27 Outubro 2020
Não passa um dia sem que algum grupo peça ajuda a seu Estado, em todos os seus níveis, para superar a pandemia. Ninguém mais defende que o Estado é o problema, porque hoje aparece como a única solução. E se sua eficiência é questionada, é porque se requer a sua existência.
Paolo Gerbaudo, professor do King’s College, autor de The great recoil [O grande recuo, tradução livre], considera que este neoestatismo não é de esquerda, mas a ponte dos mais ricos para manter suas prerrogativas e propriedades seguras até a recuperação da pandemia. De qualquer modo, só quem obtém a proteção do Estado lhe oferece obediência, como teorizou Hobbes, e quem não a obtiver, irá se rebelar. Daí na Espanha e Itália toda a correria, agora, para reforçar as administrações e investir em serviços públicos com a aprovação da esquerda e da direita.
A entrevista é de Lluís Amiguet, publicada por La Vanguardia, 26-10-2020. A tradução é do Cepat.
O que nos ensina o que vivemos?
Que esta pandemia é outro capítulo da crise da globalização, que começou com a recessão, em 2008, e que agora se depara com o aquecimento global, que deixou inoperante o modelo globalizante clássico.
A globalização também não retirou milhões de pessoas da fome?
Mas o horizonte neoliberal não consegue mais explicar, e menos ainda gerir, suas próprias crises. É parecido com o que aconteceu nos anos 1970, quando o paradigma keynesiano foi incapaz de explicar a recessão e remediá-la.
Mas, hoje, volta-se a insistir em grandes investimentos públicos keynesianos.
Refiro-me ao fato de que quando as taxas de juros não podem mais baixar, porque estão a zero, e a inflação também, mas o desemprego dispara, os instrumentos clássicos da doutrina econômica liberal não funcionam mais.
E não funcionarão novamente, quando a pandemia acabar e a atividade retornar?
Veremos, mas enquanto o que existe é uma enorme massa de capital especulativo, cujos gestores não sabem onde investir, e assim acabam sobrevalorizando as tecnológicas...
Daí a bolha digital?
Claro, mas o novo é o neoestatismo que domina todos os cenários e acaba sendo a síntese do grande confronto entre neoliberalismo e populismo que definiu os anos 2010.
Que tipo de Estado se defende agora?
Torna-se a apostar no Estado como solução, mas isso não significa o socialismo, o neoestatismo pode ser também conservador para manter o status e o sistema de propriedade existente. É o modelo Trump.
Defina esse modelo Trump.
É um protecionismo proprietário, que inspira também sua política internacional.
Em que sentido?
Seus estímulos e o investimento público...
Os todo-poderosos investimentos do Federal Reserve?
Não são para criar igualdade...
Como fez Roosevelt com o 'new deal'.
... Mas para manter o status dos bilionários, e isso é um neocapitalismo proprietário protegido pelo Estado com seus estímulos.
E assim manter a bolsa em alta, em um país em que tudo já depende dela?
O que está claro é que todos sabem que as regras do jogo mudaram. E até o político que mais pregou a austeridade compreende que hoje não leva a lugar algum e pioraria a crise social e o desemprego.
Aqui, somos líderes europeus parados.
E nesse neoestatismo protetor há duas vias: defender as empresas nacionais e defender o sistema de propriedade existente.
Como?
O nacionalismo defende os proprietários em nome da nação. Essa bandeira nacionalista é também uma ponte que os neoliberais se prestaram a construir por necessitarem de uma guinada autoritária para defender o sistema de propriedade existente.
É suficiente para contentar a todos?
Também se oferece um protecionismo social, patrocinado pela nova social-democracia, em resposta a uma demanda de proteção ubíqua de todos e de as todas partes.
Se as coisas vão mal, todos queremos proteção. Se vão bem, liberdade.
Além disso, já se esgotou a crítica neoliberal dos últimos 40 anos ao Estado socialista e, hoje, o que prevalece é a demanda por proteção, que justifica um Estado forte.
Quem a pagará?
É óbvio que a sociedade precisa criar riqueza para poder proteger, mas hoje o problema fundamental da economia não é que as pessoas não sejam eficientes, mas garantir os mínimos vitais a todos.
O que mudou, então?
Antes se pedia oportunidade, inovação, produtividade, crescimento... Mas hoje se pede estabilidade: que o Estado nos vacine contra o medo. E é preciso temer ao medo.
Por quê?
O Papa alerta, com acerto, em sua última encíclica Todos irmãos...
O que considera interessante nela?
Fala do medo e como a direita nacionalista o utiliza para nos dividir. Medo da China, do imigrante, daqueles que pensam diferente...
É a emoção social primigênia.
Thomas Hobbes aponta que o medo é o último pilar do Estado que garante que o homem não devore o homem.
E em troca oferece proteção.
Mas quando vejo todo mundo desesperado pela recessão na pandemia, também penso que se o estado não oferecer proteção, também não haverá obediência. E não quero ser apocalíptico, mas, além das pandemias, temos diante de nós ameaças piores, como a mudança climática...
E se o seu Estado não funciona?
A Espanha e a Itália fizeram cortes, durante anos, e agora têm estados depauperados e, claro, menos eficientes que outros que, sim, foram modernizados. Agora, cabe a nós reinvestir neles, porque as pessoas pedem, querem e merecem proteção.
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"Agora, todos pedem proteção ao Estado e sem ela não há obediência". Entrevista com Paolo Gerbaudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU