22 Dezembro 2023
“Enquanto corremos o risco de uma explosão atômica e morre uma criança assassinada a cada dez minutos, em Gaza, o marketing tenta nos convencer de que 2023 é a porta de entrada para uma civilização em que os androides sonharão com ovelhas elétricas. Contudo, este foi apenas mais um ano do século XXI e da era das cavernas. Tudo ao mesmo tempo”, escreve Rosa Miriam Elizalde, jornalista e escritora cubana, em artigo publicado por La Jornada, 21-12-2023. A tradução é do Cepat.
Um sistema de inteligência artificial (IA) desenvolvido por Israel permite localizar e aniquilar 100 alvos por dia, em Gaza, mas 2023 ficará para a história como o ano em que aproximadamente 180 milhões de terráqueos se comunicaram, criaram e trapacearam com robôs.
Em apenas 12 meses, a OpenAI se tornou a empresa de inteligência artificial mais popular do mundo por criar um aplicativo (ChatGPT) capaz de estabelecer um diálogo razoavelmente coerente com qualquer usuário na Internet. Com esta tecnologia, os Beatles lançaram sua última música e o Kuwait News apresentou “Fedha”, a futura apresentadora de seu principal canal de notícias.
A Nvidia, que se posicionou como a fornecedora do hardware necessário para a inteligência artificial, aumentou seu valor na bolsa em 190%. A Tesla continua liderando o mercado da condução autônoma. A Apple destinou milhões para melhorar seus assistentes virtuais e a Microsoft emergiu como a principal investidora no ChatGPT (para depois fisgar a maior parte de sua equipe e seu CEO, Sam Altman).
Sem mencionar Israel, os especialistas nos impactam com exageros como “2023 será lembrado como o ano em que houve a maior disrupção tecnológica, desde a criação do motor de busca do Google”. Outros, seguindo uma espécie de escatologia apocalíptica, acreditam que marcará o início da rebelião das máquinas e das tentativas de regulá-las a tempo. E todos buscam nos implantar a ideia de uma nova hipermodernidade que acabará com o mundo tal como o conhecemos.
A realidade é muito mais simples. Não são as máquinas que adquirem “inteligência” e “valores humanos”, são as elites tecnológicas que reproduzem a lógica das máquinas. Já vimos muitas vezes o dilema sobre o ChatGPT – ou qualquer outra tecnologia baseada em sistemas de redes neurais – do ponto de vista da generalização do uso e acesso à Internet, com plataformas que parecem abertas, gratuitas e disruptivas, mas que, na realidade, vêm acopladas à ideia de que sempre há uma solução tecnológica ou de mercado para os grandes problemas sociais e ambientais.
Em La supervivencia de los más ricos (Capitán Swing, 2023), Douglas Rushkoff estuda o modo de pensar e agir da superelite tecnológica e chega à conclusão que detém as rédeas da revolução digital a partir de uma visão da tecnologia despojada de qualquer tipo de reflexão ou conteúdo humanístico: centra-se em forçar os limites e escapar.
Aqueles que controlam a indústria tecnológica, agora voltada para a inteligência artificial, não só são imensamente ricos: sabem que o que construíram pode destruir o mundo e possuem um plano B para salvar a sua pele. Jeff Bezos (Amazon) viajará para o espaço; Elon Musk (X, Tesla), colonizará Marte. Peter Thiel (Palantir) está empenhado em reverter o processo de envelhecimento. Sam Altman (OpenAI) e Ray Kurzweil (Google) vivem convencidos de que chegará o dia em que poderão fazer uma cópia de segurança de seus cérebros e carregá-la na nuvem. O bunker de Mark Zuckerberg é o metaverso. Todos inventaram uma forma de se afastar dos problemas que com entusiasmo e deslealdade contribuíram para criar.
“Para eles - diz Rushkoff -, seus algoritmos, suas inteligências artificiais, os robôs e os humanos aumentados que um dia colonizarão os céus são mais importantes do que as pessoas. Acreditam que a experiência de trilhões de inteligências artificiais espalhadas pela galáxia, dentro de mil anos, é mais importante do que a experiência destes 8 bilhões de pequenos vermes de carne que se arrastam, no momento, pelo planeta. E estes senhores são inteligentes e lúcidos o suficiente para enxergarem isso. Não estão presos à emocionalidade humana; não são capazes de retroceder e ver a equação de um lugar muito mais racional”.
Enquanto corremos o risco de uma explosão atômica e morre uma criança assassinada a cada dez minutos, em Gaza, o marketing tenta nos convencer de que 2023 é a porta de entrada para uma civilização em que os androides sonharão com ovelhas elétricas. Contudo, este foi apenas mais um ano do século XXI e da era das cavernas. Tudo ao mesmo tempo.
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Quando civilização é barbárie - Instituto Humanitas Unisinos - IHU