11 Março 2021
Quinn Slobodian (1978) é historiador e professor no Wellesley College. Alcançou fama internacional devido a sua genealogia sobre o neoliberalismo. Recentemente, a editora espanhola Capitán Swing publicou a tradução de “Globalistas, el fin de los imperios y el nacimiento del neoliberalismo”, que faz parte de um reduzido grupo de textos sobre as origens intelectuais dos fundamentalistas do livre comércio que, recentemente, surgiram na Espanha (Wendy Brown, pela Lengua de Trapo, e Pierre Dardot e Christian Laval, pela Gedisa, são outras iniciativas recentes).
Embora se criticou que esta literatura “não conseguiu explicar a intersecção entre a crítica neoliberal da democracia e a diferenciação racial (ou racializada)”, a publicação desse ensaio supõe uma notícia importante para a produção de ideias-pátria. Falamos de um país que, há poucos anos, assumiu tratados comerciais neoliberais como o TTIP [Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento] e o CETA [Acordo Integral de Economia e Comércio], sem expressar oposição política alguma e que, além disso, tende a entronizar tentativas intelectualmente estéreis de criticar o neoliberalismo se fixando na diversidade, especialmente quando, como concluem estudos rigorosos como o que aqui se apresenta, essa é a fonte mais revolucionária de criatividade política neste momento. De fato, as duas coisas nos dizem muito mais sobre a verdadeira hegemonia, a dos mercados livres e o consenso conservador, que qualquer discurso proclamado no Congresso.
Partindo das cinzas do Império dos Habsburgos e, em detrimento dos profetas da Guerra Fria que na Espanha ocupam reputados postos em institutos de ideias, o canadense demonstra que o neoliberalismo é um caminho onde a democracia liberal e a economia de mercado nem sempre vão de mãos dadas. Muito pelo contrário, explica, a história se inclinou para opções autoritárias quando o capitalismo estava em crise.
Em uma séria análise centrada na época que vai de antes da Segunda Guerra Mundial (1920) até a queda do muro de Berlim (1990), Quinn Slobodian radiografa a ascensão do globalismo, ou “ordoglobalismo”, como um processo revolucionário que experimentou ditaduras, ou Estados fortes, para perpetuar um mundo finalmente unificado pelo livre fluxo de mercadorias. Especialmente inovador é o seu argumento sobre o que denomina a Escola de Genebra, uma fé presente nas instituições de comércio internacional que defende a criação de uma “constituição econômica mundial” para garantir a mobilidade e acumulação de capital. O neoliberalismo compõe uma série de soluções, é possível extrair do argumento, destinadas a manter intactos os lucros privados.
Dado que o livro é um trabalho de história e não está centrado em explicar a práxis neoliberal do presente, durante esta entrevista, Slobodian disseca os temas de mais acalorada atualidade, oferecendo evidência suficiente para compreender as limitações do mercado como mecanismo de coordenação social e, assim, convidando para a construção de alternativas, de modo urgente.
A entrevista é de Ekaitz Cancela, publicada por La Marea, 08-03-2021. A tradução é do Cepat.
A primeira pergunta é obrigatória: com quais argumentos responde à grande quantidade de acadêmicos ou analistas que vociferaram a morte do paradigma neoliberal, após a epidemia de Covid-19?
Os obituários do neoliberalismo são quase tão antigos como o próprio termo. Após a crise financeira da Ásia, em 1997, muitos consideraram o neoliberalismo morto. O mesmo aconteceu após a explosão da bolha das ponto com, em inícios da década de 2000, depois, a crise financeira mundial que explodiu em 2008 e, mais recentemente, com a eleição de Trump e a vitória do Brexit, em 2016. É evidente que estes acontecimentos não mataram o neoliberalismo, mas levaram a uma mutação deste.
Em particular, o setor financeiro demonstrou ser especialmente hábil na hora de sobreviver a desafios, à primeira vista, existenciais. De fato, neste momento, Wall Street está conseguindo prosperar graças às respostas monetárias que foram oferecidas para conter a crise. Enquanto os políticos e legisladores renunciarem a sua responsabilidade de governar e liderar a criação de novas leis, a produção de quantidades enormes de liquidez na economia global continuará enriquecendo os que já são ricos, inflará o valor dos ativos (ações ou propriedade imobiliária), aumentará a rentabilidade das empresas e aumentará o abismo entre os que têm e os que não têm.
Até agora, o resultado material da crise do coronavírus foi exagerar, em vez de diminuir, as desigualdades que caracterizam as sociedades globais. De modo que as consequências reais desse sistema que chamamos de neoliberalismo são sentidas de modo tão forte como em outros momentos.
Aqueles que defendem uma postura contrária à sua, argumentam que os Estados deixaram de ter um papel passivo na planificação econômica. Não obstante, teóricos neoliberais como Friedrich Hayek nunca disseram que esta instituição tivesse que reduzir seu peso, mas, ao contrário, intervir quando os mercados falham.
Alguns pensam que a vontade dos Estados em gastar livremente, durante a pandemia, indica uma ruptura permanente com o pensamento da austeridade. Não obstante, a CDU alemã [União Democrata-Cristã, partido de Angela Merkel] evidencia que isto não necessariamente está correto, por exemplo, ao fechar o cerco e expressar seu horror diante das declarações públicas daqueles que criticaram o fetiche dos orçamentos equilibrados [entre o gasto e os ingressos fiscais] (o black zero).
É mais simples imaginar os líderes políticos dizerem, em um futuro próximo, que a carteira dos Estados está realmente vazia, que devemos poupar e nos sacrificar para “a próxima crise”. A este respeito, a história dos Estados Unidos demonstra que os republicanos falam em orçamentos equilibrados quando estão fora do poder, mas caem em déficits enquanto ocupam o poder. Ou seja, são os democratas que verdadeiramente praticam a austeridade. Haverá muitas vozes no Partido Democrata que tomarão este caminho, o da austeridade, mais cedo ou mais tarde.
A digitalização foi apresentada como a panaceia para todos os problemas de nossa sociedade, se cabe, com maior ímpeto durante a crise sanitária. Qual é o papel das tecnologias na hora de apoiar as lógicas neoliberais?
Claramente, a forma que a digitalização adotou tende a capturar a atenção humana, a concentração da propriedade em um pequeno número de empresas oligárquicas e a mostrar um desprezo generalizado à privacidade ou aos problemas de igualdade material. As formas atuais de tecnologia digital fazem com que todos os aspectos da vida sejam legíveis e potencialmente transformáveis em uma mercadoria para comercializar, comprar e vender. Há ressonâncias entre isto e uma versão hipercomercializada do neoliberalismo.
No entanto, seria uma bobagem afirmar que a tecnologia só pode funcionar em uma direção. Há muita gente que fala do potencial da tecnologia como meio para compartilhar informação de forma desmercantilizada e alcançar um conjunto de valores diferente daqueles que atualmente regem as nossas vidas. Estou pensando no trabalho recente de Aaron Benanav e Evgeny Morozov. Não nos resta outro remédio a não ser confiar em usos alternativos da tecnologia, dado que eliminá-la de nossas vidas provavelmente não seja mais uma opção.
A este respeito, a União Europeia apostou no desenvolvimento de uma associação transatlântica “mais estreita”, centrada no comércio digital, e apostou na indústria digital e verde para reviver os tempos de Pascal Lamy, que você tão bem radiografa. Qual é o consenso globalista atual? E com isso me refiro às ideias que percorrem todo o espectro político de outrora, da social-democracia aos conservadores democratas-cristãos.
As características mais chamativas do novo consenso globalista é a atenção que as elites deram à mudança climática. Digamos que esta causa foi impulsionada pelos movimentos de base e a sociedade civil, durante os últimos anos, ainda que com resultados muitas vezes decepcionantes. A rejeição total aos problemas climáticos, por parte da administração Trump, ateou fogo na política de movimentos como Fridays for Future, Extinction Rebellion, Ende Gelände e Sunrise Movement e trouxe uma sensação de urgência que esteve ausente do debate público, durante muito tempo.
Não obstante, estes movimentos enfrentam a algo como a maldição do êxito. Pelo fato de todos acreditarem na urgência da mudança climática, da Comissão Europeia à administração Biden, os banqueiros centrais e os diretores executivos do Bank of America e Goldman Sachs, este tema pode se tornar uma cortina de fumaça para ocultar outros problemas, como a luta de classes e a redistribuição socioeconômica.
O desafio destes movimentos será evitar a apropriação da política da mudança climática por parte dos políticos de centro que, no final das contas, têm pouco a ganhar fazendo as mudanças políticas radicais que são necessárias para atenuar o aquecimento global. De alguma maneira, seria necessário tornar a chamada de atenção sobre a mudança climática novamente perigosa ou, ao menos, tentar algo que possa acender as paixões dos movimentos sociais.
Além do problema derivado do aquecimento da terra, as grandes empresas tecnológicas se tornaram um objetivo conveniente para a nova classe governante transatlântica, que muitas vezes serve para desviar a atenção de outros problemas.
Em último termo, o tema da concorrência com o rival econômico chinês dominará as agendas globalistas dos próximos anos. Isto é um problema porque embora a política por trás desta rivalidade ainda não esteja clara, provavelmente será preciso uma associação mais profunda com a China, não mais superficial, para conseguir uma resposta adequada ao desafio da mudança climática. Claro que as violações aos direitos humanos de Xinjiang, por um lado, e o contínuo militarismo dos Estados Unidos no Oriente Médio, por outro, sempre facilitarão que as duas partes denunciem uma a outra como um ator malvado.
De fato, após os recentes bombardeios estadunidenses na Síria, difundiu-se um meme nas redes sociais chinesas que comparava um bombardeio sem adornos na era Trump com um bombardeio decorado com decalques da bandeira do arco íris e do Black Lives Matter na era Biden. Sempre há hipocrisia suficiente nos dois lados.
Em seu livro, escreve uma frase que me parece relevante: “Foi quando se produziu uma tentativa de supervisão geral da economia, que mais os neoliberais se mobilizaram”. Voltando à questão das Big Techs e a corrente de pensamento influenciada por Piketty que propõe regulá-las, a que tipo de batalha comercial assistimos no presente? Refiro-me, em termos mais explícitos, ao estado das ideias progressistas e ao modo como possam vir a ser bloqueadas por meio de sanções comerciais diretas, sem a preponderância que a OMC possuía durante o seu período de estudo.
Com efeito, é na arquitetura do comércio internacional que estão ocorrendo mudanças tectônicas. Ainda que inicialmente a guerra comercial de Trump com a China tenha sido entendida como uma ruptura, ou um shock, com as normas da chamada longa década de 1990, os legisladores dos dois partidos estadunidenses, e agora o Reino Unido e a União Europeia, seguem à risca o seu exemplo. Todos concordam em que a China passou de sócio a um rival ou uma ameaça e que, por isso, são necessárias novas respostas institucionais. A recém-nomeada diretora da OMC fala inclusive da necessidade de reformar esta instituição, a joia da coroa do globalismo neoliberal dos anos 1990.
Neste sentido, acredito que seja inevitável, e provavelmente positivo, que se fale mais em “resiliência” nas cadeias de abastecimento global e que se produza uma mudança de paradigma para a produção “just in case” em lugar do “just in time” de certos produtos essenciais para atenuar a covid [PPE, na sigla em inglês]. Acredito que também veremos que estas tendências já existentes serão aceleradas em produtos do futuro, como os veículos elétricos. Veja, por exemplo, a tentativa de se criar uma bateria “totalmente europeia”. Também podemos ver uma versão de chauvinismo econômico na resistência a que empresas chinesas como Huawei construam as redes 5G.
Voltando à sua pergunta, penso que isto representa uma ruptura com a racionalidade neoliberal no sentido de que o livre comércio já não é naturalizado como a única opção possível. É bom recordar que se trata de opções políticas e, como ocorre com todos os assuntos de economia política, implicam questões de distribuição. Algumas pessoas ganham, enquanto que outras perdem. Às vezes, as mesmas pessoas ganham como consumidores e perdem como trabalhadores.
Durante muito tempo, estas questões não fizeram parte do debate público. A circulação de capitais e bens sem travas, através das fronteiras, foi considerada um fato tão natural como a mudança nas estações do ano ou o derretimento das geleiras. Tomar a decisão de produzir mais produtos em nível nacional não significa necessariamente que tenhamos “retrocedido” na globalização. Simplesmente significa que escolhemos outro tipo de globalização, ou outro tipo de world-making, usando o termo da cientista política Adom Getachew.
Novamente, ver esta mudança rumo a uma política comercial reterritorializada, ou quase protecionista, como a morte do neoliberalismo, considero prematuro. Recordemos que Ronald Reagan usou métodos semelhantes aos de Trump para pressionar os competidores, naquele momento o Japão, a abrir seus mercados a mais produtos estadunidenses e limitar suas exportações. Tal exercício do chamado poder “geoeconômico” pode estar alinhado a um modelo de neoliberalismo mais disposto a usar a linguagem da ação unilateral e a segurança que a da reciprocidade e o multilateralismo legal. Esta é a lição histórica que devemos extrair do presente.
Agora, é claro que considero que existe alguma forma de reterritorialização da economia política em marcha que difere qualitativamente da longa década de 1990, quando houve a queda do muro de Berlim, e que vai mais ou menos até 2016. Como dizia, ver o comércio como um campo de batalha onde há ganhadores e perdedores é uma diferença no discurso. E como você disse, também há uma mudança de humor na hora de aceitar a fuga de capitais e o impulso em tornar as grandes economias em paraísos fiscais. A medida recente do Reino Unido para aumentar os impostos corporativos e as conversas iniciais na administração de Biden para fazer o mesmo representam uma mudança de direção em relação a fins da década de 1990.
Se, além disso, a OCDE iniciar uma ofensiva global contra a evasão fiscal, isto também será uma mudança importante. No entanto, estes sinais ainda estão confusos. Lembremos que a Apple ganhou um caso no Tribunal de Justiça da União Europeia, o que significa aceitar que a Irlanda seja um paraíso fiscal. Sempre é muito mais fácil falar de mudanças na política fiscal do que colocá-las em prática. Se as políticas de reforma fiscal se concretizarem, então talvez possamos falar mais seriamente sobre uma mudança na racionalidade política e econômica que governa. Até o momento, temos que manter aberta a possibilidade de que o neoliberalismo simplesmente tenha sofrido uma comoção cerebral em vez de um golpe fatal.
Especificamente em relação ao Governo espanhol, o vice-presidente fez o seu doutorado com uma tese sobre os movimentos antissistêmicos e se despontou politicamente como ativista em paralelo à chamada batalha de Seattle. Não obstante, e ao mesmo tempo, assinou o Real Decreto que autoriza os fundos ‘Next Generation’, o maior exemplo do que você, no final do livro, chamou de “keynesianismo privado”. Qual é o estado da esquerda institucional europeia em sua luta contra o neoliberalismo?
Provavelmente, o maior obstáculo que a esquerda institucional europeia enfrenta neste momento é o domínio do modelo de exportação alemã. Haverá pouco espaço de manobra enquanto este país quiser aplicar a disciplina monetária e manter o gasto da União Europeia dentro dos limites para garantir que o Velho Continente esteja no interior de uma cadeia de abastecimento que serve para a produção de suas exportações, especialmente para a China.
A estrutura da União Europeia é intrinsecamente conservadora no sentido de que sua constituição é resistente à revisão e sua liderança tecnocrática é mais ou menos reacionária às rebeliões ou a resistência da base. Construir uma ameaça credível, a partir da esquerda, dentro do núcleo dos países industriais europeus, especialmente nos chamados países frugais da Alemanha, Áustria, Holanda, Dinamarca e Suécia, será especialmente necessário para romper o domínio que o norte tem sobre o sul.
A ausência de imaginação política por parte dos líderes políticos de esquerda é também uma expressão do esgotamento do que antes eram esperanças utópicas do que Paolo Gerbaudo chama de “o partido digital”. Sem transformações estruturais, em nível continental, não haverá uma relação digital [em termos antissistêmicos] capaz de fazer a diferença.
Recentemente, o Fundo Monetário Internacional publicou um relatório que conclui o seguinte: “Se a história pode servir como predição, as agitações sociais ressurgirão na medida em que a pandemia diminuir. As ameaças podem ser maiores quando a crise expõe ou agrava problemas preexistentes, como a falta de confiança nas instituições, a má governança, a pobreza e a desigualdade”. O que estas declarações realmente significam? Você vê as massas dispostas a desafiar novamente as elites? É apenas outra estratégia das elites ou existe uma mudança no paradigma desta instituição neoliberal que você disseca em seu livro?
Devo dizer que o FMI é uma fonte notoriamente pouco confiável para entender sua própria conduta. O mero fato de que esta instituição esteja dividida entre uma ala de pesquisa e outra ala de empréstimo significa que os pesquisadores, às vezes, fazem declarações que parecem romper paradigmas sobre o fim do neoliberalismo, sem atingir realmente a conduta comercial da instituição.
Sem ações reais, duvida-se que possam levar a sério esta retórica. Se houvesse um movimento para a criação de Direitos Especiais de Giro [SDG, em inglês], o perdão permanente da dívida e a expansão drástica dos empréstimos aos países mais pobres, então, estas declarações seriam bem-vindas. Mas precisaremos ver para crer.
Imagino que você deve ter acompanhado a ascensão dos movimentos antiglobalização ultradireitistas na Alemanha. Na Espanha, os fascistas apelaram à ideologia de Hitler, tanto nas ruas como nas redes, sem oposição jurídica alguma. Tendências gerais como estas apontam uma nova forma de ‘liberalismo autoritário’? Como essa superestrutura, ou “marco extraeconômico”, está se adaptando em relação ao pensamento neoliberal tradicional?
Na medida em que se alcança um progresso genuíno para os objetivos de mitigar a mudança climática e abordar a desigualdade, podemos esperar que surjam alianças cada vez mais estranhas na oposição. Mas os interesses criados para apoiar o status quo, especialmente os ecossistemas midiáticos da direita, resistem a tais transformações. Dadas as novas plataformas digitais e as redes sociais projetadas segundo o modelo do que chamei de “capitalismo de incitação”, a direita tem uma grande capacidade para aproveitar energias incipientes de todo o espectro político contra qualquer desafio genuíno à ordem estabelecida.
Nos próximos anos, veremos que provavelmente será cada vez mais difícil distinguir as formas de ativismo da direita e a esquerda. Aquilo que meu colaborador Will Callison e eu chamamos de “pensamento diagonal” já é exibido na oposição aos confinamentos e a vacinação. A política que veremos, durante os próximos anos, pode estar menos centrada na construção de partidos alternativos e na política parlamentar, no sentido convencional, e se manifestar mais como uma política de localização e escala, defesas da autonomia descentralizada, muitas vezes baseadas em campanhas na web contra o que os protagonistas das revoltas imaginam que é uma monstruosa combinação do poder público e corporativo, que busca uma reforma política e econômica de fundo [como a que promovem os acordos público-privados, presentes nos fundos de recuperação].
A histeria provocada pelo insosso lema do Grande Reinício, proposto pelo Fórum Econômico Mundial em 2020, nos dá uma ideia da forma que terá semelhante conflagração. Desde os anos 1990, os neoliberais de direitas vêm destacando que “o novo comunismo será verde, em vez de vermelho”, e é muito provável que assistamos aos esforços de cima para baixo para mudar o comportamento e impor a soberania do consumidor como ferramenta para abordar a mudança climática. Caso isto ocorra, então, haverá uma reação violenta que pode não se parecer com nada do que tenhamos visto antes.
Neste sentido, a analogia do fascismo pode ser ilustrativa. O fascismo digital não se consumará como um exercício de pessoas que usam botas e marcham em formação pelas ruas, mas será algo completamente diferente. Heinrich Geiselberger escreve sobre o “autoritarismo líquido”: “enxames, em vez de formações orquestradas, mercadoria, em vez de uniformes, seguidores, em vez de membros, flash mobs, em vez de reuniões regulares, políticas erráticas e inconstantes, em vez de projetos de longo prazo”. Esta descrição também me parece uma forma útil de imaginar a forma da política de oposição que se aproxima.
Com as lentes do presente, estamos às portas de uma nova tentativa de superar o sistema ou diante da mais dura de suas transformações em termos neoliberais? Ou melhor dito, você mantém algum otimismo?
Penso que a possibilidade de esboçar uma alternativa depende, em grande medida, da capacidade da esquerda em navegar no terreno mutante do engagement [compromisso]. De algum modo, acredito que podemos compreender a pandemia como o final de um ciclo de protestos que começou com o Occupy e Tome a Praça, em 2011, que por sua vez desembocou no fracasso dos projetos de Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, há um e dois anos.
O que estes movimentos tinham em comum com o Podemos, na Espanha, e o Syriza, na Grécia, era uma fé cega em um Estado potencialmente benévolo. A esperança era que se as pessoas pudessem assumir as rédeas do Estado, então poderiam conduzi-lo para uma boa política. Não obstante, é muito surpreendente observar o caso estadunidense para entender este erro, pois o maior protesto em décadas (liderado por pessoas negras) foi motivado por um estímulo muito diferente. A demana defund the police, durante os protestos contra o assassinato de George Floyd, no verão de 2020, foi antiestatista, dado que pedia de maneiras distintas a retirada de um Estado intrusivo e intervencionista.
O nexo entre libertarismo e socialismo, bastante familiar em alguns lugares como Quebec, aqui, surgiu de uma nova maneira. Quaisquer que sejam as soluções que a esquerda possa ter, certamente, terão que incorporar estas energias. Não basta simplesmente reproduzir as tentativas do populismo de esquerda liderados por garotos brancos de classe média bem formada, conforme os projetos Corbyn e Sanders representam. Não sei que forma essa mobilização assumirá, mas podemos citar Mao de modo meio irônico: “As massas têm um poder criativo ilimitado”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Os obituários do neoliberalismo são quase tão antigos como o próprio termo”. Entrevista com Quinn Slobodian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU