15 Janeiro 2024
Etgar Keret não escreve, olha e pensa. A Faixa de Gaza fica a menos de uma hora de carro de Tel Aviv, logo ali. Há mais de três meses, a realidade de uma guerra sem precedentes o emudece, como também a muitos outros autores israelenses, acostumados a contar a complexidade de uma terra hoje reduzida a preto e branco.
A entrevista é de Francesca Paci, publicada por La Stampa, 13-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Israel responde à acusação de genocídio perante a Corte Internacional de Justiça, a pior para o povo do Holocausto. Como se sente?
O processo de Haia é a representação da falta de comunicação que afeta o mundo hoje, duas partes contrapostas que contam duas histórias diferentes para um público que assiste a dois filmes paralelos. De um lado, estão os fatos de 7 de outubro, quase neutros, seguidos pelos crimes de um único agressor, ou seja, Israel, que propositadamente, friamente, mata mulheres e crianças palestinas. Do outro lado, está a reação a um ataque que tudo deveria justificar, até mesmo a morte de 1% dos habitantes de Gaza, incluindo as vidas perdida de civis, incluindo o racionamento de comida. Uma narrativa para cada um dos contendores, sem diálogo ou possibilidade de justiça. É deprimente. Há coisas intoleráveis no modo como Israel combate a guerra e há outras igualmente intoleráveis no comportamento do Hamas antes e depois de 7 de outubro, mas falar de genocídio é extremo. A realidade não é ficção. Em vez disso, é como se para a África do Sul os palestinos fossem Harry Potter diante de Israel-Voldemort e para os outros o exato contrário, sem que ninguém possa explicar ou mudar de ideias. É maluco.
A África do Sul associou-se à Turquia, e o ministro do Exterior israelense, Israel Katz, respondeu-lhe que estava pensando no genocídio dos armênios.
Esse é o ponto. Os turcos denunciam Israel como o mal absoluto e Israel faz o mesmo com eles. Um círculo vicioso. Israel, acusado de bombardear as maternidades, acusa o Hamas de esconder nessas mesmas maternidades as armas e o Hamas responde com a necessidade de se defender numa guerra assimétrica. A Corte de Haia deve pronunciar-se sobre crimes de guerra numa situação complexa em que não se podem separar os bons dos maus. As últimas notícias falam de negociações em curso sobre os remédios a serem enviados aos palestinos, que só então os forneceriam aos reféns: mas como é possível ficar se questionando sobre remedos? Seria legítimo levar para Haia a privação de ajudas humanitárias à população civil, mas falar de genocídio por parte de Israel num processo em que no banco dos réus não está o Hamas nem as milícias a favor do Irã é ridículo: não há atrocidades num único lado.
O processo de Haia será, como afirma Naftali Bennet, o caso Dreyfus do século XXI?
Estamos assistindo à arenga de duas propagandas emocionais que evocam simultaneamente o genocídio. Mas o genocídio é a tentativa de exterminar uma população inteira e creio que o massacre de 7 de outubro não o seja, embora naquele dia os homens do Hamas quisessem matar todos os israelenses no seu caminho. Assim como não é genocídio responder a uma agressão feroz bombardeando Gaza até evacuar toda a população. Dreyfus? A acusação contra Israel é construída artificialmente, esquecendo, por exemplo, que há também 200 mil deslocados dos kibutzim atacados, mas não concordo nem mesmo com a teoria da nossa pura inocência porque você não pode escapar das responsabilidades por uma guerra em que já morreram mais de 10 mil mulheres e crianças. Existe uma cota de antissemitismo na Europa e no mundo islâmico, mas Israel não é Dreyfus e também não é Eichmann.
Israel também é criticado pela arrogância dos militares que, em Gaza, zombam das casas palestinas destruídas. Como se sente, na qualidade de democrático, por aquele vídeo?
A primeira vítima da guerra é a empatia. O inimigo é definido por epítetos que o desumanizam, não se mata Roberto, mas ‘um maldito bastardo’. Aqueles vídeos são o fruto envenenado do que o ministro extremista Itamar Ben Gvir vem semeando há anos. Lutamos uma guerra emotiva no nível máximo porque muitos soldados perderam pessoas queridas em 7 de outubro e isso coloca para o exército e para a sociedade o árduo desafio de se defender sem ceder à vingança e sem ceder impunidade para seus soldados. Os responsáveis por aquele vídeo deveriam ir para a prisão imediatamente, mas é complicado proceder se um ministro os incita a humilhar o inimigo e outro devaneia com uma bomba atômica sobre Gaza.
Pode-se denunciar o massacre de Gaza, com suas mais de 22 mil vítimas, sem ser tachado de antissemitismo?
O 7 de outubro foi um massacre porque os assassinatos foram intencionais, o ataque a Gaza não: é uma tragédia inaceitável na caça aos terroristas, mas não é um massacre. Infelizmente todas as discussões agora são binárias. Até o fato de ser tachado de antissemitismo por criticar Israel, ainda que com argumentos infundados, comprova essa rigidez. O mundo está cheio de ódio, antissemita, anti-islâmico, homofóbico: emoções fortes que se contrapõem sem resolver os problemas.
Há algo que escapa em relação a Israel ao Ocidente, nas ruas por Gaza e não por isso necessariamente antissemita?
Nas guerras é fácil tomar partido, mas não entender. O Ocidente realmente entende o que está acontecendo na Ucrânia? Em Israel há quem denuncie as crianças sequestradas nos kibutzim em 7 de outubro e quem apenas reconheça aquelas mortas em Gaza. Contudo, não é possível entender sem se esforçar para ver as responsabilidades das duas partes. Responsabilidades duplas: é uma serpente que se devora.
Há semanas olha-se para a fronteira libanesa, mas em vez disso a guerra alastrou-se para o Mar Vermelho. E a tão temida escalada?
Quanto mais penso em 7 de outubro, mais não encontro o seu sentido para os palestinos, era óbvio que iriam pagar o preço mais alto, foi uma tragédia. O cenário foi revelado com os ataques aos Houthis que, dirigidos contra Israel, atingiram na realidade os comércios egípcios e sauditas, respondendo ao interesse iraniano em prejudicar os principais aliados estadunidenses na região. Dessa vez é uma verdadeira guerra por procuração, onde as decisões não são e não serão tomadas localmente.
Leia mais
- Tudo bem em Tel Aviv (se você não for homossexual, mulher ou árabe)
- A destruição total de Gaza deve acabar. Editorial do National Catholic Reporter
- “Israel comete atos de genocídio em Gaza”. A acusação da África do Sul em Haia
- Israel: a brutalidade derrotada. Artigo de Ramzy Baroud
- “Não nos renderemos”: os extraordinários palestinos de Jenin. Artigo de Ramzy Baroud
- A identidade de Israel é clara, assim como a questão palestina. Artigo de Roberta De Monticelli
- Crise de identidade e risco de guerra civil se Israel entrar em conflito com Israel. Artigo de Lucio Caracciolo
- Uma pátria portátil para o povo de Israel
- Conferência internacional debate o uso de Israel como modelo cultural pela extrema-direita
- Israel. A crise política israelense pesa nas relações com o Ocidente
- Israel. “Para os cristãos a situação está piorando, a direita religiosa não fala conosco”
- Conflito israelense-palestino: uma lógica mortal
- Nablus, também em Israel o fascismo quer guerra
- 30 anos depois dos Acordos de Oslo: “Esta terra não merece muros, mas a construção de pontes”. Entrevista com Mahmūd Abbās, presidente da Palestina
- Palestina. “Aqui é uma prisão a céu aberto”, diz pároco latino de Gaza
- Palestina. Palavras do Papa ‘despertam a atenção’ para os sofrimentos na Terra Santa, afirma D. Marcuzzo, ex-vigário patriarcal de Jerusalém
- “A população palestina é assassinada todos os dias”. Entrevista com Jamal Juma
- A subserviência do exército de Caxias e sua estúpida retórica contra a Venezuela
- Xeque-mate ao antissemitismo: o Sinédrio enterrou Jesus
- Intercâmbio de retornos frente ao negacionismo da Nakba
- Palestina. “Gaza é uma prisão ao ar livre”, afirma ativista pacifista
- A nova estratégia palestina
- Palestina. Israel não autoriza nenhuma saída para os cristãos de Gaza
- Ahed Tamimi, a adolescente ícone da resistência palestina, sai de prisão israelense após cumprir pena
- A real ameaça antissemita e a defesa do povo palestino
- O pentecostalismo sionista “made in USA” e o apoio às ilegalidades de Israel
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Em Gaza não está em curso um genocídio, mas também não são crimes do Hamas”. Entrevista com Etgar Keret - Instituto Humanitas Unisinos - IHU