15 Outubro 2020
A desigualdade social passou a dar pistas sobre o que aconteceu na primeira onda da doença em Manaus e o que está acontecendo com o aumento de casos que a cidade enfrenta atualmente.
A reportagem é de Matheus Magenta, publicada por BBC News, 13-10-2020.
Em resumo, dados e especialistas apontam que o vírus chegou à cidade com as classes mais abastadas em rotas internacionais e nacionais e depois se espalhou com força pelos bairros mais pobres. Hospitais públicos e cemitérios ficaram lotados. As mortes em casa mais que dobraram.
Quando passou o pico da doença, que matou quase 3 mil pessoas, e a cidade se reabriu, foram os mais abastados que começaram a encher leitos de hospitais privados em proporção cada vez maior porque lhes faltam duas coisas: distanciamento social, que antes os salvou mas depois deixaram de praticar, e anticorpos, que o isolamento inicial impediu que desenvolvessem.
Mas para entender como a cidade chegou a uma tragédia que agora se repete, é preciso voltar ao início da pandemia. O primeiro caso oficial na capital do Amazonas surgiu em 13 de março. Uma mulher de 39 anos que voltou infectada de Londres e procurou um hospital particular ao sentir os sintomas. Não chegou a ser internada.
Até o início de abril, a covid-19 estava concentrada nas classes mais ricas de um Estado onde 85% da população depende da rede pública de saúde (SUS). Naquela época, 57% das internações por doenças respiratórias estavam em hospitais particulares de Manaus.
Era questão de tempo até o cenário se inverter.
Apesar da tragédia, a cidade não adotou um bloqueio total à circulação de pessoas, como fizeram a China e a Itália nos momentos mais críticos.
O prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), resistiu à medida, recomendada à época por especialistas e autoridades do Ministério Público. Dizia temer conflitos armados nas ruas, e adotou outras medidas de restrição.
Mesmo com lojas, empresas e escolas fechadas, as condições de vida em Manaus ajudaram a acelerar o avanço da doença.
A maioria dos manauaras vive em favelas, mora em casas com mais de 3 pessoas, circula em transportes públicos lotados e depende de trabalhos informais para sobreviver. Quase 10% dos domicílios não têm água encanada. E como em outras capitais brasileiras, essa parcela menos favorecida da população não teve opção além de seguir a vida como era possível, apesar da pandemia.
O distanciamento social, calculado pela empresa InLoco a partir de dados de telefones celulares, nunca passou de 60% da população do Amazonas, mesmo no auge da pandemia.
E se no início de abril a minoria das internações estava em hospitais públicos, no início de junho, representavam mais de 80% do total.
Foi por volta dessa época que o número de infecções começou a cair, e não se sabe bem direito por quê. A cada dia havia menos pessoas doentes, internadas e mortas pela covid-19.
Sepultamento de vítimas da Covid-19 no Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus. (Foto: Alex Pazuello/Semcom)
As explicações à época para o recuo da pandemia, que ainda são hipóteses, falam principalmente em duas coisas:
1. efeitos positivos de distanciamento físico e uso de máscara
2. imunidade coletiva (ou de rebanho).
De acordo com essa segunda explicação, haveria tanta gente doente que o vírus não teria conseguido mais se espalhar e matar com força (algo similar ao que acontece quando as pessoas são vacinadas em massa).
Tanta gente quanto? Por causa da falta de testes e estrutura para analisar esses exames, pesquisadores tentam há meses dimensionar o real tamanho da pandemia na cidade e no Brasil como um todo.
Os números oficiais apontam para 2,6 mil mortes e 53 mil infectados em Manaus desde março, ou 2% dos 2,2 milhões de habitantes.
Dados de cartórios, no entanto, mostram um número de mortos na cidade durante a pandemia que supera a média histórica. É o que se chama de mortes em excesso. Esse total aumentou quase 50% de 2019 para 2020, ou de 6.398 para 9.420.
E um estudo recente, coordenado pela imunologista Ester Sabino, professora e diretora do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP), estimou que não foram apenas 2%, mas sim 66% dos habitantes de Manaus os contaminados pelo vírus. Ou seja, 1,5 milhão de pessoas infectadas.
“Embora intervenções não farmacêuticas, além de uma mudança no comportamento da população, possam ter ajudado a limitar a transmissão do Sars-CoV-2 em Manaus, a taxa de infecção excepcionalmente alta sugere que a imunidade de rebanho desempenhou um papel significativo na definição do tamanho da epidemia.”
O fato é que o recuo da pandemia durou pouco em Manaus. O comércio reabriu em junho, só que em agosto o número de pessoas infectadas voltou a crescer e especialistas passaram a defender medidas rígidas de distanciamento social. Mas não se sabe o que está acontecendo e nem se há ou não uma segunda onda de casos na cidade.
E afinal, se Manaus atingiu de fato o patamar de imunidade coletiva, por que o vírus voltou a se espalhar? São as mesmas pessoas sendo infectadas de novo? Se as pessoas podem ser reinfectadas, faz sentido falar em imunidade coletiva?
A desigualdade social novamente pode dar algumas pistas.
A maior média de novos casos num período de 24 horas foi atingida em Manaus em 29 de maio: 646. O ponto mais baixo desde então foi em 12 de julho: 180. Em 1º de outubro, a média diária está em 456. É o maior número desde 5 de junho.
Em 29 de abril, morriam 63 pessoas por dia na cidade, segundo dados oficiais. Hoje são 4. Em 24 de abril, 98 pessoas eram internadas diariamente. Agora são 11.
O problema é que esses números não mostram os diferentes perfis das pessoas atingidas em cada fase. Vale lembrar que mais de 60% da população do Amazonas recebeu o auxílio emergencial do governo federal, o quinto maior índice do país.
Se as classes menos favorecidas foram amplamente afetadas no ápice da pandemia em Manaus, entre abril e junho, agora, a doença parece se voltar novamente para os mais ricos, que eram a maioria bem no início da pandemia. Naquela época, só havia casos importados de viajantes que chegavam doentes à cidade.
A Fundação de Vigilância Sanitária do Amazonas afirmou que, em análise da incidência do coronavírus por bairro em Manaus, em agosto, houve “um crescimento no número de casos em bairros como Ponta Negra e Adrianópolis, em sua maioria habitado por pessoas com maior poder aquisitivo”.
Segundo a presidente do órgão, Rosemary Pinto, o Estado enfrenta “um aumento de casos pontuais em aglomerados, principalmente nas classes A e B”.
Outro indicador é a ocupação de leitos em hospitais privados. A proporção da rede privada era de 55% em 6 de abril, chegou a 7% de 18 de junho e agora está em 41% do total de pessoas internadas com doenças respiratórias.
Mas e a imunidade de rebanho? O aumento de casos significa que esse patamar não foi atingido?
Segundo a imunologista Ester Sabino, que coordenou o estudo que apontou que 66% dos habitantes de Manaus já haviam sido infectados e que a cidade havia atingido a imunidade de rebanho, esse patamar não significa que a pandemia acabou.
Em seu perfil no Twitter, ela explicou que imunidade de rebanho significa que o espalhamento do vírus vai ser cada vez menor, mesmo sem outras medidas de contenção, como o uso de máscaras. “Mas não quer dizer que as pessoas não expostas previamente não irão se infectar.”
Segundo ela, quando se atinge esse patamar de imunidade de rebanho, a taxa de contágio (R) não passa de 1 mesmo sem outras medidas de contenção, como uso massivo de máscaras.
Ou seja, antes da imunidade de rebanho ser atingida, estima-se que, em média, 100 pessoas infectadas transmitam o vírus para 250 pessoas. Depois, 100 pessoas infectadas transmitirão o vírus para menos de 100 pessoas, e esse número vai caindo ao longo do tempo.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, uma boa parte das pessoas que não foram expostas previamente ao vírus em Manaus está justamente nas classes mais abastadas.
“O grupo que tem acesso a hospitais privados galgou menor ‘imunidade parcial’ que a parcela mais pobre, que depende do SUS. Estudos de seroprevalência (proporção da população que já teve contato com o vírus) já feitos em São Paulo e no Maranhão demonstraram que as pessoas com maior renda se protegeram melhor da covid. Portanto esse grupo seria mais vulnerável durante uma segunda onda, ao relaxarem suas medidas de isolamento”, afirmou Bruce Walker Nelson, biólogo e professor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
Para a física Patricia Magalhães, pesquisadora da Universidade de Bristol, no Reino Unido, e integrante do grupo de cientistas Ação Covid-19, Manaus deve estar vivenciando um fenômeno que ela caracteriza como estouro de bolhas de proteção.
“Bolhas de proteção ocorrem quando o vírus, depois de circular por bastante tempo num determinado ambiente, passa a ter dificuldade de encontrar alguém suscetível para infectar. Ou porque está cercado de pessoas doentes ou imunes. O distanciamento social e o uso de máscaras ajudam a perpetuar essa situação em que o vírus tem dificuldade de circular. Mas com o aumento excessivo da circulação, abertura do comércio, de bares e das escolas, há um aumento de circulação de pessoas suscetíveis e aí essa bolha pode estourar e o vírus pode atingir regiões e grupos que tiveram muito pouco contato com o vírus no primeiro momento. E aí um novo surto começa.”
O pesquisador Ricardo Parolin Schnekenberg, que vê imunidade de rebanho como sinal de incompetência e não como mérito de política de saúde, afirma que há ainda uma grande lacuna em todas essas hipóteses sobre Manaus. Afinal, não sabemos como funciona a defesa do corpo contra a covid-19.
“Estudos mostram que o número de anticorpos das pessoas que tiveram contato com covid-19 caem ao longo do tempo. Mas ainda não temos certeza se essas pessoas continuarão protegidas contra novas infecções, se elas perderão total ou parcialmente a proteção ou se terão resposta imunológica mais rápida quando enfrentarem o vírus novamente. Não há certeza sobre nada, e há casos comprovados de reinfecção em pacientes por todos os lados”, disse Schnekenberg, doutorando em neurociências clínicas na Universidade de Oxford e parte do grupo de estudos do Imperial College de Londres para covid-19.
O governo do Amazonas aponta que o aumento de internações hospitalares “é reflexo das aglomerações, cada vez mais frequentes, ocasionadas por uma parcela significativa da população que não adotou e, cada vez mais, está abandonando as medidas não farmacológicas preconizadas (como distanciamento social, não aglomeração, uso constante de máscara e lavagem frequente das mãos)”.
E segundo a Fundação de Vigilância Sanitária do AM, o problema se concentra em balneários, bares, casas noturnas, festas de aniversário, casamentos e convenções partidárias às vésperas das eleições municipais. As autoridades dizem que a transmissão vírus se dá entre pessoas de 30 a 49 anos, mas quem acaba internado são “os maiores de 60 anos e aqueles com comorbidades, que entraram em contato com quem se expôs em aglomerações”.
O avanço da doença no Estado levou a um racha entre pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Há duas divergências principais: se o aumento de casos já configura uma segunda onda, e quais medidas de contenção deveriam ser adotadas pelas autoridades para evitar o espalhamento da doença.
O imbróglio começou no fim de setembro, quando o epidemiologista Jesem Orellana afirmou em entrevista ao canal GloboNews que o Estado deveria adotar um lockdown para conter a pandemia. Ou seja, instituir um bloqueio rigoroso à circulação de pessoas e à abertura do comércio, entre outros pontos.
“Para você conseguir conter a circulação do vírus não há outra solução que não seja o lockdown e o lockdown rigoroso em que você consiga fazer uma fiscalização efetiva da mobilidade intermunicipal, tanto da parte de transporte transporte coletivo quanto do transporte privado das pessoas, reduzir os horários de restaurantes, de bares e proibir eventos públicos. Sem isso, você não consegue reduzir de forma significativa a circulação viral. E aí, na verdade, o que se faz é desacelerar a propagação”, disse Orellana.
A declaração gerou reação do governo do Estado, que refutou a possibilidade de adotar um lockdown.
“Nem passa pela minha cabeça a possibilidade de ‘lockdown’, de fechar tudo aqui no Estado. Nós conseguimos avançar muito, o Amazonas é referência hoje no combate à covid-19”, declarou o governador do AM, Wilson Lima (PSC).
Em seguida, a Fiocruz declarou que Orellana não falava em nome da instituição e divulgou em 30/9 uma nota técnica assinada por um grupo de nove pesquisadores.
O documento recomenda uma série de medidas de combate ao novo coronavírus, mas não fala em segunda onda nem em lockdown.
“Entendemos que a atual situação vivenciada pelo Estado do Amazonas e em particular na sua capital, Manaus, em relação a ocorrência da covid-19, seja perfeitamente reversível, com a implementação/ implantação de medidas que visem a diminuição dos contatos entre as pessoas; o reforço das medidas de proteção individual e coletiva; aumento na capacidade da testagem de casos suspeitos e contatos; o aumento da sensibilidade da vigilância epidemiológica local com ampliação da captação de suspeitos através da demanda passiva e busca ativa de casos, identificar e testar contatos, constituindo as cadeias de transmissão.”
Em entrevista à Agência Brasil, Marcelo Gomes, pesquisador em saúde pública da Fiocruz e coordenador do InfoGripe, que monitora os casos de covid-19 e outras síndromes respiratórias, afirmou que ainda é cedo para falar em segunda onda ou imunidade de rebanho no Amazonas.
“A gente não pode afirmar com certeza que Manaus já está com imunidade de grupo. Existem alguns trabalhos sugerindo isso, mas são resultados com limitações e incertezas e, portanto, devem ser interpretados com muita cautela.”
Para Orellana, “alguns cientistas e políticos” em Manaus insistem em gerenciar “de forma tão precária a epidemia num contexto que mais se assemelha a um experimento natural, onde se tenta a qualquer custo alcançar a chamada imunidade de rebanho por incompetência” e o “caldeirão da morte encheu”.
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Coronavírus: como desigualdade entre ricos e pobres ajuda a explicar alta de casos de covid-19 em Manaus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU