dos fascismos.
Assim como o Muro de Berlim servia para conter os alemães orientais que queriam fugir para o Ocidente, o muro de Trump quer conter latinos, africanos, asiáticos (os “alemães orientais” de agora), que querem fugir para o Norte ou para o Ocidente. As dificuldades da Europa e dos Estados Unidos, por vezes festejadas de forma acéfala, não apenas não levam os países da América do Sul a qualquer plus de expansão democrática, mas produzem o efeito contrário.
Como dizia George Orwell: “Um dos passatempos mais elementares do mundo é denegrir a democracia. Um jovem de 16 anos pode criticar a democracia melhor do que seria capaz de defendê-la”. Hoje, no entanto, é indispensável defendê-la e, para isso, voltar a constituí-la.
O terceiro paradoxo diz respeito à noção de “sistema”. Essa ideia tem origem na cibernética dos anos 1950, e foi aplicada como chave de explicação do funcionamento das sociedades complexas por Niklas Luhmann. Quando Ernesto Laclau a revisitou a partir da sua vivência da esquizofrenia da direita e da esquerda peronistas, foi para dar forma à sua teoria do “populismo de esquerda” como “política antissistema”.
A noção laclausiana de “populismo de esquerda” acabou se afirmando no refluxo dos levantes democráticos que tiveram início no ciclo das primaveras árabes, em 2011, passaram pelo junho de 2013 brasileiro, e atingiram seu ápice com a “revolução da dignidade” da praça Maidan, na Ucrânia, em 2014.
No Brasil, logo depois da reeleição de Dilma Rousseff, nós atribuímos às forças de esquerda a incapacidade de constituir novos espaços institucionais (no Brasil, por todas, o PT). Os sintomas dessa incapacidade eram, num dos polos ideológicos, a retórica antineoliberal brandida contra a candidatura de Marina Silva em 2014, e no outro, a legitimação das explicações “estruturais” e da autofagia identitária do “lugar de fala” – em paralelo, é claro, com os oportunismos mais escancarados. O fato é que o levante de 2013 não conseguiu cristalizar nenhuma dimensão expansiva da democracia, e o espaço que ele deixou vazio, após a restauração pelas esquerdas, ficou à mercê das manipulações da extrema-direita. É na Espanha que, sobre o cadáver do 15M, nasceu o Podemos como operação montada por fora do movimento das acampadas e por dentro dos populismos venezuelano e iraniano. Em comum com os últimos, há a captura dos temas da democracia real por narrativas antidemocráticas, essas organizadas em torno do reducionismo contra as castas”, “o sistema” e a essencialização do “ocidente”.
Da mesma forma como o populismo incorpora o terreno da demagogia, as noções de “casta” e “sistema” tomam o lugar de toda abordagem em termos de composição social do trabalho. Não seria difícil, portanto, encontrar por detrás das ideias de “sistema” e de “casta” a retórica de Mussolini contra as “plutocracias”, a de Hitler contra os “judeus”, e até mesmo a aliança montada contra o intelectualismo e a ciência, cujas bodas foram renovadas pelo negacionismo No Vax durante a pandemia.
Não é surpreendente encontrar uma retórica antissemita de esquerda no discurso pró-Palestina. Toda distinção entre o governo de direita de Netanyahu e os israelenses (dos quais 20% são árabes) é obliterada ao passo que, ao olhar para o lado palestino, a hegemonia do fascismo religioso do Hamas-Irã é ignorada.
As ciências sociais acadêmicas, presas à grade de vitimização (o “lugar de fala”), tornam-se dispositivos de redução da complexidade dos conflitos. Por um lado, há os oprimidos a serem defendidos (os “condenados da Terra”). Por outro, os opressores, facilmente comparados a nazistas em potencial. Para além do mecanismo do ponto Godwin – a lei segundo a qual depois de determinado momento de disputa em redes e fóruns, aparece a acusação de nazismo –, a inflação das acusações ao governo de Israel de ser “nazista” mostra claramente a banalização do antissemitismo e a proliferação das operações de hierarquização das vítimas.
Ela não apenas impede de reconhecer o ponto a partir do qual Israel cessa de se defender, e passa a cometer indizíveis crimes de guerra contra a população civil Palestina, mas se fixa em acusar as vítimas de ontem (os judeus perseguidos pelos fascismos históricos) de terem, de alguma maneira, merecido o que lhes aconteceu. Assim, dá-se uma volta a mais no mesmo parafuso dos fascismos do hoje.
Como na negação freudiana, que admite reprimir tudo aquilo que sua enunciação recusa, os antissistema se descobrem antipró-sistema.
O quarto paradoxo é o da torção da desobediência. As subjetivações selvagens dos pobres não pensam na vida que um projeto socialista ou progressista poderia lhes oferecer. Elas vivem a vida que têm, e é nela que produzem torções na desobediência.
Henry David Thoreau – o antiescravista estadunidense que viveu a experiência de Walden – escreveu: “Não vim a este mundo [...] para fazer dele um bom lugar, mas para viver nele [...]”. Este gesto estava congenitamente ligado à resistência e à desobediência civis. Recusando toda moral edílica, tratava-se, porém, de ainda assim “manter as mãos limpas e [...] recusar apoio prático ao que é errado”: não participar de forma nenhuma das mazelas que se condena.
Essa ilusão thoreauniana chega ao fim com a subsunção real da sociedade pelo capitalismo. Quando tudo é capitalista, não só o fora inexiste, mas determina-se uma torção na desobediência. Na medida em que não há mais fora, já não há como desobedecer simplesmente retirando-se, pois não há “para onde correr”. Como os pobres sabem bem, trata-se de viver a vida que se tem, mas nela, tentar construir a vida que se deseja – nem que ela se manifeste sob a forma de um desejo radical de inclusão no existente.
Nesse querer interno à vida que eles têm, os pobres a querem apostando apenas em si mesmos para alcançá-la. Talvez imaginem estar vendo nas plataformas de extrema direita as promessas de um ideal de governo que um dia foi thoreauniano: “o melhor governo é aquele que menos governa”, e se torna “aquele que absolutamente não governa”.
Imaginando “tirar os governos da frente”, elas não estariam tentando “ajeitar” as condições exteriores para poderem ser a transformação que querem ver em suas vidas? Uma revolução da dignidade pessoal, e do sentimento de valor próprio? Essa mesma revolução hoje se manifesta em escalas e fenômenos muito distintos: no ar blasé dos jovens pejotas da geração Z, cuja ética laboral é ligar o foda-se 24/7; em invenções como o quiet quitting, o lazy job e as lutas transversais pelo fim da escala de trabalho 6 x 1 do movimento VAT (“Vida Além do Trabalho”). Mesmo que o fracasso das manifestações de 15 de novembro de 2024 confirme que os aparelhos de esquerda são obsoletos a ponto de necrosar até as mobilizações mais genuínas: tudo tem a ver com viver a vida que se tem. Tudo são jeitos de se apossar de porções cada vez maiores dela, expandindo-a.
A desobediência que, de La Boétie a Thoreau, e de Gandhi a Martin Luther King Jr., sempre implicou a retirada do consentimento e do poder das mãos dos que mandam, tornou-se uma forma de manifestar a crença no seu próprio desejo de liberdade e de autonomia?
Alguns dirão que a armadilha está na captura da liberdade como estratégia da servidão. Pensamos que não. Quando cooperar é um dado, a liberdade que se pode ter é a de escolher com quem e com o quê cooperar. Não se trata de fazer o que você quiser, em uma concepção infantil da liberdade, mas de querer aquilo que você faz. Essa é a única liberdade que as democracias representativas agonizantes asseguram, e o desejo não aceita não como resposta.
O que todos esses desejos contêm é uma negociação constante e paradoxal entre autonomia e servidão, que correspondem ao que chamamos de “torção da desobediência”, e constitui as mais diferentes formas de cooperação. Se, de meado do século XVIII para cá – e especialmente do pós-Segunda Guerra até nossos dias, a liberdade passou para dentro das tecnologias de poder, estamos diante de formações de subjetividade que querem garantir para si mesmas as “condições ótimas “para negociar espaços de liberdade por dentro de sujeições que elas não se veem capazes de reverter ou de transformar.
A armadilha tampouco está nos fogos de artifício ideológicos da subjetividade-empresa. Empresariar a si mesmo não carrega qualquer contradição. Se a opção é entre empresariar a si mesmo ou ser empresariado pelos outros, empresariar-se soa muito melhor do que obedecer a ordens de terceiros. Parece sempre menos penoso negociar a própria servidão consigo mesmo.
A questão à qual voltamos é sempre a mesma: como se organiza a cooperação social? Sem ela, não há liberdade. Mas suas dinâmicas imanentes, quando se cristalizam e acumulam, produzem seu contrário: a servidão. Retornam sob figuras transcendentes: deuses, tiranos ou algum tipo de patrão, que tanto pode ser o “capitalista” quanto o sindicalista que se apropriou do sindicato; algum tenente-coronel venezuelano, ou líder máximo cubano que fica no poder ab illo tempore.
A democracia liberal tentou evitar isso multiplicando nas Constituições as instâncias formais de controle, pela via da doutrina da “Separação de Poderes”. As eleições francesas mostraram a eficácia desses mecanismos, que fizeram do vencedor (o fascista das eleições europeias) o terceiro colocado nas eleições internas. Porém, a esquerda francesa que se quer pura recusou uma coalizão de centro-esquerda, e deu de bandeja aos fascistas um papel preeminente. Ao querer ser “pura”, a esquerda deixou – na França, como há pouco, nos Estados Unidos – as classes trabalhadoras, os pobres e os imigrantes, que ela afirma defender, nas mãos de governos de direita. Assim, os “puros” permanecem intactos em suas torres de marfim; invulneráveis, mesmo que o mundo com o qual seus bons sentimentos contribuem seja o mundo do desastre.
O quinto paradoxo é o das subjetivações selvagens dos pobres. Como há muito acontece com o dinheiro, o “empreendedorismo” também se tornou um tabu e, ao mesmo tempo, a chave-mestra para explicar as vitórias da extrema-direita. Tais vitórias, aliás, revelariam um quê de vingança: só não se sabe ao certo se se trata da vingança do capataz, ou a dos bastardos.
Para além da doxa da sociologia marxista, falamos das subjetivações selvagens dos pobres sob uma perspectiva de classe. Classes insólitas que, durante a pandemia, ousavam se manifestar na Paulista contra a necropolítica bolsonarista: eram entregadores, informais, torcidas organizadas. Classes heterodoxas que, como hoje, tentam reaparecer na luta contra o regime de trabalho 6x1. Uma luta que, no fundo, reivindica o aumento da produtividade do capital no Brasil, empurrando o capital preguiçoso para o lado do que certa vez chamávamos de “mais-valia relativa”.
Mesmo assim, no léxico disléxico do progressismo à deriva, “empreender” virou sinônimo de falta moral e ontológica, pois os trabalhadores dos aplicativos, pobres e precários, constituiriam a base eleitoral da extrema direita. Assim, a esquerda paulistana teria se suicidado não quando escolheu um candidato incapaz de federar uma maioria, mas quando esse candidato – em desespero eleitoral – decidiu falar “até de empreendedorismo”. Os pobres deveriam esperar por uma reindustrialização ou pelo socialismo – já não sabemos de qual século. O mais provável é que lhe ofereçam uma terapia qualquer, mas os pobres não teriam como pagá-la.
Os dados das Bets chegaram como um trovão. Beneficiários do Bolsa Família apostam massivamente nas plataformas, no jogo do Tigrinho e em congêneres. No início do Programa Fome Zero, a proposta era a de “ensinar a pescar, e não dar o peixe”. Depois da inflexão para a distribuição de renda (o Bolsa-Família), o debate tornou-se o da “porta da saída”: a renda como caminho que levaria ao emprego formal. Na pandemia, o auxílio emergencial se mostrou uma ferramenta fundamental de resiliência social e econômica.
Mas o fato é que a subjetividade dos pobres continua selvagem ao passo que, para a moral do valor-trabalho, os pobres não podem e não devem ser tentados pelo empreendedorismo e pela teologia da prosperidade, tampouco podem jogar fora o dinheiro que não têm. À ilusão de ser empreendedor de si, segue-se a do dinheiro fácil e rápido dos cassinos eletrônicos ligados ao tempo de lazer – o mesmo tempo dedicado a acompanhar os esportes ao vivo dispersos entre as assinaturas de streaming e os sites piratas. “Pobres” dos pobres que acreditam no golpe de sorte que mudaria suas vidas. O que hoje são as bets e o vape, um dia foram (e ainda são) o carnaval e o lança-perfume atravessados pela capilaridade mafiosa do jogo do bicho, em sua polimorfia de violência e de adição?
Para além de todo juízo e de qualquer ortopedia moral, quando os pobres se inventam como “empreendedores”, “consumidores” ou “apostadores”, produzem emoções e sentidos para as vidas que já têm. As lutas precisam ser pensadas e alavancadas a partir desse enigmático terreno material e biopolítico.
A crítica das novas relações de trabalho que se restringe às narrativas que debatem sua legitimidade é oca. Que o diabo vista Prada! Quando feministas pretas aparecem fazendo propagandas de bolsas de luxo, é provável que não estejamos diante do triunfo moral do dinheiro, mas da necessidade – comum à Prada, às bets ou às religiões neopentecostais – de produzir sentidos que mobilizem e se liguem às subjetivações selvagens dos pobres. Não existe mais fora: o paraíso está no inferno – e o inferno, no paraíso. Só a mobilização democrática faz a diferença: por isso, o fascismo precisa ser combatido (inclusive quando assume uma retórica de esquerda).
A pergunta que não estamos fazendo é que fluxos de transformação são carregados por essas crenças e esses desejos? Em que realmente queremos acreditar quando apostamos numa bet, rolamos a tela do tigrinho, ou louvamos na Igreja? O que realmente desejamos quando sonhamos ser empresários, playboys da Faria Lima, trad ou trophy wives do tiktok, ou garotxs propaganda pretxs vivendo de publis para a Prada? Nenhuma dessas perguntas retira uma nanopartícula sequer da legitimidade das crenças e desejos a que se referem.
Se estivermos, de fato, na era dos controles e da “modulação universal”, tudo o que parece restar aos sujeitos é, como numa bet em que está em jogo a própria vida, recomporem as odds e as chances de liberdade em negociações infernais com suas condições implícitas de sujeição. Na medida em que as condições de sujeição são percebidas como exteriores aos sujeitos, o melhor que eles têm a fazer é “tirarem os governos do caminho”. Serem sua própria previdência, seu próprio seguro, seu próprio patrão e seu próprio gigolô.
Fazerem tudo por si mesmos, apoiando-se estrategicamente nas relações de sujeição que tocam seus corpos, conforme elas encarnem a promessa de um potencial de maximização de suas liberdades. Esse desejo é uma forma de crença no único futuro realista – mínimo, infinitamente contraído, autorreferente, e sediado num planeta em que a vida apenas começou a desmoronar.
— Como sair dessa?
— Não sabemos.
— Por que enunciamos tantos paradoxos?
— Porque as questões tradicionais, e as respostas prontas que se dão às causas e efeitos das vitórias eleitorais das extremas direitas, perdem de vista o que, a nosso ver, é o essencial: formular as perguntas que não estamos fazendo.
Revolver o solo biopolítico em que o paradoxo democrático, a desaparição do fora, a negação-afirmação sistêmica, a torção da desobediência e a subjetivação selvagem dos pobres se articulam. Procurar um novo agenciamento desses fatores para inventar um novo dentro.