15 Janeiro 2024
"Não há no direito internacional (caso ainda exista) um direito à autodefesa absoluta, tal a justificar crimes de guerra; ainda mais se, apoiados por inequívocas declarações sobre as intenções pretendidas, tais crimes configuram-se como atos genocidas", escreve Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália. O artigo foi publicado por Il Manifesto, 13-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Foi o devastador j'accuse do século, a voz da descolonização. Duas horas de fatos e provas perante a Corte Internacional de Justiça, após as quais não existe mais a desculpa do “não sabíamos”. Caiu em pedaços a fachada de moralidade e retidão que Israel e os Estados Unidos reivindicavam; foi feita a história, independentemente do que os juízes decidirão depois, ao que se dobrarão."
Assim Priyamvada Gopal (estudos pós-coloniais, Cambridge) comentou o discurso sul-africano contra a ação de Israel em Gaza. Como para confirmá-lo, as próprias grandes cadeias de televisão, que não transmitiram ao vivo a acusação, transmitiram depois ao vivo a resposta dos advogados de Israel.
Caso alguém tivesse dúvidas sobre até que ponto o processo chega a tocar em profundidade as relações entre as hierarquias coloniais e a violência de massa, quem representa a África do Sul é uma advogada irlandesa, Blinne Ní Ghrálaigh, enquanto a defesa de Israel é liderada por um advogado britânico, Malcolm Shaw KC.
Graduada em Cambridge, Blinne Ní Ghrálaigh representou a Croácia contra a Sérvia e defendeu as famílias das vítimas do Domingo Sangrento da Irlanda do Norte: ela retratou Gaza como o primeiro genocídio na História em que as vítimas transmitem a sua própria destruição, na esperança de que o mundo possa fazer alguma coisa. Shaw também já esteve perante a Corte, defendendo a Sérvia, os Emirados Árabes Unidos e Camarões: denunciou a distorção de fatos e circunstâncias apresentadas pelo time sul-africano.
No mais, embora este último tenha apresentado como premissa uma condenação clara e inequívoca dos crimes perpetrado pelas brigadas al-Qassam em 7 de outubro, o ministro do exterior israelense havia recentemente definido a África do Sul como o braço legal dos terroristas do Hamas. Ao levantar perante a Corte uma disputa sobre a aplicação da Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio, da qual Israel é um signatário convicto, a África do Sul centrou um crime para o qual vigora uma proibição absoluta.
O campo de batalha jurídico gira inteiramente em torno da plausibilidade do caso levantado: nas próximas semanas saberemos não sobre o genocídio em si (para o juízo do mérito poderiam ser necessários anos), mas sobre a injunção de limitações provisórias à ação de Israel. O eterno dissidente Norman G. Finkelstein – autor de A Indústria do Holocausto e banido de Israel, que ele definiu como um estado suprematista judaico – explicou recentemente como exista pouco que esperar da Corte, ela próprio um retrato das relações de força internacionais. São 15 juízes de nomeação nacional, com assento garantido para os 5 membros permanentes do Conselho de Segurança.
Além dos EUA e do Reino Unido, é difícil imaginar China e Rússia, acusadas de atos genocidas em Xinjiang contra os Uigures e na Ucrânia, querendo abrir a caixa de Pandora da convenção sobre o genocídio. Entre os outros dez estados, estão Alemanha, Austrália e Uganda, fortemente alinhadas com Israel. Mais difícil prever a atitude da Índia de Modi (marcada pela onda de violência contra os muçulmanos), bem como o voto francês, jamaicano e japonês. Os juízes nomeados pelo Brasil, Marrocos, Somália e Líbano provavelmente votarão pela plausibilidade do caso de genocídio.
Se o voto pode ser considerado indefinido, a realidade é obstinada. Não há no direito internacional (caso ainda exista) um direito à autodefesa absoluta, tal a justificar crimes de guerra; ainda mais se, apoiados por inequívocas declarações sobre as intenções pretendidas, tais crimes configuram-se como atos genocidas. Perante a força devastadora dos fatos, a objecção israelense sobre a competência da Corte (ausência de prévio dissídio entre Israel e África do Sul) parece fraca.
O mesmo pode ser dito quanto ao fato das declarações incriminadas não constituírem a políticas oficiais de Israel: foram repetidas às mídias pelos mais altos níveis do governo e do estado israelense. Fatos comprovantes estão à vista de todos: Israel desarticulou todo o sistema humanitário em Gaza, as poucas ajudas que permite não podem ser distribuídas, enquanto médicos e pessoal da ONU são mortos a dezenas. O próprio conceito de necessidade militar foi detonado quando o “Pentágono da Hamas”, que supostamente estaria se escondendo sob o hospital al-Shifa em Gaza, revelou-se um simples túnel.
As tensões entre a África do Sul, Israel e o Ocidente têm uma história que remonta à primeira conferência de Durban contra o racismo (2001), à evocação do apartheid israelense e às acusações de antissemitismo. Seguiram-se dissensos em torno das relações de Pretória com Putin, que tem um mandado de prisão contra ele por crimes de guerra na Ucrânia, bem como de outros líderes acusados de massacres sistemático (por exemplo, o líder das RSF sudanesas, Hemedti).
A leitura pós-colonial, que vê no processo de Haia o desafio às hierarquias internacionais, não faz mistério do peso que atribui às identidades, muitas vezes empregando reduções problemáticas. Estaríamos simplesmente diante de uma maioria negra africana, saída de um regime branco de apartheid, que defende os palestinos “escuros” no desafio à supremacia branca global, encarnada principalmente pelos EUA e Israel.
Depois de séculos de racismo, perseguições, pogroms e um genocídio em grande escala, é certamente redutivo e distorcido representar Israel como “branco”. E, no entanto, o problema do colonialismo de assentamento existe, assim como existe um problema de genocídios que ocorrem em diferentes escalas e modalidades.
Genocídios no plural, ainda mais se incluirmos aqueles seletivamente esquecidos na era colonial.
O crédito de que desfruta em nível internacional a África do Sul, país que se libertou do brutal regime da segregação racial optando pelo difícil caminho de uma democracia em que uma cabeça vale um voto, é um fato real, que a praça Ramallah fez reviver anteontem aos pés da estátua de Mandela.
Muito tem sido falado e escrito sobre o perigo de que a guerra em Gaza se amplie. É um fato que hoje muitos, no sul do mundo, veem a intervenção ocidental contra o governo iemenita (que insistimos em chamam de “os rebeldes Houthi”) não tanto como tutela da lei internacional e do livre comércio, mas como a escolha das grandes potências brancas de passar da diplomacia e do apoio a Israel ao envolvimento direto na guerra.
Vale lembrar como, anos atrás, os aliados ocidentais sauditas pensassem em derrotar os Houthis com uma semana de bombardeios. A guerra ainda não acabou e os líderes de Riad temem hoje as pressões de uma opinião pública maciçamente a favor da Palestina, que condena as intervenções anglo-estadunidenses no Mar Vermelho. Desse ponto de vista, a guerra já se ampliou. O campo de batalha legal talvez ofereça uma última oportunidade para a política.
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De Gaza a Sanaá, o Ocidente abandona a diplomacia pelas armas. Artigo de Francesco Strazzari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU