“Lacan antecipou a dominação do capitalismo no mundo”, afirma o psicanalista Jacques-Alain Miller

Jacques Lacan. Foto: Reprodução Jornal da USP

10 Agosto 2022

 

Na data em que se cumprirá 40 anos da morte Jacques Lacan (ocorrida em 09 de setembro de 1981), o prestigioso psicanalista francês Jacques-Alain Miller e sua colega argentina Alejandra Glaze decidiram empreender uma tarefa tão rigorosa quanto apaixonante: um livro que preste homenagem e, ao mesmo tempo, sirva como contribuição epistêmica ao olhar sobre Jacques Lacan no mundo hispânico. O resultado é “Lacan hispano”, uma obra de mais de 500 páginas organizada por Miller e Glaze, diretora da Grama Ediciones. Mais de 70 analistas da Associação Mundial de Psicanálise ou ligados a esta instituição – cada um com sua perspectiva – permitem entender que a Argentina, Espanha e Venezuela funcionaram como as portas de entradas da orientação lacaniana no mundo hispânico. Simultaneamente, mencionam as marcas que o encontro com a obra de Lacan produziu neles e nelas, e recordam de Judith Miller (falecida em 2017), a terceira filha de Jacques Lacan e ex-esposa de Alain Miller, que dedicou sua vida à difusão e proteção da obra psicanalítica de seu pai.

 

Nesta entrevista, Jacques-Alain Miller, o psicanalista contemporâneo mais importante a nível mundial explica como a publicação permite entender a importância do ensino de Lacan nos países de língua espanhola, fala da influência de Lacan na América Latina, não deixa de recordar da figura essencial de Oscar Masotta e também observa como podem se ler, em chave política, os ensinamentos do grande psiquiatra e psicanalista francês.

 

Jacques-Alain Miller é discípulo de Jean-Paul Sartre, Jacques Lacan, Roland Barthes e Louis Althusser. Referência da psicanálise contemporânea, Jacques-Alain Miller é o analista contemporâneo mais importante a nível mundial. Pelo seu rigoroso trabalho ao longo de muitas décadas, tanto no consultório como no âmbito da pesquisa, é uma voz lúcida e criador de teoria sobre a linha.

 

Miller começou seus estudos juntos a Jean-Paul Sartre, a quem conheceu aos 16 anos, depois ingresso na Escola Normal Superior de Paris onde, em 1964, conheceu Jacques Lacan. Assistiu a seminários de Roland Barthes na École Pratique de Hautes Études. Foi discípulo de Louis Althusser, junto a Jacques Rancière e Étienne Balibar. Motivado por Althusser a estudar a obra completa de Lacan, estabeleceu uma relação próxima com o psicanalista e casou-se com sua filha Judith.

 

É autor de diversas obras, como “O osso de uma análise: Mais o inconsciente e o corpo falante” (Ed. Zahar, 2015); “Punto cénit. Política, religión y el psicoanálisis” (2012); “Un comienzo en la vida. De Sartre a Lacan” (2003); “El deseo de Lacan” (1997); “Política lacaniana” (1999); dentre outras.

 

A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página/12, 08-08-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

O objetivo do livro é explicar a transmissão da psicanálise lacaniana no mundo, especialmente mundo hispânico?

 

Eu não diria assim porque a transmissão no mundo foi considerada em outro nível: o nível das instituições que criei e que cobrem boa parte do mundo. Não vou dizer “todos” porque faltam países. Mas na América Latina e na Europa existem sete escolas e a transmissão passa essencialmente por elas. Para mim, há uma distinção entre o tipo de trabalho institucional que as escolas servem. Direi algo mais sobre a palavra “transmissão” com uma anedota. Certa vez, houve um Congresso da Escola Freudiana em Paris, que foi fundada por Lacan. Ele duvidava do título deste Congresso. A ideia era falar sobre o futuro da psicanálise.

 

Em conversa particular, eu lhe disse: “Se você é pessimista, vamos dizer ‘tradição’; isto é, construir sobre o passado e continuar no futuro. Se você estiver otimista, escolheremos a palavra ‘transmissão’”. Lacan deixou a “transmissão”. Assim foi realizado o Congresso e, ao final, para surpresa geral, depois de dois dias falando sobre transmissão, Lacan disse: “Não há transmissão de psicanálise. O que existe é um a um: cada um deve reinventar a psicanálise por conta própria”. Meu comentário é o seguinte: se você pensa em pintura quando se diz, por exemplo, que Goya e Picasso reinventaram a pintura, isso significa conhecer muito bem a tradição da pintura, os pintores anteriores. E é nestas bases que se pode reinventar a disciplina. Na minha opinião, é a mesma coisa: é preciso conhecer muito bem a história da psicanálise, as controvérsias que havia na psicanálise, para poder reinventá-la com seus próprios meios.

 

Mais de setenta analistas escrevem no livro, com diferentes perspectivas. Se você tivesse que dizer qual é o fio que os une, qual seria a visão hispânica de Jacques Lacan?

 

Não há fio. É o mérito deste volume. Ter um fio seria amarrar os autores. Em vez disso, deixamos cada um reinventar sua contribuição por conta própria. De tal forma que não posso dar-lhe um resumo do volume. É um livro da vontade de Alejandra Glaze e eu, um volume de um encontro de autores dispersos. E eles não dizem necessariamente a mesma coisa ou têm o mesmo ângulo, a mesma perspectiva.

 

Você acha que a presença de Lacan em Caracas em 1980 marcou um ponto de virada para a psicanálise de língua espanhola? É possível falar, então, de um Lacan hispânico?

 

Sim, Caracas 80 foi uma ruptura na história da psicanálise de língua espanhola. Mas é um corte après-coup do corte inicial que era de Oscar Masotta. Como se sabe, Oscar Masotta era crítico literário, crítico de pintura, mas conheceu um famoso psicanalista na Argentina: Enrique Pichon-Rivière. Os anos 1950 foram tempos em que Lacan não havia publicado um livro sobre psicanálise, nenhum. E para conhecê-lo era preciso ler artigos em revistas especializadas. E Pichon-Rivière tinha aquelas revistas psicanalíticas com artigos porque acho que ele era assinante dessas revistas. E esses primeiros artigos de Lacan tornaram Masotta conhecido. A primeira vez que Masotta citou Lacan foi em um artigo sobre Sartre em 1960. Foi a primeira vez. Tenho a informação de um artigo que Germán García publicou no Página/12. E a partir disso, Masotta começou a difundir Lacan na cidade de Buenos Aires e a interessar cada vez mais pessoas, como psicólogos que não podiam ingressar na Sociedade Internacional naquela época porque esta sociedade exigia um diploma de médico. Os psicólogos eram leitores de Masotta, mas também havia sociólogos, linguistas, filósofos, médicos e escritores. Um público amplo e diversificado que cresceu gradativamente até que Masotta sentiu que poderia criar uma escola.

 

E ele fez isso em 1974...

 

Ele o tornou conhecido na França. Depois de ter criado a escola, Masotta teve que ir para Barcelona no ano seguinte por motivos políticos e morreu pouco depois, antes de completar 50 anos. É incrível o quanto ele conseguiu em tão pouco tempo. De tal forma que em Caracas 1980 o que aconteceu foi que o Lacan hispânico, criado por Masotta, encontrou o Lacan francês. Ele encontrou a pessoa de Lacan. Esse foi o choque para os latinos. Houve também um choque para os franceses quando descobriram que havia uma difusão de Lacan ali, totalmente independente deles e que a teoria de Lacan era conhecida na Argentina e em outros países. Essa reunião deveria ter sido em Buenos Aires, mas como os militares estavam no poder na Argentina, decidimos realizá-la em Caracas. Por isso foi realizado em Caracas, mas já se sabia que o centro de divulgação e da obra de Lacan era Buenos Aires.

 

Como você se lembra do fato de que com você foi inaugurada uma experiência de Escolas além da França?

 

O que havia de novo em Caracas 80 e nos anos que se seguiram imediatamente foi que argentinos e outros latinos conheciam a teoria de Lacan, mas não tinham a experiência viva de uma análise guiada pela teoria de Lacan. Havia sido analisado por um grupo com o objetivo de traduzir a teoria na prática, porém o grupo não tinha a experiência. E isso começou a partir de Caracas; isso é, primeiro um pequeno número de analistas argentinos pediram análises com franceses. Depois, isso mudou fundamentalmente a situação porque eles próprios tiveram pacientes com os quais podiam praticar no sentido lacaniano. E agora há uma proximidade muito grande entre a prática francesa e a prática argentina. Digo proximidade, mas é cada um por si. Porém, nos reconhecemos totalmente uns nos outros como alunos praticantes de Lacan.

 

Quais foram as consequências políticas do ensinamento de Jacques Lacan?

 

Pode-se dizer que houve consequências políticas porque os analistas antes de Lacan eram conservadores, de direita moderada. E mais ou menos Freud também. Houve também consequências comunistas de Freud. Houve tentativas de abertura de institutos para os pobres na Alemanha, por exemplo. E depois havia consequências humanistas que não eram conservadoras, não eram exatamente progressistas, mas tinham uma certa orientação humanitária. Essas foram as consequências de Lacan. Disse que não era progressista, que não acreditava no progresso. Para ele, a história era bastante circular, de certa forma. Mas não era só ele que não acreditava no progresso. A partir do século XIX, esse distanciamento da ideia de progresso se desenvolveu. Ele não era progressista, não era conservador e, ao mesmo tempo, não acreditava em uma mudança total porque achava que se alguém deixa um mestre, ou destrói um mestre, mais tarde encontrará outro mestre. Vimos isso muito claramente com o comunismo soviético, por exemplo. Stalin era um mestre muito mais feroz do que o czar. Com o czar havia mil agentes dos serviços especiais de inteligência. E com Stalin havia 5 mil e depois havia 200 mil desses agentes. Quase toda a população da Alemanha comunista era de espiões do governo.

 

Portanto, Lacan não era otimista em relação à política. Mas tinha cuidado com os doentes que sofriam, também com os pobres. A ponto de dizer que os super-ricos não podiam ser analisados porque não podiam pagar algo que realmente lhes custasse. Para fazer uma análise era necessário que o pagamento viesse do trabalho. E os ultra-ricos não trabalham, só esperam a renda.

 

Como o discurso capitalista pode ser concebido hoje em um mundo marcado pelo avanço da extrema-direita?

 

Lacan formaliza o discurso capitalista quando todos os jovens e além falavam de capitalismo. Foi a grande questão de 68, por exemplo. Lacan pescou preocupações essenciais na cultura de seu tempo e deu-lhes uma tradução em seu discurso para desviar, impactar essas questões sem rejeitá-las, acolhê-las para transformá-las. Quando se falava do discurso capitalista, era porque parecia haver uma alternativa nos países comunistas, com o Terceiro Mundo, mas que tinha mais simpatia pela esquerda. Não é o caso hoje. O capitalismo está em toda parte. A globalização é a globalização do capital. Não há outra alternativa. Ou a alternativa é entre capitalismo democrático e capitalismo autoritário. E acho que se Lacan pensasse as coisas hoje, sua formalização do discurso capitalista seria diferente. Ao mesmo tempo, tenho uma anedota que talvez diga o contrário do que estou dizendo.

 

Conte-a, por favor.

 

Certa vez, em uma conversa particular, perguntei a Lacan o que ele achava do que estava acontecendo na China. Foi nos anos 60. Eu era maoísta e achava que havia algo completamente novo que Mao estava tentando fazer na China. E Lacan me respondeu: “Em Pequim, como em toda parte, o mestre é o dinheiro”. Foi extraordinário como antecipação e como lucidez. Eu já tinha a ideia de que o futuro era a dominação do capitalismo no mundo.

 

E como você pensa hoje? Um analista deve ficar longe dos fenômenos de massa?

 

Não, deve estar próximo dos fenômenos de massa, como Freud fez analisando-os, dando-nos uma fórmula geral da massa na psicologia, a psicologia dos grupos. Interessa-nos muito saber como se estruturam os fenômenos de massa em nosso tempo, o que é diferente do tempo de Freud porque temos, por exemplo, a internet, a comunicação social pela internet. E isso permite, por exemplo, criar movimentos ideológicos de massa de uma forma que não existia na escrita de Freud.

 

Ao mesmo tempo, uma tradição dos analistas é ter certa distância do compromisso político. Talvez menos na Argentina. Sei que, por exemplo, na Escola de Orientação Lacaniana se faz uma distinção entre kirchneristas (K) e os anti-kirchneristas (anti-K). Há dissidência política, mas em geral a tradição analítica tem certa distância. Deve-se dizer que na escola lacaniana, embora alguns sejam K e outros sejam anti-K, eles trabalham juntos. Não criam grupos separados por afinidades políticas.

 

Eu pessoalmente distingo entre o que sou como psicanalista e o que sou como cidadão. Como cidadão sou antifascista, como geralmente são os analistas, mas também entrei na luta política de maneira pessoal, tentando distinguir plenamente minha escola, a Escola Francesa, e meus compromissos pessoais. Mas sinto-me à vontade para fazer isso porque considero que é possível distinguir as duas coisas, embora como cidadão o conhecimento que possuo como analista não evapore, é claro.

 

Para mim isso não me impede de me comprometer fortemente com a luta política, mesmo não estando em nenhum partido, nem em nenhuma associação política. É totalmente pessoal.

 

Em que aspectos você diria que se pode continuar lendo Lacan como um pensador atual?

 

O próprio disse: “eu sou ilegível” (risos). Ao final da sua vida, ele se interessou muito por James Joyce. “Ulisses” é muito difícil de se ler e entender. É uma obra única que claramente fascinava Lacan. E Joyce disse: “deixei trabalho para os universitários durante 300 anos”. E creio que Lacan queria também deixar trabalho para nós por 300 anos. É uma maneira de dar uma resposta a sua pergunta. A outra maneira é dizer que tinha um dom de antecipação que vimos no nível político e que existia também no nível clínico. Por exemplo, a despatologização da clínica, Lacan a antecipou, é evidente. Segue sendo atual pela natureza do seu ensinamento. Também graças a nós, a grande comunidade de analistas que se referem a ele dão seu tempo e seus esforços a esse pensamento. 

 

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