04 Junho 2024
A PEC 03/2022 volta a tramitar, agora no Senado, ignorando a catástrofe climática vivida no Rio Grande do Sul.
"A privatização dos terrenos de marinha, na prática, reflete a escolha dos políticos brasileiros em favorecer o setor turístico e imobiliário, deixando outros setores, incluindo os pequenos empreendedores do turismo, à mercê da boa vontade de grandes empresários. Essa medida beneficia apenas alguns, gerando lucros para poucos e prejuízos incalculáveis para a maioria", escrevem Monique Torres de Queiroz, oceanógrafa e mestra em oceanografia pela Universidade de São Paulo (USP), Eduarda Antunes Moreira, mestra e doutora em Ciências pela USP, Tássia Biazon, bióloga, jornalista científica, professora e pesquisadora e Rede Ressoa, projeto colaborativo de divulgação científica e comunicação sobre o Oceano.
O artigo é publicado por ((o))eco, 03-06-2024.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC 03/2022) que transfere os terrenos de marinha da União para ocupantes particulares, estados e municípios, volta a tramitar após anos de tentativas. As áreas em jogo são aquelas intituladas terrenos de marinha que, apesar do nome, não são geridas ou pertencem à Marinha do Brasil, mas são de responsabilidade da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), integrada ao Ministério da Economia. Estas porções de terra compreendem toda a região costeira do Brasil em uma faixa de 33 metros contados a partir da linha de preamar média do ano de 1831, considerando a costa marítima e as margens de rios e lagoas costeiras que sofrem influência das marés. Para além destes, existem também os terrenos acrescidos de marinha, que são aqueles ecossistemas formados em sequência dos terrenos de marinha (Decreto Lei 9.760/1946).
A proposta inicial de manter estas áreas protegidas visava garantir a segurança nacional contra possíveis conflitos. Atualmente, manter esses terrenos preservados e públicos ainda é essencial para garantir a segurança nacional, não mais devido ao risco de invasões, mas pelos riscos emergentes das mudanças climáticas. Com a aprovação da PEC 03/22, a SPU manteria apenas o domínio das áreas utilizadas pelo serviços público federal, das Unidades de Conservação federais e aquelas não ocupadas. Os estados e municípios teriam o domínio daquelas áreas utilizadas pelo serviço público, enquanto as propriedades apropriadas na região teriam o domínio transferido aos seus ocupantes após pagamento, configurando a compra do que antes era similar a um aluguel à SPU – conhecido como laudêmio.
Divulgação: Instagram | hector_cartunista
Segundo a SPU, existem hoje cerca de 2,9 milhões de imóveis situados nos terrenos de marinha, embora apenas 565 mil estejam cadastrados. Segundo a secretária-adjunta da SPU, Carolina Gabas, cadastrar todos estes 2,33 milhões de imóveis geraria verdadeiro caos administrativo. Em meio a este caos, a prática ilegal de falsificação de documentos para a apropriação indevida de terras públicas e privadas, ou seja, grilagem, seria a nova moda do litoral. Isso se daria porque, hoje, mais da metade da população brasileira (54,8%) vive a menos de 150 km da costa, conforme o último levantamento do IBGE. As regiões costeiras são ambientes ultra dinâmicos e versáteis, que permitem usos e ocupações variadas. O caráter descontraído e leve das praias faz do litoral o local ideal para moradia e novos empreendimentos, o que atrai especulação imobiliária para estes ambientes.
O poder especulativo é tão grande e voraz nos ecossistemas litorâneos, que existe uma outra proposta (Projeto de Lei nº 4444/2021) que tem como objetivo destinar 10% das orlas e praias marítimas, estuarinas, lacustres e fluviais para a privatização, definindo-as como Zonas Especiais de Uso Turístico. Isso equivaleria a 750 quilômetros de praias privatizadas no Brasil para uso exclusivo de empreendimentos turísticos, cedendo o litoral, que deveria ser um bem comum, aos interesses dos mais ricos.
De acordo com o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Art. 10 da Lei 7.661/88), as praias são bens públicos de uso comum e, portanto, não podem ser privatizadas. Hoje, mesmo que terrenos de marinha estejam ocupados, eles ainda pertencem à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), então o controle sobre o acesso às praias e o crescimento urbano é mantido, embora varie de cidade para cidade. A aprovação da PEC 03/2022 mudaria esse cenário, pois os ocupantes desses terrenos passariam a ter livre domínio sobre eles, o que poderia dificultar significativamente o acesso público às praias, como a construção de um caminho bem mais distante ou, em casos mais extremos e de difícil fiscalização, a proibição total do acesso.
Goleada contra Privatização das Praias:
— Carlos Minc (@minc_rj) June 3, 2024
Placar de agora no Senado:
NÃO- 142.536 votos
SIM- 1807 votos
Vamos seguir votando, postando, pressionando contra esta absurda PEC predatória e privatizante.
Domingo: manifestação em Ipanema, com performance+cartazes+associações+pescadores
Neste sentido, uma proposta que visa extinguir os terrenos de marinha e facilitar a privatização as praias dificilmente será vista com bons olhos pela população. No site do Senado Federal, na aba de Consulta Pública, a enquete sobre a aceitação popular da PEC 03/2022 já atingiu 100 mil votos contrários para menos de 1,5 mil favoráveis. Esse descontentamento popular é tão poderoso que, ao perceber a pressão social e a resistência dos órgãos públicos, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, suspendeu temporariamente a votação da proposta.
Caso aprovada, a privatização dos terrenos de marinha provocará sérios danos aos serviços ambientais prestados por esses ecossistemas, como a diminuição da barreira protetora formada pelas restingas, manguezais, dunas e falésias contra o avanço do mar. A diminuição da faixa de praia e esse avanço do mar caracterizam um processo geológico chamado de erosão costeira. Este é um problema frequente em 60% das praias brasileiras e 70% das praias do mundo, gerando prejuízos econômicos e sociais para os municípios, e sendo causado, em sua maioria, pela ocupação humana desenfreada destes ambientes. Para além da barreira protetora, a permeabilização do solo promovida por estes ecossistemas absorve a água das chuvas, abastece o lençol freático e previne os tão recorrentes alagamentos em centros urbanos.
Em um cenário alarmante de mudanças climáticas, eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes e intensos, como as recentes inundações no Rio Grande do Sul, que já vitimaram 171 pessoas e causaram um prejuízo econômico que ultrapassa os 10 bilhões de reais. Um artigo publicado em 2021, na revista Environmental Research Letters, demonstrou que o aumento do nível médio do mar causará inundações sem precedentes nas cidades costeiras e deixará 1 bilhão de pessoas, que vivem nessas áreas, em risco. Não apenas manter, mas também incentivar e facilitar a ocupação em regiões extremamente próximas do mar representa um retrocesso nas políticas públicas de adaptação e mitigação às mudanças climáticas. Isso vai na contramão das discussões e diretrizes globais, como as que ocorrem nas Conferências das Partes (COPs).
A privatização dos terrenos de marinha, na prática, reflete a escolha dos políticos brasileiros em favorecer o setor turístico e imobiliário, deixando outros setores, incluindo os pequenos empreendedores do turismo, à mercê da boa vontade de grandes empresários. Essa medida beneficia apenas alguns, gerando lucros para poucos e prejuízos incalculáveis para a maioria.
Apesar da suspensão da votação, a PEC 03/2022 pode ser votada a qualquer momento. Por isso, é fundamental que a população se mantenha vigilante, engajada e firme em sua posição contrária à privatização dos terrenos de marinha. A consulta pública ainda está disponível no site do Senado Federal e é uma ferramenta importante de demonstração da opinião popular.
Audiência Pública da PEC 03/22 – Disponível aqui.
Texto completo da PEC 03/22 – Disponível aqui.
Consulta Pública da PEC 03/22 – Disponível aqui.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Privatizar os terrenos de marinha é a gota d’água. Artigo de Monique Torres de Queiroz, Eduarda Antunes Moreira, Tássia Biazon, Rede Ressoa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU