20 Fevereiro 2024
"A surrada expressão “banalidade do mal” ganha concretude no cotidiano da família Höss, expressa por exemplo nos diálogos em que a esposa do oficial nazista diz à mãe ou a uma amiga que as criadas são “gente daqui” (isto é, polonesas) e que os judeus ficam “do outro lado do muro”." escreve José Geraldo Couto, crítico de cinema, em resenha publicada por Blog do Cinema do IMS, e reproduzida por Outras Palavras, 15-02-2024.
Alguns críticos “acusaram” Zona de interesse de não mostrar os horrores do campo de concentração de Auschwitz, comandado pelo protagonista do filme, o oficial nazista Rudolf Höss (Christian Friedel). A meu ver, porém, é esse o acerto básico do filme de Jonathan Glazer, ou mesmo sua razão de ser.
Ao contrário do que ocorre em centenas de dramas, documentários e séries sobre o Holocausto, que se comprazem quase sadicamente em reproduzir as torturas físicas e psicológicas infligidas aos prisioneiros, em Zona de interesse todo o horror acontece do outro lado do muro que separa o campo de extermínio da abastada propriedade em que Höss vive pacatamente com a família, conspira com seus pares e confraterniza com os amigos.
A barbárie se manifesta basicamente fora do quadro, na engenhosa trilha sonora, com seus gritos, lamentos, ruídos e música perturbadora. Zona de interesse, de certa forma, é um estudo sobre a alienação, sobre a faculdade de eludir o horror, seja por interesse ou por autodefesa. Nesse sentido, dialoga com A garota radiante. No filme de Sandrine Kiberlain, uma jovem judia parisiense vive alheia ao pesadelo terrível que a rodeia durante a ocupação nazista. Aqui, uma realidade artificial e escapista se constrói em torno do próprio carrasco.
A surrada expressão “banalidade do mal” ganha concretude no cotidiano da família Höss, expressa por exemplo nos diálogos em que a esposa do oficial nazista diz à mãe ou a uma amiga que as criadas são “gente daqui” (isto é, polonesas) e que os judeus ficam “do outro lado do muro”. Ou na alegre e despreocupada escolha de peças de roupa evidentemente tiradas das prisioneiras de Auschwitz. Ou ainda nos planos detalhados que um engenheiro apresenta a Höss para otimizar o rendimento dos fornos crematórios. Não é preciso mostrar os fornos funcionando. Para o espectador com um mínimo de informação e sensibilidade, bastam os croquis.
Uma das criadas, ao que tudo indica, furta maçãs e outros alimentos da casa para escondê-los nos arbustos podados regularmente por prisioneiros do campo para a produção de belas flores. Aliás, se uma imagem resume o sentido do filme é o dessas delicadas flores adubadas com as cinzas provenientes dos fornos crematórios. Brutalidade e jardim, como no verso de Torquato Neto, por sua vez inspirado em Oswald de Andrade.
As ações da boa criada são mostradas de modo estilizado, com imagens em negativo, enquanto Höss conta histórias infantis para embalar o sono da filha. A introdução ocasional de imagens oníricas no meio do relato cotidiano é apenas um dos recursos que suscitam incômodo e perturbação. O primeiro deles é a tela escura dos minutos iniciais, assombrados pela música dissonante e sinistra da compositora não binária britânica (e judia) Mica Levi. Lá pelo meio do filme repete-se um procedimento parecido, desta vez com a tela vermelha sugerindo ao mesmo tempo a flor e o sangue.
Para experimentar (esteticamente, claro) a monstruosidade nazista não é preciso ver o fogo consumindo corpos, o ferro dilacerando a carne. Muitas obras já ofereceram isso, com coragem ou sensacionalismo, indignação ou oportunismo. Com base em romance do escritor britânico Martin Amis, Zona de interesse aborda a tragédia de outra maneira, de outro ângulo, não menos inquietante, não menos humanista e civilizatório.
Não se pode acusar Jonathan Glazer de “humanizar” o carrasco. Não há glamour algum, simpatia alguma em sua figura e em suas ações. Não se busca a identificação do público com ele ou com qualquer outro personagem. Todos são filmados a certa distância, sem closes, sem “pensamentos íntimos”. Nem mesmo as crianças têm o dom de cativar o espectador. Numa das poucas cenas em que meninos aparecem sozinhos, longe dos adultos, um deles prende o irmão menor numa estufa. É um aprendiz de algoz.
O espectador desatento talvez até demore a reconhecer na esposa de Rudolf Höss a atriz Sandra Hüller, de Anatomia de uma queda, em parte graças à extraordinária capacidade de transformação da artista, mas em parte também pelos enquadramentos relativamente distantes. Não há o menor perigo de uma pessoa mental e espiritualmente sã identificar-se com aquela gente.
Em tempo: Zona de interesse ganhou em Cannes o grand prix e o prêmio da crítica. Concorre agora a cinco Oscars: filme, direção, filme estrangeiro, roteiro adaptado e som.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Zona de interesse: Brutalidade e flores de cinzas. Comentário de José Geraldo Couto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU