03 Mai 2024
“Caso se queira revisar o imperialismo tecnológico, será necessário fazer uma leitura da construção da racionalidade moderna que lhe deu origem”, escreve Jorge Alemán, psicanalista e escritor, em artigo publicado por Página/12, 29-04-2023. A tradução é do Cepat.
Em diferentes lugares do mundo, emergem diferentes filosofias que tentam dar conta do modo como o mundo digital-tecnológico vem intervindo de um modo radical na construção das subjetividades contemporâneas. O surgimento em cena do evidente poder da Inteligência Artificial somou um novo capítulo à ideia de digitalização da vida e da subsunção dos sujeitos ao ordenamento tecnológico da existência.
Costuma-se destacar que estes novos artefatos que nos falam, que alteram severamente a nossa relação com a memória, a percepção dos fatos, a capacidade de decifrar os símbolos e que geram uma série de automatismos onde os elementos humanos vão perdendo a sua especificidade em favor de uma digitalização da vida se disseminam como uma força imparável.
No entanto, apesar da atual explosão do tema, o assunto não é novo. Já nos anos 1930, Heidegger havia vaticinado que a Técnica conseguiria uma substituição dos seres falantes em tal nível que nem a filosofia e nem a política seriam capazes de a reverter e modificar. Era o seu diagnóstico, o Niilismo: o desaparecimento dos valores e a sua instrumentação Técnica constituiriam o suporte privilegiado dos novos poderes do mundo.
O erro que se percebe em muitos desses filósofos, dedicados a pensar a trama tecnológica que nos aprisiona e atrai com o gozo de sua utilização, é que para eles está ocorrendo uma destruição do sujeito autônomo do Iluminismo.
Em parte, isso está correto: um efeito alcançado pela tecnologização é que a autonomia, no sentido moderno do termo, vai ficando pulverizada. Nas subjetividades atuais, a voz da Razão e o discernimento público que deve acompanhá-la vão desaparecendo, enquanto a fronteira entre a vida e o robô vai se apagando. Contudo, aqui, encontramos um raciocínio circular que merece ser comentado.
Foram as operações que deram lugar ao sujeito da Ciência, esse percurso que vai de Descartes a Kant, que prepararam as condições para que o sujeito moderno se tornasse o solo do sujeito da Ciência e, depois, sua metamorfose no mundo da Técnica. O sujeito da Ciência reteve do ser humano apenas aquilo que se prestava ao cálculo e à matematização da realidade, apagando, então, a sua singularidade real.
Em termos de Lacan: a Ciência é uma ideologia da rejeição do inconsciente.
A constituição do sujeito da Ciência exigiu para a sua própria composição que todas as experiências da palavra: sonhos, jogos de palavras, lapsos, relatos traumáticos etc. fossem consideradas ameaças à própria autonomia. Na realidade, a famosa autonomia foi um projeto de homogeneidade das existências.
O triunfo absoluto da tecnologia tem a sua verdadeira base não na autonomia do sujeito que ela agora destrói, mas em sua verdade inconsciente primeira: aquele que fala nem sempre sabe o que diz porque além de falar é falado pelo inconsciente.
Por outro lado, agora é falado por vozes tecnológicas e quando não bastam, intervém o verdadeiro parceiro do mundo tecnológico: os manuais de autoajuda.
Caso se queira revisar o imperialismo tecnológico, será necessário fazer uma leitura da construção da racionalidade moderna que lhe deu origem.
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A filosofia da Técnica. Artigo de Jorge Alemán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU