10 Outubro 2023
"A comparação do transporte de oxigênio por diferentes modais com base no tempo de viagem, trafegabilidade da rota e custo mostra que a crise do oxigênio em Manaus foi agravada pela escolha da rota de transporte feita pelos dois ministérios"
A análise é de Lucas Ferrante e Philip Martin Fearnside, publicada por Amazônia Real, 05-10-2023.
Lucas Ferrante é doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e atualmente é pós-doutorando na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Foi primeiro autor de notas em Science e Nature Medicine sobre o impacto de COVID-19 na Amazônia, inclusive em povos indígenas, e coordenou o grupo formado a pedido do Ministério Público-AM sobre o COVID-19 em Manaus. Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
Após a explosão de casos de Covid-19 e o início da crise do oxigênio em Manaus [1, 2], foi divulgada uma postagem na conta do Twitter do Ministério da Infraestrutura anunciando uma rota de emergência pela Rodovia BR-319 para “facilitar” o transporte de oxigênio para Manaus durante a crise (Fig. 2). No entanto, o governo do estado do Amazonas sabia desde novembro de 2020 que o oxigênio em Manaus seria insuficiente [3]. O então ministro da Saúde (Eduardo Pazuello) também soube que haveria falta de oxigênio em Manaus vários dias antes da fase crítica da segunda onda de Covid-19 [4]. Muitas pessoas ficaram sem acesso ao oxigênio em Manaus por um período de mais de uma semana devido aos altos preços dos poucos cilindros que sobraram na cidade, o que aumentou as disparidades da saúde pública no estado do Amazonas neste período, com apenas as classes mais ricas tendo acesso ao oxigênio na prática.
Figura 2. Banner do Ministério da Infraestrutura no Twitter anunciando a via emergencial via BR-319 para facilitar o transporte de oxigênio até Manaus. Imagem: Reprodução
A logística para levar oxigênio a Manaus durante a segunda onda da Covid-19 foi de responsabilidade conjunta do Ministério da Saúde (sob Eduardo Pazuello) e do Ministério da Infraestrutura (sob Tarcísio de Freitas). A divulgação da rodovia BR-319 pelo Ministério da Infraestrutura como rota estratégica para levar oxigênio a Manaus (Fig. 2) foi vista pelos apoiadores do Presidente Bolsonaro como uma ação que “salvaria vidas” e demonstraria a preocupação do governo durante a crise. No entanto, o comboio de caminhões de oxigênio que seguia para Manaus, sob a responsabilidade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) do Ministério da Infraestrutura, atolou na lama da rodovia BR-319, rota conhecida por seus atoleiros nessa época do ano (a estação chuvosa) [5].
O anúncio no Twitter do Ministério da Infraestrutura informava que a rota terrestre para levar oxigênio de Porto Velho a Manaus pela Rodovia BR-319 levaria aproximadamente 30 horas, enquanto uma rota alternativa por barcaça de Belém a Manaus levaria de 6 a 7 dias (Fig. 2). No entanto, a rota alternativa por barcaça deveria ser pelo rio Madeira, que é paralelo à rodovia BR-319 e liga Manaus a Porto Velho, cidade de onde saía o oxigênio para Manaus pela rodovia. A rota que o Ministério da Infraestrutura alegou que era a alternativa à BR-319 partia da cidade mais distante de Belém e exigia navegação contra a correnteza do rio Amazonas, de modo que demoraria muito mais do que descer o rio Madeira (Fig. 3).
Figura 3. Mapa da Amazônia brasileira com as três rotas de transporte de oxigênio para Manaus. Linha vermelha: rio Madeira; linha roxa: rio Amazonas; linha laranja: rodovia BR-319.
A viagem pela rota adotada pelos ministérios da Infraestrutura e da Saúde durou três vezes mais do que as 30 horas previstas, e o comboio de oxigênio finalmente chegou a Manaus após 96 horas (Tabela 1). Estudos sobre a viabilidade econômica do transporte de cargas para o estado do Amazonas concluíram que, mesmo que a rodovia fosse reconstruída e pavimentada, o transporte pela BR-319 também seria muito mais caro do que o fluvial [6, 7]. A comparação do transporte de oxigênio por diferentes modais com base no tempo de viagem, trafegabilidade da rota e custo (Tabela 1) mostra que a crise do oxigênio em Manaus foi agravada pela escolha da rota de transporte feita pelos dois ministérios. A rota adotada foi a mais cara e a mais demorada (Tabela 1). Dada a necessidade urgente de oxigênio em janeiro de 2021, faria muito mais sentido utilizar o transporte aéreo com aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB), não se justificando relacionar a crise do oxigênio em Manaus à ausência da Rodovia BR-319.
Tabela 1. Comparação dos modais de transporte de oxigênio para Manaus durante a crise gerada pela segunda onda da COVID-19.
*Dados informados pelas empresas de navegação. O tempo de 96 horas pela rodovia BR-319 foi a duração da transferência de oxigênio de Porto Velho para Manaus durante a segunda onda de COVID-19 realizada pelo Ministério da Saúde e pelo DNIT do Ministério da Infraestrutura. **Valor total de transporte e oxigênio informado pelo Ministério da Saúde = 2.767.284,32 reais; Valor de um metro cúbico de oxigênio líquido durante a pandemia = 6,50 reais, totalizando 160 mil metros cúbicos = 1,04 milhão de reais.
Sob condições normais de navegação, considerando o calado do rio Madeira em Porto Velho (saída) e o calado do rio Madeira na confluência com o rio Amazonas (entrada do rio Amazonas com destino a Manaus) e um piloto fluvial com sólidos conhecimentos do rio, estimava-se que, com o motor funcionando entre 1.500 e 1.800 RPM, a viagem levaria de 30 a 52 horas sem interrupção, dependendo do calado do rio. Levantamentos altimétricos com imagens de satélite dos níveis de água do rio Madeira [8, 9] demonstram que o rio estava em um de seus melhores períodos de trafegabilidade (Fig. 4), ao contrário da Rodovia BR-319, que apresentava um grande número de buracos de lama devido ao grande volume de chuvas nessa época do ano [5]. [10]
Figura 4 – Níveis de água no rio Madeira (Dados: [9]). O asterisco vermelho marca a crise de oxigênio em Manaus.
[1] Ferrante, L., L.H. Duczmal, E. Capanema, W.A. Steinmetz, A.C.L. Almeida, J. Leao, R.C. Vassao, P.M.Fearnside & U.Tupinambas. 2022. Dynamics of COVID-19 in Amazonia: A history of government denialism and the risk of a third wave. Preventive MedicineReports 26: art. 101752.
[2] Ferrante, L., L. Duczmal, W.A. Steinmetz, A.C.L. Almeida, J. Leão, R.C. Vassão, U. Tupinambás & P.M. Fearnside. 2021. How Brazil’s president turned the country into a global epicenter of COVID-19. Journal of Public Health Policy 42: 439–451.
[3] Resk, F. & MA. Carvalho. 2021. Amazonas sabia desde novembro que oxigênio de hospitais era insuficiente. UOL. 16 de janeiro de 2021.
[4] Reuters. 2021. Saúde sabia do risco de falta de oxigênio 6 dias antes do colapso em Manaus. UOL. 18 de janeiro de 2021.
[5] Jornal Hoje. 2021. Comboio com oxigênio para Manaus atola BR-319. Jornal Hoje. 23 de janeiro de 2021.
[6] Fleck, L. 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Série Técnica, no. 17. Conservation Strategy Fund (CSF), Lagoa Santa, MG, 53 p.
[7] Teixeira, K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Conteineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado em engenharia de transportes. Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos, São Carlos, SP. 235 p.
[8] Schwatke C., D. Dettmering, W. Bosch & F. Seitz. 2015. DAHITI – an innovative approach for estimating water level time series over inland waters using multi-mission satellite altimetry. Hydrology and Earth System Sciences 19: 4345-4364.
[9] DAHITI. 2022. Madeira, River. Water Level Time Series (Altimetry). https://dahiti.dgfi.tum.de/en/13730/water-level-altimetry/
[10] Esta série traduz o trabalho Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2023. Brazil’s Amazon oxygen crisis: How lives and health were sacrificed during the peak of COVID-19 to promote an agenda with long-term consequences for the environment, indigenous peoples and health. Journal of Racial and Ethnic Health Disparities
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Crise de oxigênio de Manaus para promover a BR-319: 3- A escolha política da logística de transporte de oxigênio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU