02 Agosto 2024
A agenda reformista do presidente argentino busca eliminar as normas ambientais, sociais e de proteção dos direitos humanos para atrair investimentos estrangeiros. O aumento da demanda por lítio desempenha um papel crucial na nova política de Milei.
A reportagem é de Juan F. Samaniego, publicada por La Marea-Climática, 01-08-2024. A tradução é do Cepat.
Foi a Davos para se apresentar ao mundo no Fórum Econômico Mundial. Esteve em Israel e na Itália para certificar a sua posição internacional. Também em Washington, para se encontrar com Donald Trump, no Texas, para se encontrar com Elon Musk, em sua fábrica da Tesla, e em Los Angeles para apertar a mão dos pesos-pesados do Vale do Silício. E terminou em Madrid para cerrar fileiras com o VOX.
As seis primeiras viagens de Javier Milei, após vencer as eleições argentinas, foram uma declaração de intenções, não só políticas e ideológicas, mas também econômicas. Para além dos gestos retóricos e das teatralidades políticas, o mandatário tem uma agenda clara: abrir as portas da Argentina para o investimento estrangeiro a qualquer custo.
Paralelamente às suas viagens pelo mundo, o governo nascido das eleições de outubro e novembro de 2023 lançou um grande número de reformas legislativas com o mesmo objetivo, algumas delas com graves implicações ambientais. O primeiro grande pacote de regulamentações, batizado como Lei Ônibus, buscou revogar a Lei de Proteção das Florestas Nativas e a Lei de Proteção das Geleiras, embora finalmente as duas reformas foram retiradas da proposta, após fortes pressões internas e externas (incluindo um alerta de vários relatores de direitos humanos da ONU).
O novo Governo de ultradireita acabou avançando em uma reforma da Lei de Terras – que não limita mais a posse de terras a pessoas físicas e jurídicas estrangeiras – e no Regime de Incentivo a Grandes Investimentos (RIGI), que coloca em risco a soberania ambiental e social das províncias argentinas. “Milei vê as normas ambientais, trabalhistas e de direitos humanos como um obstáculo aos investimentos e ao desenvolvimento”, explica Pia Marchegiani, diretora de política ambiental da Fundação Ambiente e Recursos Naturais (FARN).
No meio da agenda reformista do Governo Milei, existe um recurso estratégico que brilha acima dos demais e que nos leva novamente ao Vale do Silício e ao escritório de Elon Musk e de muitos outros magnatas da tecnologia: o lítio.
Chile, Bolívia e Argentina formam os três vértices do triângulo do lítio, uma região que concentra cerca de metade das reservas conhecidas desse metal em todo o mundo, segundo dados do serviço geológico dos Estados Unidos. Além disso, são reservas de alta qualidade e de fácil acesso, já que o lítio está dissolvido em salmouras, águas com alta concentração de sal características dos salares andinos.
De fato, uma estimativa da Universidade Nacional de La Plata aponta que o triângulo concentra 85% das reservas de lítio de fácil extração do planeta. Na Argentina, essas reservas estão concentradas nas províncias de Catamarca (Salar de Hombre Muerto, Salar de Antofalla), Salta (Salar del Rincón) e Jujuy (Salar de Olaroz, Salar de Cauchari).
O lítio não é um metal especialmente escasso na crosta terrestre, mas, nos últimos anos, a sua demanda disparou, alimentada sobretudo pela crescente indústria de baterias para tecnologias digitais e mobilidade elétrica. A Agência Internacional de Energia calcula que a demanda mundial por este metal relacionada à transição energética passou de 200.000 toneladas, em 2021, para 325.000 do ano passado, e crescerá para 2,5 milhões de toneladas, em 2040.
Diante deste cenário, a Argentina – que é o quarto maior produtor mundial – há tempo tem o objetivo de multiplicar a sua atividade extrativa. E deseja fazer isto, em grande medida, por meio do capital estrangeiro.
“Antes da chegada de Javier Milei, a Argentina já tinha uma legislação muito permissiva ao capital estrangeiro, estabelecia poucos limites e obtinha pouquíssimos benefícios para o tesouro e as comunidades em troca da extração das matérias-primas quase sem restrições”, destaca Ernesto Picco, pesquisador da Universidade Nacional de Santiago del Estero e autor do livro Crónicas del Litio: Sudamérica en disputa por el futuro de la energía global.
Pia Marchegiani concorda com esse diagnóstico e destaca que existem mais de 40 projetos de mineração, em diferentes fases de tramitação, apoiados por gigantes da indústria automobilística, dos combustíveis fósseis e dos componentes eletrônicos dos Estados Unidos, Europa, China, Japão e Austrália.
De acordo com a diretora da FARN, muitos nomes soam familiares a todos nós: Tesla, Toyota, Volkswagen, BMW, LG, Samsung e BP. Outros, como CATL e ByD, duas grandes fabricantes chineses de baterias, são menos conhecidos, mas não por isso menos importantes.
“Falando especificamente de Elon Musk, há tempo está de olho nos recursos da região para as baterias de seus Tesla”, acrescenta Picco. “De fato, já tem negociações com empresas que operam na Argentina, como a chinesa Ganfeng e a estadunidense Livent. E agora é claramente benéfico para ele ter um presidente que priorizará as empresas estrangeiras acima dos habitantes do território”.
De fato, Musk foi o magnata mais explícito no apoio a Javier Milei, tanto antes como depois das eleições. Manifestou-se, como de costume, através do X (que antes de ser comprado por ele se chamava Twitter), com mensagens muito claras como: “recomendo investir na Argentina”.
“Musk e Milei são duas pessoas afins, não sei se por ideologia política, mas, certamente, sim, em termos de discurso e de criar polêmica nas redes sociais”, destaca Marchegiani. “Além disso, penso que possui um claro interesse comercial em vender o lítio da Argentina e o outro em acessar um recurso crucial para as suas estratégias empresariais”, acrescenta.
Localizado ao sul da Puna de Atacama, o Salar del Hombre Muerto é um dos mais importantes depósitos de lítio do mundo. O metal começou a ser extraído em 1997. Naquele mesmo ano, as comunidades indígenas que vivem na região começaram a perceber os danos evidentes que a mineração e a falta de controle ambiental provocavam nos ecossistemas, nas fontes de água e em seus modos de subsistência.
Após mais de duas décadas de lutas, ameaças e pressões de todos os tipos, as comunidades conseguiram fazer com que, no último mês de março, um tribunal argentino suspendesse a concessão de novas licenças de extração na região.
“As reformas das leis propostas por Javier Milei e que estão amplamente incluídas no RIGI liquidam qualquer processo de diálogo social e consulta indígena e geram um quadro de maior criminalização e de maior conflito”, destaca Pia Marchegiani. “Certamente, a longo prazo, isto não se traduzirá em maior estabilidade para os investidores, como mostra o caso do Salar del Hombre Muerto. Quando não se considera a demanda social e o que as comunidades querem, corre-se o risco de todos os projetos e decisões acabarem sendo discutidos no âmbito judicial”.
A desregulamentação para favorecer a mineração de lítio também está por trás da revolta social na província argentina de Jujuy (onde estão localizados o Salar de Olaroz e o Salar de Cauchari). No ano passado, a reforma da Constituição da província para permitir novas áreas de mineração no altiplano andino provocou fortes protestos entre as comunidades indígenas, que foram violentamente reprimidas pelas autoridades locais. A situação, com o novo contexto político, não parece que melhorará.
“O lítio já era um recurso fundamental antes de Milei. Estamos em um processo de expansão da produção que certamente trará muitas mudanças para a região, e nem todas serão boas”, conclui Ernesto Picco. “As novas leis de Milei vão um pouco além e deixam as comunidades locais, em especial as comunidades indígenas, no último nível de importância frente ao desenvolvimento e os investimentos. Faz parte da filosofia deste governo. Basta lembrar as declarações de Milei, durante a campanha, quando dizia que uma empresa que investe e produz tem o direito de poluir um rio o quanto quiser”.
“Para mim, este debate tem duas questões centrais. Uma delas é a demanda: será que realmente o acesso de todos a um carro elétrico, na América do Norte e na Europa, é o caminho para solucionar a crise climática”, questiona Pia Marchegiani. “A outra é a da justiça norte-sul e a justiça com os povos indígenas. Há países que contribuíram muito mais para o problema e que agora também se apropriam dos recursos para as supostas soluções. E as comunidades indígenas estão há séculos adaptadas a viver em ecossistemas que cuidam e respeitam e que agora vamos sacrificar para, em teoria, solucionar a mudança climática. “Penso que devemos repensar seriamente como vamos sair desta crise”.
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Milei, Elon Musk e o triângulo do lítio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU