11 Março 2024
“A lei não é perfeita em nenhuma instituição”, afirma o padre jesuíta e psicólogo Hans Zollner quando questionado sobre os protocolos do Vaticano para lidar com o abuso sexual do clero.
A reportagem é de Loup Besmond de Senneville, publicada por La Croix International, 22-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“De forma mais ampla, as normas adotadas por Roma indicam a direção certa, mas atualmente não temos nenhum mecanismo para monitorar sua implementação”, aponta o alemão de 57 anos, que é uma das figuras mais credíveis da Igreja Católica no combate aos abusos e na ajuda às vítimas.
Zollner, ex-membro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores e atualmente diretor do Instituto de Antropologia da Universidade Gregoriana em Roma, acredita que a histórica cúpula que o Papa Francisco convocou em fevereiro de 2019 para lidar com os abusos foi um grande passo na direita certa.
Mas, como ele explica nesta entrevista exclusiva ao La Croix, as regras e procedimentos que foram adotados desde então não foram aplicados de forma suficiente ou uniforme em nível local.
Cinco anos após a organização da cúpula no Vaticano, qual é sua avaliação da luta contra a pedofilia dentro da Igreja?
Nos últimos cinco anos, assistimos a passos significativos. No nível universal, diversas normas foram estabelecidas, incluindo o motu proprio Vox estis lux mundi, um conjunto de regras que foram consolidadas desde então. Ela exige que todos os clérigos, religiosos e religiosas denunciem a seus superiores qualquer tipo de abuso sexual e espiritual de que tomem conhecimento.
Quando o Papa Francisco nos pediu para organizar essa cúpula em 2019, eu quis enviar um sinal muito forte a todos os líderes católicos em todo o mundo, sejam bispos – uma vez que todos os presidentes das conferências episcopais foram convocados para Roma – ou chefes de dicastérios da Cúria Romana e superiores das congregações religiosas.
Tratava-se também de dar importância aos testemunhos das vítimas, e por isso convidamos algumas delas a se juntarem a nós. Isso teve efeitos de longo prazo. Por exemplo, um bispo britânico permitiu recentemente que as vítimas falassem em sua missa de posse. Há cinco anos, isso estava fora de questão.
As normas adotadas no Vaticano são suficientes?
A lei não é perfeita em nenhuma instituição. Existem melhorias possíveis em diversas áreas, por exemplo no direito canônico. Em um julgamento, as partes devem ter acesso ao conteúdo do julgamento e conhecer seus direitos. O processo canônico deve se tornar mais transparente.
De modo mais geral, as normas adotadas por Roma indicam a direção certa, mas atualmente não temos nenhum mecanismo para monitorizar sua implementação. Em alguns países, os bispos renunciaram após algumas disfunções. Em outros, não.
Por que as sanções são aplicadas em um caso e não em outros? Se quisermos que a nova legislação tenha um efeito duradouro e profundo, ela deve ser acompanhada por uma mudança de atitude.
É um problema de transparência?
Não, acho que isso representa apenas uma parte do problema. É mais um problema de procedimento e de implementação.
O que acontece quando um bispo é culpado de não denunciar o abuso sexual a Roma? Quem cuida disso? Quem investiga isso? Quem é o responsável por isso em Roma? E com que consequências?
Da mesma forma, a diferença na aplicação dessas normas em todas as regiões do mundo não é conhecida com precisão. Não temos dados precisos à nossa disposição.
Não é esse o trabalho da Comissão para a Tutela dos Menores do Vaticano?
Os relatórios da comissão provavelmente permitirão monitorar as ações realizadas nessa área.
Os bispos estão suficientemente conscientes dos riscos?
Alguns dizem que as questões de abuso não lhes dizem respeito. Mas, por outro lado, o Dicastério para a Doutrina da Fé afirma estar recebendo dossiês de casos do mundo inteiro. Portanto, há uma certa contradição entre esses dois elementos.
Mas, para além da questão da consciência do problema, os bispos enfrentam uma tensão. Eles devem ser pais de seus padres e também o juiz deles. Isso coloca muitos deles em situações difíceis. A única forma de superar esse problema é estabelecer procedimentos claros em cada diocese para lidar com questões de abuso quando estas surgirem. Isso pode incluir a delegação de uma terceira parte independente para gerir o processo ou para realizar a investigação.
Por fim, vemos constantemente que é necessário formação. O que um bispo deve fazer quando se deparar com um caso? A questão surge em nível canônico, em relação às vítimas, mas também em termos de comunicação ou de tratamento com os padres condenados.
O Vaticano publicou um vade mecum (manual) em 2020 sobre os procedimentos a serem seguidos, mas nem sempre é suficiente. Às vezes, os bispos sabem o que devem fazer, mas lhes falta experiência.
Você viaja pelo mundo para conscientizar sobre a questão dos abusos: que resistências você observa?
Percebo que alguns continuam defendendo a imagem de uma Igreja pura e santa, na qual parece inconcebível cometer o menor erro. Isso leva a não admitir a realidade dos crimes cometidos pelos membros da Igreja. É uma imagem que não corresponde à realidade humana dessa instituição nem às expectativas das pessoas.
O Povo de Deus sabe muito bem que os padres não são santos, mas que, assim como todas as pessoas, são pecadores. Os católicos podem compreender isso e, até certo ponto, podem perdoar isso. Por outro lado, ninguém entende como alguns na Igreja podem reivindicar que ela é perfeita e defender criminosos.
Cristo diz no Evangelho: “Toda vez que fizestes isso a um desses mais pequenos dentre meus irmãos foi a mim que o fizestes... Cada vez que deixastes de fazê-lo a um desses mais pequenos foi a mim que o deixastes de fazer”.
As vítimas são suficientemente levadas em consideração?
Não é possível tirar uma conclusão geral sobre esse ponto. Pela minha experiência, vejo que as expectativas das vítimas são muito diferentes de pessoa para pessoa. Algumas exigem ser ouvidas pelas autoridades da Igreja, outras não. Algumas querem indenizações financeiras, outras não. Algumas exigem cuidados, outras não. Portanto, é difícil falar sobre as vítimas e a consideração sobre suas preocupações. Mas o que posso dizer é que devemos aprender a escutá-las e a acolher a contribuição delas.
Se agora parece haver uma maior conscientização da tragédia do crime de pedofilia, esse ainda não parece ser o caso em relação ao abuso contra adultos. Como podemos mudar isso?
Em relação ao abuso sexual, a conscientização não veio de uma só vez. Nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na Irlanda, tudo começou há 30 ou 40 anos. No que diz respeito aos vários tipos de abuso cometidos contra adultos, provavelmente seguiremos o mesmo processo gradual. Levará algum tempo.
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Igreja tem protocolos antiabuso fortes, mas que não estão sendo totalmente aplicados. Entrevista com Hans Zollner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU