24 Mai 2024
"A paz não é apenas um fim em si mesma. É também a condição para um diálogo entre as grandes potências em relação aos muitos outros desafios globais que ameaçam a humanidade: do aquecimento climáticas ao crescimento das desigualdades e da pobreza, da exploração do trabalho à tragédia dos migrantes. Essas catástrofes só podem ser impedidas pela construção de uma esfera pública global e de instituições e de garantia à sua altura, que adviriam da estipulação de uma Constituição da Terra", escreve Luigi Ferrajoli, jurista italiano em artigo publicado por “Il Manifesto”, 22-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Europa está negando a si mesma. A União Europeia nasceu de dois fundamentos: igualdade e paz: para pôr fim aos racismos, aos campos de concentração e, sobretudo, às guerras. Ambos os fundamentos estão desparecendo hoje. Essa é a perspectiva que deveria estar presente, mas que está totalmente ausente na atual campanha para as eleições europeias.
Em primeiro lugar, igualdade. A desigualdade está aumentando em toda a Europa e especialmente na Itália, onde a pobreza absoluta triplicou nos últimos quinze anos, enquanto mais do que duplicou número de bilionários. Mas são as leis de imigração – as atuais leis racistas – que estão mostrando o ressurgimento na Europa de uma antropologia da desigualdade, alimentada por perversas obsessões nacionalistas e identitárias.
A Europa tem uma enorme dívida para com o resto da humanidade. Durante séculos, precisamente em nome de direito de emigrar reivindicado por ela como fundamento das suas conquistas e colonizações, os Estados europeus invadiram, ocuparam, dominaram, depredaram e exploraram grande parte dos países do mundo.
Hoje a assimetria se inverteu e são os desesperados da terra que fogem daqueles mesmos países reduzido à miséria, o exercício daquele direito se transmutou em crime. Militarização das fronteiras, penalização dos resgates no mar, apreensão de migrantes até que ocorra a sua repatriação ou aceitação dos pedidos de asilo, blindaram a fortaleza Europa, onde reapareceu a figura da “pessoa ilegal”, clandestina ou detida unicamente por razões de nascimento.
Devido ao apartheid dos pobres do planeta, o gênero humano é dividido em dois: uma humanidade que viaja livremente pelo mundo, a turismo ou a negócios, e a humanidade dos submersos e dos excluídos, forçados pela miséria e pela fome a terríveis odisseias, arriscando até a vida na tentativa de chegar na Europa, onde são destinados a detenções ilegítimas ou a explorações como não-pessoas.
O outro valor fundador da Europa, a paz, desapareceu do horizonte das políticas europeias, justamente naquele que talvez seja o momento mais dramático da história humana. Com incrível facilidade e irresponsabilidade, os governantes europeus estão falando há meses sobre uma possível guerra entre a OTAN e a Rússia, que obviamente correria o risco de degenerar num conflito nuclear e a devastação de todo o continente. Nesse interim, a ONU está manifestando toda a sua impotência, não conseguindo sequer obter um cessar fogo e o fim do massacre desumano na desgraçada Faixa de Gaza. Além disso, está crescendo na Europa um clima de guerra venenoso marcado pela intolerância sectária dos governos e de grande parte da mídia por qualquer opção pacifista.
Está se brincando com o fogo. Todo o Conselho Europeu dois meses atrás concordou com a necessidade derrotar a Rússia e, em vista uma guerra, aumentar os gastos militares e os armamentos, como se os existentes não fossem suficientes para destruir diversas vezes o gênero humano.
Diante dessa loucura, a Constituinte Terra organizou, para quinta-feira, 23 de maio, na Universidade de Roma Tre, uma conferência dedicada à paz, à qual o Papa Francisco enviou uma belíssima mensagem publicada abaixo. Para tal fim, discutiremos sobre a necessidade de estipular as garantias da paz, hoje absolutamente ausentes.
Essas garantias não podem limitar-se aos tantos tratados de não-proliferação nuclear, sistematicamente violados ou não implementados. É necessária uma refundação da Carta da ONU que estabeleça, no interesse de todos, o desarmamento total dos Estados, a proibição das armas, não só aquelas nucleares, mas de todas as armas de fogo, e a abolição de todos os exércitos nacionais, almejado por Kant há mais de dois séculos.
Parece uma utopia, mas é a única hipótese realista e racional, literalmente no interesse de todos.
Exércitos e aparatos militar-industriais, como declarou Eisenhower no fim de seu mandato presidencial, são a ameaça constante e mortal à democracia e à paz. Por isso a produção, o comércio e a posse de armas deveriam ser previstas como crimes. Mas para tal fim deveria crescer, no senso comum, o banal reconhecimento de uma corresponsabilidade moral, em toda guerra e em todo assassínio, das grandes empresas fabricantes de armas. Já que é por esses produtores de morte que são armados exércitos, associações criminosas, bandos terroristas e assassinos.
Por outro lado, a paz não é apenas um fim em si mesma. É também a condição para um diálogo entre as grandes potências em relação aos muitos outros desafios globais que ameaçam a humanidade: do aquecimento climáticas ao crescimento das desigualdades e da pobreza, da exploração do trabalho à tragédia dos migrantes. Essas catástrofes só podem ser impedidas pela construção de uma esfera pública global e de instituições e de garantia à sua altura, que adviriam da estipulação de uma Constituição da Terra.
Mas é apenas num clima de paz que pode amadurecer a consciência da existência de perigos comuns a todos, que exigem o acordo de todos para as respostas globais e comuns, no interesse de todos, incluindo os poderosos, para a convivência e para a sobrevivência.
A conferência “O problema da guerra e os caminhos da paz” acontecerá na quinta-feira, 23 de maio de 2024, às 09h30, no Departamento de Jurisprudência (Sala 5) da Universidade Roma Tre.
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Igualdade e paz, assim a Europa renega a si mesma. Artigo de Luigi Ferrajoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU