19 Abril 2024
"O fantasma da ditadura é uma presença constante à medida que a história se desenrola na BR-319, e os verdadeiros interesses nacionais do Brasil estão em grande risco", escreve Philip Martin Fearnside.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan, EUA, e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, em Manaus, AM, onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas – IPCC, em 2007. Foi identificado em 2006 como o 2º cientista mais citado do mundo sobre aquecimento global, em 2011 como o 7º mais citado sobre desenvolvimento sustentável e em 2021 como “mais influente” no Brasil sobre mudanças climáticas.
As suspensões de segurança são um vestígio da ditadura militar brasileira que ainda está em vigor. Esse mecanismo foi decretado inicialmente em 1964, permitindo que um juiz anulasse qualquer decisão judicial “para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” [1]. Isto permite que qualquer decisão que paralisaria um projeto de infraestrutura seja anulada, independentemente de quais leis, proteções constitucionais ou acordos internacionais o projeto possa violar [2-4]. Nos anos desde que a atual constituição do Brasil entrou em vigor em 1988, o mecanismo de suspensão de segurança foi reafirmado e ampliado para incluir ações do Ministério Público [5] e para impedir qualquer suspensão de projetos durante recursos [6].
A suspensão da segurança desempenhou um papel chave na remoção de barreiras às audiências públicas do projeto BR-319. Estas audiências representam uma etapa crítica no processo de licenciamento, não pelo seu conteúdo, mas sim porque o fato de ter sido realizada uma audiência, independentemente do que tenha sido dito pelos participantes, permite a sequência de passos para proceder à aprovação do EIA. e ao início da construção.
Em 2021, a audiência pública inicial sobre o licenciamento do projeto de reconstrução foi bloqueada por ordem judicial porque os povos Indígenas afetados não poderiam participar durante a pandemia da COVID-19 [7]. Uma suspensão de segurança foi obtida pelo Ministro dos Transportes de um juiz em Brasília ([8], Ver [9]). A justificação utilizada não foi a habitual de alegar que a renúncia ao projeto causaria “graves danos à economia pública”, provavelmente devido à inviabilidade económica do projeto, mas baseou-se na alegação de que a rodovia é necessária para o transporte de oxigénio e outros suprimentos médicos para Manaus. Isso é falso, e o uso dessa teoria pelos proponentes da BR-319 teve consequências trágicas: um comboio de caminhões despachado pela BR-319 para entregar oxigênio a Manaus no auge da crise de oxigênio, quando pacientes com COVID em hospitais de Manaus estavam morrendo por falta de oxigênio num drama que chocou o mundo [10].
Os resultados previsíveis de mandar este comboio pela BR-319 no pico da época chuvosa foram atolamentos e num atraso de 44-66 horas em comparação com outras opções disponíveis de transporte por supefície, o que se traduziu em perdas evitáveis de vidas em Manaus, e tudo indica que essas vidas foram sacrificadas para criar uma oportunidade para a promoção política do projeto de reconstrução da rodovia [11].
As suspensões de segurança foram usadas muitas vezes para anular decisões que paralisavam a construção de barragens como Belo Monte, Teles Pires e São Manoel até que os povos Indígenas impactados fossem consultados, conforme exigido pela Lei 10.088/2019, antiga Lei 5.051/2004 [12, 13]. Essas barragens simplesmente foram construídas, apesar das violações claras, e nenhum dos povos Indígenas afetados foi consultado [14-17]. A ameaça de suspensões de segurança paira sobre a questão da consulta aos povos Indígenas que seriam impactados pelo projeto da BR-319 [18]. A exigência de consulta até agora tem sido simplesmente ignorada em termos práticos, e nenhuma parte do processo de licenciamento da rodovia foi adiada enquanto se aguarda as consultas. Estas consultas deverão ser feitas antes da decisão sobre a execução do projeto, e não apenas antes da fase de construção e muito menos simultaneamente com a construção, como é o plano oficial.
O Ministério Público emitiu uma “recomendação” formal ao IBAMA solicitando que as audiências públicas não fossem realizadas até que a consulta fosse concluída [19], mas as audiências foram realizadas mesmo assim [20]. Uma “consulta”, ao contrário da audiência pública, dá aos povos Indígenas uma voz na decisão sobre a implementação ou não do projeto, em vez de apenas na modificação dos procedimentos de implementação do projeto ou na mitigação e compensação dos impactos [21]. O número de pessoas no Brasil que já ouviram falar das leis de “suspensão de segurança” é minúsculo, o que significa que essencialmente não há pressão para revogar essas leis [22]. O atual domínio do Congresso Nacional pelo agronegócio e interesses relacionados [23] excluiria essa possibilidade em qualquer caso.
O fantasma da ditadura é uma presença constante à medida que a história se desenrola na BR-319, e os verdadeiros interesses nacionais do Brasil estão em grande risco. Isso inclui a manutenção do abastecimento de água para São Paulo e outras partes das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste que dependem da água reciclada pela floresta amazônica e transportada por ventos conhecidos como “rios voadores” [24]. Estes interesses nacionais também incluem evitar a libertação de enormes reservas de carbono nesta parte da Amazônia que, se emitidas como gases de efeito estufa, empurrariam o clima global para além de um ponto de não retorno catastrófico e irreversível [25].
[1] Brasil, PR (Presidência da República).A imagem que abre esteartigo mostra 1964. Lei nº4.348, de 26 de junho de 1964. Estabelece normas processuais relativas a mandado de segurança. PR, Brasília, DF.
[2] Prudente, A.S. 2013. O terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança e a proibição do retrocesso no Estado democrático de direito. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil 10(55): 108-120.
[3] Prudente, A.S. 2014. A suspensão de segurança como instrumento agressor dos tratados internacionais. Revista Justiça e Cidadania, nº165.
[4] Trindade, F.B., G.G. Ferreira, H.A. Albertin, L.R. Vedovato, M.B. Ceccarelli, M.C.G. Angelini, T. Temer & A.A. Sampaio. 2016. A suspensão de segurança: Peixe fora d’água diante da Constituição democrática. pp. 257-275. In: D.F. Alarcon, B. Millikan & M. Torres (eds.) Ocekadi: Hidrelétricas, conflitos socioambientais e resistência na Bacia do Tapajós. International Rivers Brasil, Brasília, DF & Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará, Santarém, PA. 534 p.
[5] Brasil, PR (Presidência da República). 1992. Lei nº8.437, de 30 de junho de 1992. Dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do poder público e dá outras providências. PR, Brasília, DF.
[6] Brasil, PR (Presidência da República). 2009. Lei nº12.016, de 07 de agosto de 2009. Disciplina o mandado de segurança individual e coletivo e dá outras providências. PR, Brasília, DF.
[7] SJAM (Seção Judiciária do Amazonas). 2021. Autos: 1022245-88.2021.4.01.3200. Decisão. Poder Judiciário Federal, 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da SJAM. Manaus, AM. 27 de setembro de 2021.
[8] TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região). 2021. Processo: 1035291-44.2021.4.01.0000 Processo Referência: 1022245-88.2021.4.01.3200. Classe: Suspensão de Segurança Cível (11556). Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, DF.
[9] Fearnside, P.M. 2021. Audiências públicas BR-319: Um atentado aos interesses nacionais do Brasil e ao futuro da Amazônia. Amazônia Real, 28 de setembro de 2021.
[10] Fearnside, P.M., M.B.T. de Andrade & L. Ferrante. 2021. BR-319: Prefeito de Manaus aproveita crise de oxigênio para promover agenda anti-ambiental. Amazônia Real, 18 de janeiro de 2021.
[11] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2023. Vidas sacrificadas na crise de oxigênio de Manaus para promover a BR-319. Amazônia Real.
[12] Brasil, PR (Presidência da Republica). 2004. Decreto No 5.051, de 19 de abril de 2004, PR, Brasilia, DF.
[13] Brasil, PR (Presidência da Republica). 2019. Decreto Nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. PR, Brasília, DF. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#art5
[14] Fearnside, P.M. 2017. São Manoel: Barragem amazônica derrota Ibama. Amazônia Real, 25 de setembro de 2017.
[15] Fearnside, P.M. 2017. Belo Monte – Atores e argumentos. Amazônia Real
[16] Fearnside, P.M. 2019. Justiça ambiental e barragens amazônicas. Amazônia Real.
[17] Palmquist, H. 2014. Usina Teles Pires: Justiça ordena parar e governo federal libera operação, com base em suspensão de segurança. Ponte, 27 de novembro de 2014.
[18] Ferrante, L. M.P. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. BR-319 ameaça povos Indígenas. Série Amazônia Real.
[19] MPF-AM (Ministério Público Federal no Amazonas). 2021.PR-AM-00040501/2021. Inquérito Civil n° 1.13.000.001678/2009-42. Recomendação Legal N°11/2021, 5° Ofício/PR/AM/MPF. Procuradoria da República no Estado do Amazonas 5° 0ficio, Manaus. 03 de setembro de 2021.56 p.
[20] Fearnside, P.M. 2021. BR-319 highway hearings: An attack on Brazil’s interests and Amazonia’s future (commentary). Mongabay, 26 October 2021.
[21] Esteves, A.M., D. Franks & F. Vanclay. 2012. Social impact assessment: The state of the art. Impact Assessment and Project Appraisal 30(1): 34-42.
[22] Fearnside, P.M. 2015. Barragens do Tapajós. Amazônia Real.
[23] ClimaInfo. 2024. Sob patrocínio do Centrão, pauta antiambiental avança no Congresso Nacional. ClimaInfo, 02 de abril de 2024.
[24] Fearnside, P.M. 2021. As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil: 2 – A seca no Sudeste. Amazônia Real, 20 de julho de 2021.
[25] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.
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