28 Junho 2024
“Nos últimos anos, os titãs do Vale do Silício, muitos dos quais anteriormente defendiam a “saída” dos EUA, estão fazendo fila para se grudarem ao governo federal como um polvo. A sua suposta oposição por princípio ao Estado desaparece assim que eles se tornam um cliente importante”. A reflexão é de Quinn Slobodian, em artigo publicado por Clarín, 26-06-2024. A tradução é do Cepat.
Quinn Slobodian, historiador canadense das ideias, é professor do Wellesley College, Massachussets, desde 2015. É autor de Capitalismo destrutivo: os radicais do mercado e a ameaça de um mundo sem democracia (Editora Objetiva).
Nos últimos anos, os titãs do Vale do Silício, muitos dos quais anteriormente defendiam a “saída” dos EUA, estão fazendo fila para se grudarem ao governo federal como um polvo. A sua suposta oposição por princípio ao Estado desaparece assim que eles se tornam um cliente importante.
O investidor bilionário de tecnologia Balaji Srinivasan, nascido em Long Island, ficou famoso como um cruzado antigovernamental em 2013, quando falou sobre a “saída definitiva” do Vale do Silício, na costa oeste, do que chamou de “Microsoft das nações”. Talvez o mais memorável foi que Srinivasan descreveu o “Cinturão do Papel” dos Estados Unidos: Washington que se dedica à aplicação de leis e regulamentos, Boston ao ensino superior, Los Angeles ao entretenimento e Nova York à publicidade e às editoras, em referência a um moderno Cinturão da Ferrugem (Rust Belt), como eram chamados, nos anos 1980, os Estados que se dedicavam à indústria pesada, ao aço e às montadoras, que depois caíram na decadência e na desindustrialização.
Na sua opinião, o Vale do Silício estava usurpando essas quatro cidades, outrora centros de poder da América do pós-guerra, ao adiantar-se às regulamentações, menosprezar o prestígio acadêmico, criar serviços de streaming e reinventar o marketing direto ao consumidor. Nos anos que se seguiram, Srinivasan redobrou a sua mensagem tecnolibertária. Fez longos discursos sobre o seu desprezo pelo Estado e foi combativo com os seus inimigos, muitas vezes falando liricamente de um “Estado em rede” ou de um novo tipo de sistema governamental em que todas as decisões eram tomadas através da propriedade, do consentimento e dos contratos. De repente, no início de 2017, Srinivasan excluiu seu histórico no Twitter. Onde ele estava? Acontece que o governo federal veio bater à sua porta em busca do seu conhecimento.
Em 2017, o recém-eleito presidente Donald Trump recorreu ao investidor tecnológico Peter Thiel, amigo de Srinivasan e também libertário, para que o ajudasse a montar o seu gabinete, e Srinivasan estava sendo cogitado para chefiar a Food and Drug Administration. Anos de declarações antigovernamentais dissolveram-se assim que Srinivasan teve a oportunidade de aceder ao poder político à moda antiga.
Esse não é um caso isolado. Na verdade, esta hipocrisia é o novo normal. Nos últimos anos, os tecnolibertários fizeram fila para se juntar ao governo dos EUA. O que está acontecendo? Isto é simplesmente falta de sinceridade ou reflete uma lógica mais profunda?
A resposta é cada vez mais clara: os principais tecnolibertários do Vale do Silício são contra o Estado apenas na medida em que este não os enriquece pessoalmente. Quando confrontado com a perspectiva de o governo se tornar um cliente importante, a oposição anteriormente baseada em princípios ao poder do Estado dissipa-se.
Pode-se ver essa transformação no próprio Thiel. Em 2009, ele declarou que “a grande tarefa dos libertários é encontrar uma fuga da política em todas as suas formas”. Mas em 2016, Thiel esteve totalmente envolvido na política partidária e discursou na Convenção Nacional Republicana. Enquanto isso, a Palantir, a empresa de análise de dados que ele cofundou, tornou-se uma gigante, beneficiando-se de polpudos contratos governamentais. Agora, quase metade da sua receita vem do erário público.
Outro exemplo é Marc Andreessen, fundador da Andreessen Horowitz (conhecida como E16z), a principal empresa de capital de risco do Vale do Silício, da qual Srinivasan foi sócio por um breve período. Em outubro de 2023, Andreessen escreveu The Techno-Optimist Manifesto (O manifesto tecno-otimista), um texto longo e muito discutido no qual elogiou o poder prometeico dos mercados livres e dos tecnólogos empreendedores. A palavra “governo” não apareceu nenhuma vez no texto de 5.000 palavras, enquanto as duas únicas referências ao “Estado” o colocaram como inimigo.
Mas o Estado é o pão com manteiga de Andreessen. O Estado pagou pela concessão de terras à universidade onde ele ajudou a desenvolver o primeiro navegador de internet. E, como relata a Bloomberg, a E16z é hoje em dia um rosto familiar em Washington, gastando muito mais com lobby do que outros fundos de risco para promover a sua iniciativa, a American Dynamism, que apoia empresas que procuram contratos com o governo nas áreas da defesa, energia e logística. A lógica interna desta mudança pode ser explicada por um dos escritos públicos de Thiel, que são agora muito esporádicos.
Em 2020, Thiel escreveu um novo prefácio para o livro de 1999 de James Dale Davidson e William Rees-Mogg, The Sovereign Individual: Mastering the Transition to the Information Age (O indivíduo soberano: um guia para dominar a transição à era da informação), que prevê a possibilidade de escapar do Estado com cibermoedas e abandonando a cidadania convencional.
O redator do prólogo, Thiel, identificou dois desenvolvimentos que os autores não levaram em consideração: a ascensão da China e os avanços na inteligência artificial.
No Vale do Silício da década de 1990, foi possível esconder o fato de que o financiamento público foi responsável pelos avanços mais importantes e, em vez disso, cultivar o mito do gênio e único arquiteto do seu sucesso. Mas a ascensão meteórica da China no novo milênio mostrou que outro ingrediente era necessário para a supremacia tecnológica: um Estado disposto a entregar resmas de informações pessoais sobre os seus cidadãos.
Elon Musk, CEO da Tesla, assim como Thiel, opôs-se a formas de vigilância em massa, uma posição que mudou desde então, dada a sua recente viagem à China para obter precisamente esse tipo de dados. Embora a avaliação das ações da Tesla tenha caído, Musk ainda pode contar com os elementos mais fortes do seu portfólio: a SpaceX, agora o principal lançador de satélites dos EUA, e o Starlink, o seu serviço de internet por satélite, que atualmente apoia o esforço de guerra da Ucrânia. Estas empresas, no entanto, são mais um reflexo do complexo militar-industrial tradicional do que um repensar radical da relação entre uma elite cognitiva talentosa e o Estado, como imaginado em O indivíduo soberano.
Falar da saída do Vale do Silício dos Estados Unidos sempre foi falar de parasitismo com outro nome. Agora isso começa a atingir sua forma definitiva e nua. Talvez os tecnolibertários precisem de um rótulo mais preciso, embora menos glamoroso. Afinal, não estão forjando um mundo misterioso longe da política, nos confins do continente ou nos mares do mundo, muito menos em planetas distantes, nem estão necessariamente acelerando uma descida ao tecnofeudalismo. Na realidade, eles nada mais são do que tecnocontratantes que se preparam para apresentar a sua próxima fatura ao Cinturão do Papel.
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Agora, nos Estados Unidos, os tecnolibertários são amantes do Estado. Artigo de Quinn Slobodian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU