O leilão das areias. Crônica de Marcelo Zanotti

Quem diria que a brisa marinha e o som das ondas tinham preço?

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Marcelo Zanotti | 04 Junho 2024

"Mas a lição estava dada: as praias brasileiras são do povo, e assim devem continuar. Porque, no fim das contas, é nas areias e no mar que a gente encontra a verdadeira alma do Brasil. E essa, meus caros, não está à venda", escreve Marcelo Zanotti, historiador e membro da equipe do IHU.

Eis a crônica.

Era uma vez, num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, onde o mar era generoso e as praias de uma beleza indescritível, que o governo resolveu colocar tudo isso à venda. Parece piada, mas é verdade: as praias brasileiras, patrimônio do povo, agora iam a leilão. Quem diria que a brisa marinha e o som das ondas tinham preço?

Aconteceu numa tarde qualquer, dessas que só o Rio de Janeiro sabe oferecer, com o sol pintando o céu de tons laranja e roxo. A notícia caiu como uma bomba nas rodas de chope e nas esquinas de Copacabana: "O governo vai vender as praias!" Alguém comentou no botequim: "Só pode ser invenção do Stanislaw Ponte Preta!", mas não era não. A coisa era séria e já estava publicada no Diário Oficial.

Fui investigar. Me disseram que no Palácio do Planalto, os burocratas, engravatados até o pescoço, discutiam animadamente os lances iniciais. Cada praia tinha seu preço, desde a mais modesta até a famosa Ipanema. Imagine só, a garota de Ipanema agora com preço de etiqueta!

O argumento oficial era que a venda traria "desenvolvimento" e "modernização". Mas a modernização a qual se referiam incluía resorts, marinas de luxo, e claro, aquele infalível shopping center. Imagine a cena: você passeando na areia e de repente, vê um quiosque vendendo celulares. É o apocalipse do veraneio.

Ao falar com Dona Maria, peixeira antiga da Praia do Futuro, em Fortaleza, ouvi a indignação que representava o povo brasileiro: "Vender nossas praias? Estão malucos! Essas areias são do povo, sempre foram!". E assim era, de Norte a Sul, o sentimento de perda. Era como vender a alma do Brasil.

Em Copacabana, Seu Joaquim, vendedor de biscoito de polvilho, não conteve a revolta: "Esses engravatados não sabem o que é a vida na praia. Nunca venderam um mate gelado na orla, nunca suaram sob o sol escaldante. Eles não entendem que a praia é nossa, do povão. É onde a gente relaxa, se diverte, é nosso quintal!".

A indignação não era apenas dos vendedores ambulantes. Dona Berta, aposentada, que há 40 anos faz sua caminhada matinal na Praia de Boa Viagem, em Recife, também estava perplexa: "Depois de uma vida inteira de trabalho, é aqui que eu encontro paz. E agora querem me tirar isso?".

Não demorou muito para que a notícia atravessasse o oceano. Os gringos adoraram a ideia. Afinal, quem não gostaria de ter uma praia particular em pleno Brasil? Começaram a chegar os investidores internacionais, com seus ternos bem cortados e propostas milionárias. Eram magnatas russos, sheiks árabes, empresários chineses. Parecia até desfile da ONU.

Enquanto isso, o povo brasileiro se perguntava: e nós, onde ficamos? As praias sempre foram o refúgio dos pobres, o local onde não importa se você tem dinheiro ou não, você é bem-vindo. Mas agora, até isso estavam tirando.

Fui até Brasília, tentar entender a lógica desse absurdo. No caminho, o motorista de táxi, Seu Manuel, me deu uma lição de filosofia popular: "Sabe, doutor, esses políticos não sabem o valor de um fim de tarde na praia. Eles estão mais preocupados com cifras do que com gente. Para eles, tudo tem preço".

Na capital, fui recebido por um assessor do ministério, um jovem ambicioso que tentou me convencer das maravilhas do projeto. "Vamos trazer progresso e investimentos ao país", ele dizia. "As praias vão ser valorizadas, bem cuidadas". Mas a verdade era outra. Por trás das palavras bonitas, o que se via era ganância. O dinheiro falava mais alto que a preservação da cultura e do meio ambiente.

Em Salvador, a situação era ainda mais surreal. A Praia do Porto da Barra, onde tantos soteropolitanos aprenderam a nadar, já tinha uma placa de "Propriedade Privada". Ali, vi um segurança uniformizado barrando a entrada de um grupo de crianças. "Sem convite, não pode entrar", ele dizia. Convite? Desde quando a praia precisava de convite?

Aos poucos, a resistência começou a se formar. Movimentos populares, ONGs, ambientalistas e gente comum, como Dona Maria, Seu Joaquim e Dona Berta, uniram forças. Era preciso lutar pela preservação do que era de todos. Surgiram protestos, manifestações e, claro, muita confusão.

O ápice da revolta popular foi numa tarde de domingo, em plena Praia de Copacabana. O povo, em massa, ocupou a orla. Eram milhares, de todas as idades e classes sociais, unidos por um só propósito: a defesa das praias. Com cartazes, faixas e muita disposição, deixaram claro que não aceitariam a venda do seu patrimônio.

E foi aí que o governo percebeu que havia subestimado a força do povo. Não eram apenas praias que estavam em jogo, mas a identidade de uma nação. A pressão foi tanta que, finalmente, as autoridades começaram a recuar. Anunciaram a suspensão dos leilões e a revisão do projeto.

Mas a lição estava dada: as praias brasileiras são do povo, e assim devem continuar. Porque, no fim das contas, é nas areias e no mar que a gente encontra a verdadeira alma do Brasil. E essa, meus caros, não está à venda.

O Pós-Leilão: Reflexões e Consequências

Após a suspensão dos leilões, o país inteiro entrou em um período de reflexão. A sociedade questionou não apenas a tentativa de vender as praias, mas a mentalidade por trás de tal decisão. Em conversas de bar, programas de rádio e debates acadêmicos, todos tentavam entender como chegamos a esse ponto.

Dona Maria voltou a vender seus peixes com um sorriso no rosto, mas não sem antes desabafar: "Foi um susto danado, mas serviu pra gente acordar. A praia é nossa, e ninguém pode tirar isso da gente". E assim, nas pequenas histórias cotidianas, o povo redescobria o valor de seu patrimônio natural.

Em São Paulo, longe das praias mas perto do coração do problema, acadêmicos e ativistas começaram a se organizar para garantir que algo assim nunca mais acontecesse. Surgiram campanhas de conscientização sobre a importância da preservação ambiental e do acesso público aos espaços naturais. "A praia é um direito, não uma mercadoria", diziam os cartazes nas universidades.

As escolas também entraram na luta. Professores dedicaram aulas inteiras para falar sobre a história das praias brasileiras, sua importância ecológica e cultural. As crianças, antes talvez alheias ao problema, começaram a entender que a natureza é um bem coletivo. No pátio da Escola Municipal de Paraty, alunos pintaram um enorme mural com a frase: "Nossa Praia, Nosso Lar".

E o governo? Bem, o governo, sentindo a pressão popular, começou a adotar uma postura mais cautelosa. Iniciaram programas de revalorização das praias, focando na sustentabilidade e no turismo responsável. A venda das praias não aconteceu, mas a tentativa deixou marcas profundas. Os políticos aprenderam que o povo brasileiro não entrega seus tesouros naturais sem lutar.

Enquanto isso, as praias, nossas velhas companheiras, continuaram a testemunhar as histórias de amor, as brincadeiras de criança e os sonhos de um país que aprendeu a valorizar o que tem. Nas noites estreladas, os banhistas deitados na areia podiam finalmente relaxar, sabendo que aquela paisagem deslumbrante continuaria a ser deles, para sempre.

No final das contas, o episódio serviu para lembrar a todos nós que a beleza natural do Brasil é um bem inestimável, que deve ser protegido e celebrado. E que, acima de tudo, as praias são do povo. Porque, como disse Seu Joaquim, "a praia é nosso quintal". E quintal de casa, meus amigos, a gente não vende.

Epílogo: A Praia Viva

Anos se passaram desde a tentativa de venda das praias, mas a memória do episódio continuou viva na consciência coletiva. O Brasil se viu mais unido, mais consciente e mais protetor de suas riquezas naturais. As praias não apenas continuaram abertas e acessíveis ao público, mas passaram a ser cuidadas com ainda mais zelo.

O que era para ser uma tragédia ecológica e social, se transformou em um catalisador para mudanças positivas. O turismo sustentável ganhou força, e iniciativas locais floresceram, mostrando que é possível aproveitar a beleza natural sem destruí-la. Projetos comunitários de limpeza de praias, educação ambiental e proteção da fauna marinha se multiplicaram ao longo da costa.

As histórias de Dona Maria, Seu Joaquim e Dona Berta se tornaram símbolos de resistência e amor pela natureza. Seus rostos estampavam murais e suas vozes ecoavam em documentários que contavam a saga do povo brasileiro na defesa de suas praias.

E assim, o Brasil seguiu em frente, com suas praias livres, belas e cheias de vida. Porque, no final das contas, o mar é de todos, e a praia é do povo. E isso, meus caros, nenhuma etiqueta de preço pode mudar.

Leia mais