21 Mai 2024
Dois livros quase simultâneos do psicanalista Jorge Alemán (Buenos Aires, 1951) propõem, por um lado, repensar o método criado por Freud (Breviario político de psicoanálisis) e recapacitar o território em que os outros e eu mesmo se encontram (Soledad: común), ambos publicados pela Editora NED. Assuntos como amor, vínculos, afetos, projeto comunitário e identidade comparecem em páginas nas quais, apesar da intensidade de seu discurso, são lidos com fruição.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ctxt, 17-05-2024. A tradução é do Cepat.
Por que, como afirma a certa altura de Breviário, o trabalho da psicanálise chegou ao fim? Não há mais nada a dizer?
Isto se situa numa ideia mais abrangente: como se pensa, escreve e fala após o culminar de determinadas experiências ocorridas em diferentes campos. Certamente é nisso que ressoa a experiência do século XX quando se fala do fim da filosofia; na verdade, Heidegger escreve O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, o que significa que há um suplemento que já não entra ou não faz parte da história da filosofia. O que quero dizer em relação à sua pergunta é que não se trata de que primeiro veio Freud, depois Lacan e depois outra pessoa. Não há outra pessoa. Nem mesmo Miller, discípulo de Lacan. Não. A série terminou. Depois desses dois nomes, há muitas maneiras de compreender a psicanálise, um princípio de variação muito interessante, se estivermos abertos a ele. A psicanálise tem que dizer sempre e quando se encarregar do fim e se propuser um outro começo.
Heidegger comparece ao Breviário repetidas vezes. A linguagem é para ele o que Deus é para um fiel?
Sim, sem dúvida. Para Heidegger, a linguagem é o acontecimento, entendido não como um acontecimento disruptivo mas, e isto é tirado das suas leituras de Santo Tomás e Santo Agostinho, como algo que não pode ser situado cronologicamente, mas a partir do qual a vida já foi diferente. Para Heidegger não há vida diferente se não houver relação com a língua e, em última instância ou em definitiva, essa relação com a língua tem na poesia sua matriz; a poesia não como gênero literário, mas como substrato de todas as artes. Heidegger nunca quis introduzir a fé em sua filosofia, sua fé é baseada na língua. Digo “a língua”, não a linguagem, porque a linguagem é uma especulação teórica, como a linguística, e em Heidegger aparece a língua materna e o que ele faz ao procurar algumas palavras não respeita as regras filológicas. Sim, se tivesse que situar a religião de Heidegger, seria a língua.
Como ler Heidegger conhecendo sua biografia?
Usando uma questão que vem do próprio ensino da psicanálise: um sujeito nunca é idêntico a si mesmo. O Heidegger do nacional-socialismo é provavelmente o do discurso de posse como reitor da Universidade de Friburgo em Brisgau, mas é muito difícil encontrá-lo nas suas obras, não se pode vincular a obra de Heidegger com o nacional-socialismo. Ser e Tempo, obra-prima absoluta, remete à subversão do sujeito cartesiano e é muito anti-hierárquica. Cada autor é atravessado por coisas que o ultrapassam.
Será o amor a única forma de resistência ao capitalismo ou acabará por degradá-lo, como tudo o que toca?
Parece que o capitalismo tem muitas capacidades nos seus dispositivos para degradar o amor; agora, procuro me afastar, ao longo dos textos, dessa tendência historicista onde, uma vez descrito o poder atual do capitalismo, ele é representado como algo que tomou conta de tudo e, portanto, nada mais somos do que seu resultado, marionetes que cresceram e foram produzidas pelos dispositivos do capitalismo. Esta é uma corrente que se desenvolve muito fortemente na esquerda, onde se fala das diferentes mutações antropológicas que ocorreram em decorrência de como o neoliberalismo ou o capitalismo financeiro ou o tecnoceno ou o antropoceno ou a importância...
De chamar-se Ernesto... desculpa, digo isso por hesitar um pouco...
Assim é... penso que há sempre algo na própria constituição do sujeito que não é a mesma coisa que a produção de subjetividade e que é da ordem ontológica, não histórica, e que está presente porque é constitutiva do ser falante na Grécia, em Roma, Bizâncio, na Modernidade, na Europa... e que não é produzida pelo capitalismo. Ou seja, acredito que a língua chega um milésimo de segundo antes à constituição do sujeito do que o poder, e entre essas coisas está o amor. Uma das grandes batalhas do capitalismo é apropriar-se dele, sob esta forma de sentimentalismo bruto, acompanhado por todo o exército de autoajuda.
O capitalismo quer apropriar-se do amor como um afeto que poderia estar ligado à felicidade, a ser a melhor versão de si mesmo, à resiliência... todas essas palavras que fazem parte do campo do inimigo. O amor é a experiência da impossibilidade, por isso o capitalismo não consegue apropriar-se totalmente dele, porque o capitalismo tenta tornar tudo possível e que o que não é possível hoje será possível amanhã, e se não for, talvez seja porque você não se desenvolveu o suficiente. O amor é um complemento dessa impossibilidade e, seja qual for o seu resultado, deve ser transitado, porque o amor é também uma experiência com a verdade, com a verdade dessa impossibilidade.
Estou muito interessada nesta sua proposta de que para amar a si é preciso primeiro amar o outro.
Na minha juventude foi muito importante Erich Fromm e todos os seus derivados, que se perguntava como amar o outro se você não se ama primeiro; isso tem sido desastroso. Não se sabe nada sobre o que pode ser amar a si mesmo, a menos que realmente se tenha essa experiência de sentir amor por outra pessoa, e quando se sente amor por outra pessoa, talvez descubra que precisa encontrar uma posição a partir da qual sustentar esse amor pelo outro e, portanto, ter um certo cuidado, inclusive um cuidado de si. Mas sempre, o que está na frente de tudo isso, o que comanda isso é o amor ao outro, que é o núcleo do mistério.
Não há nada que torne o outro amável, em princípio, a menos que entendamos o amor pelo outro como uma mera extensão do narcisismo, como um amor no espelho, onde amamos no outro o que o outro tem de nós. O amor não regido pelo ideal nem pelo narcisismo, mas por aquilo que algo da presença do outro despertou em mim parece-me ser a primeira condição da experiência amorosa. Amar-se a si mesmo é um erro, outro dos erros que a cultura moderna cometeu em relação aos fundamentos do individualismo.
E que papel o acaso desempenha em nós?
Vamos lá... para mim, tudo o que é importante na vida chega por acaso, mas o acaso leva tempo para se preparar, porque uma coisa é o que chega por acaso, e outra são as causas, que nunca se entende bem como foram; além disso, as causas, como diz Lacan, estão sempre ausentes ou são cambaleantes. Não se sabe por que apareceu para alguém ou alguma coisa, por que apareceu uma revelação, um ser, um poema, isso é contingente e é o acaso.
Há uma ferida que é primordial, que não é acaso; nascemos feridos, fraturados, numa relação de dependência, expropriados, mas depois o acaso faz com que essa ferida seja destinada a alguma coisa, a encontrar um eco. Agora, o que acontece é que depois que esse acaso aconteceu, nunca se encontrará retroativamente a causa última, mas se pode intuir caminhos que levaram para que isso se tornasse possível. Por que alguém se apaixona por outra pessoa? Por acaso, mas certamente nesse mesmo acaso é possível encontrar diferentes formas que permitem, nunca completamente, saber o que tornou possível esse encontro.
Até que ponto o inconsciente, que é regido pelas suas leis específicas (sintomas e fantasmas), pode ser condicionado pela produção, como aponta Franco Berardi, o ‘Bifo’?
Penso que não está certo. Ele mesmo fala do inconsciente, e se existe inconsciente significa dizer que há repressão, áreas que escapam à consciência e emergem no sujeito. Não devemos confundir o inconsciente com a sociologia. É verdade que se poderia dizer que temos, sei lá, o Tinder, e que o sujeito moderno não presta atenção em nada... mas quando alguém está ouvindo, o sujeito sempre fala como um filho, não importa a idade que tiver, sempre falará de um pai e de uma mãe. Apesar de Bifo.
É a mais-valia da informação mais nociva ao sujeito (o trabalhador, para seguir a terminologia marxista) do que a mais-valia de que falou Marx?
De acordo com o próprio Marx, sim. Havia um otimismo em Marx quando pensava que o sujeito de quem a mais-valia era expropriada, se conseguisse passar da consciência em si à consciência para si – a marca hegeliana de Marx –, descobriria o seu lugar nas relações sociais de produção. Mas a mais-valia da informação é mais nociva porque o sujeito está produzindo mais-valia e não sabe disso; ou seja, um sujeito preenche um formulário e está trabalhando para produzir uma mercadoria sem ter consciência disso. Portanto, produz mais-valia e ninguém o paga por isso. Neste aspecto, o capitalismo deu um passo importante, porque cada gesto que fazemos produz informação, uma das mercadorias mais valiosas no regime de circulação do capitalismo atual.
Qual é o papel que o mal desempenha, como categoria pulsional, nesta sociedade?
O mal é quase um problema teológico. Já sabemos que existem prazeres sádicos, mas o que podemos chamar de mal? Desfrutar sadicamente o sofrimento do outro? Utilizo “mal” quando se produz essa vontade sádica de forma organizada e com o único fundamento de se realizar como tal, sem outras razões (econômicas, sociológicas, políticas, etc.). A única coisa que quer é tentar extinguir tudo o que poderia ser sagrado no ser humano. Considero isso “mal”. O nacional-socialismo ou a ditadura argentina podem ser justificadas com muitas razões, mas certas coisas que aconteceram só podem ser compreendidas por uma vontade de transformar o humano em lixo, e essa vontade de transformar o humano em algo que não responde mais à categoria do humano é o mal.
Soledad común parece, antes de tudo, um oxímoro, mas nomeia Jorge Alemán...
Sim, concordo, me nomeia porque realmente sempre tive muitas experiências relacionadas à solidão, mas me rebelo contra a ideia, muito freudiana, de que cada vez que se intervém em algo coletivo existe a ideia da psicologia das massas, perde-se todos os tipos de racionalidade e há um declínio intelectual. Acredito que existem experiências coletivas onde a própria diferença irredutível, que é solitária por definição (ao falar, morrer e tornar-se sexual não há outra possibilidade senão a da solidão, uma solidão radical), não só não é sufocada, apagada, mas encontra a sua potência máxima, como se o que nos diferencia só encontrasse a sua grande realização na igualdade (algo impossível de pensar, por outro lado).
Uma coisa são as diferenças insignificantes (o bairro onde moramos, o país onde nascemos, etc.) e outra é a grande diferença, que só apareceria num mundo igualitário, depois apareceria a tragédia, a loucura, os amargos, aqueles que não querem viver, aqueles que querem viver. Sempre gostei muito da frase de Trotsky que diz: “a arte socialista renovará a tragédia”.
O momento comum tem que ser, por definição, não hierárquico e não estar articulado numa identidade. Ou, em outras palavras, como chegar à intersecção entre a singularidade mais radical e a matriz mais comum?
Existe o copertencimento mútuo de ambas as coisas; o momento comum nunca é o momento público nem o momento coletivo, mas a sua pré-condição. No momento comum estão situadas as singularidades que se cruzaram e se encontraram, cada uma das quais não está referenciada a si mesma, mas aberta ao outro. Esse momento ocorreu nas revoluções, mesmo tendo havido um resultado de terror, como na revolução russa, chinesa ou cubana. O comum não foi completamente capturado pela trama burocrática que mais tarde procurou subjugá-lo.
Entre a solidão comum e a psicologia de massas, o que está em jogo?
Uma coisa que nunca resolvemos: a possibilidade de nos mantermos em uma experiência coletiva que não degenere em uma psicologia de massas. Há sempre um momento coletivo que é brilhante, instituinte, disruptivo, porque cria um antes e um depois, um acontecimento, e aí vem a hora de traduzi-lo politicamente e a hora de analisá-lo e institucionalizá-lo. Pouco depois vem a psicologia de massas, o líder, os fiéis, os que se desviam da norma, as depurações...
Sempre me propus não que os lacanianos nas escolas se tornassem de esquerda, mas levar Lacan à esquerda, oferecer condições para pensar este tipo de coisas porque, mais cedo ou mais tarde, se a esquerda não encarar a forma como o ser humano é feito, irá se encontrar repetidamente com que se agrupe no narcisismo das pequenas diferenças ou, como se costuma dizer vulgarmente, se agrupe em torno da luta entre os egos.
Chegou a hora em que as transformações não são aquelas que apontam apenas para o social mas para si mesmo; sem uma transformação dos sujeitos não haverá experiências coletivas que possam continuar a ser chamadas de transformadoras ou que estejam vinculadas a projetos de emancipação. O grande desafio da solidão comum é a permanência, não matar tudo o que aconteceu no encontro, mas habitar a permanência para que o encontro continue palpitando.
O nós sempre tem como referência última um fundamento imaginário? É bom que seja assim?
É bom e não é bom; é bom no sentido de que este “nós” tem que ter um poder de convocação, e se o 8M existe, precisa haver um mínimo de identidade que o uma. Não me oponho a isso, o que procuro não esquecer é que esta identidade, que tem sido um instrumento de convocação e que nos une, não esgota as possibilidades nem pode ser o elemento que depois rege tudo o que vai acontecer no projeto. Do contrário, tudo se traduz em confrontos de poder, e o narcisismo é muito mais perigoso do que parece.
Freud era mais poeta do que Lacan?
Que pergunta, querida... Os dois compreenderam que sem a poesia não teriam dado um único passo importante na elucidação do inconsciente, mas quem verdadeiramente aspirava a ser poeta, e que chegou a dizer de si mesmo “não sou suficientemente poeta, mas sou um poema” foi Lacan.
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“O amor é a experiência da impossibilidade, e é por isso que o capitalismo não consegue apropriar-se totalmente dele”. Entrevista com Jorge Alemán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU