22 Novembro 2022
Em algum momento de 2017, cinco ricaços do alto escalão do mundo dos investimentos tecnológicos contrataram o teórico da mídia e pioneiro da cibercultura, Douglas Rushkoff (Nova York, 1961), para dar uma de suas palestras habituais sobre blockchain, metaverso e o futuro geral da tecnologia.
Nomeado em 2013 como “um dos dez intelectuais mais influentes do mundo” pelo MIT, Douglas Rushkoff é um escritor, documentarista e ativista que, desde o início dos anos 1990, estuda a autonomia humana na era digital. Autor de mais de vinte livros (entre eles, Present Shock, Throwing Rocks at the Google Bus, Program or Be Programmed, Life inc e Media Virus), também é professor de Economia Digital e Teoria da Mídia, na Universidade da Cidade de Nova York, em Queens, e apresentador do podcast semanal Team Human.
Ao perceber que a limusine que o transportava adentrava por horas no deserto rumo ao nada, Rushkoff pressentiu que a apresentação que tinha preparado provavelmente não iria servir para nada. “Que ricos se dirigiriam para tão longe do aeroporto para participar de uma conferência?”, pensou. Estava certo. Após chegar a um resort, em algum lugar indeterminado do deserto, os cinco homens começaram a bombardeá-lo com perguntas repetitivas sobre o mesmo tema: qual seria a melhor forma de se isolar do perigo iminente de uma extinção em massa?
As fantasias isolacionistas que esses ricaços lhe transmitiram foram o seu encontro em primeira mão com “a mentalidade”, um conjunto de ideias tão bizarras quanto reais, que uma tecnoelite vem desenvolvendo, há décadas, para escapar de um suposto colapso global (aumento do nível do mar, migrações em massa, pandemias, pânico nativista ou esgotamento de recursos), fugindo para suas ilhas particulares ou para seus bunkers de luxo.
Conforme Rushkoff escreveu em um ensaio de grande repercussão para o Medium, este seria um estado de espírito subjacente no Vale do Silício, cujo reflexo são as pretensões de Elon Musk em colonizar Marte, as tentativas de Peter Thiel em reverter o processo de envelhecimento ou os audaciosos esforços do diretor de engenharia do Google, Ray Kurzweil, em “carregar sua mente em um supercomputador” (no melhor estilo Years and Years).
Uma filosofia para vencedores cativante o suficiente, ainda que aterrorizante, para que Rushkoff escrevesse Survival of the Richest: Escape Fantasies of the Tech Billionaires, um ensaio no qual mergulha no ecossistema mental de uma minoria de magnatas, com ambições de “elite cognitiva”, que restringiu o progresso tecnológico a um videogame de soma zero, em que apenas alguns conseguem encontrar a porta de saída, enquanto a maioria permanece enfrentando as consequências, geralmente catastróficas, de sua riqueza. “Para eles, o futuro da tecnologia é realmente a respeito de uma coisa só: escapar”.
A entrevista é de Juan Íñigo Ibáñez, publicada por Ctxt, 19-11-2022. A tradução é do Cepat.
Por que esses ricaços convidariam um teórico marxista da mídia para orientá-los sobre como e onde instalar seus bunkers, diante de uma possível catástrofe global?
Eu me perguntava muitas dessas coisas enquanto tudo acontecia. São inteligentes o suficiente para saber que não sou a pessoa adequada para perguntar sobre a infiltração de mofo em painéis de agricultura vertical ou os requisitos de tensão para cercas elétricas. Nos primeiros minutos, de fato, pensei que estavam me “enganando”, que havia uma câmera escondida e que era uma brincadeira organizada para ver como eu reagia ou se eu pediria um lugar em um de seus bunkers.
Normalmente, os investidores em tecnologia ricos me convidam para falar com eles como uma forma de autopunição. Às vezes, sinto-me como se cumprisse a função de uma dominatrix intelectual, repreendendo-os pela forma como extraem dinheiro dos mercados e terceirizam a dor, a pobreza e a poluição a todos os outros para acumular grandes quantidades de riqueza que nunca usarão.
Dessa vez, o que fez com que fosse diferente?
Dessa vez, buscaram muito mais me mostrar por que todo esse acúmulo era necessário. Segundo eles, o mundo estava acabando. Então, tomei como missão convencê-los de que estavam com a tática errada, pois não podiam ganhar dinheiro suficiente para se isolar do dano que estavam causando dessa maneira. Com o tempo, isso se voltaria contra eles. Mesmo os Navy Seals que contratariam como guardas para seus refúgios acabariam tomando o controle de suas ilhas fortificadas.
Mas se esses caras têm tanto dinheiro, por que estão tão assustados?
É justamente porque possuem tanto dinheiro que estão assustados. Você sabe o que fizeram para obtê-lo?
Em poucas palavras, como você definiria “a mentalidade”?
Simplificando, é a crença de que com dinheiro e tecnologia suficientes você pode escapar do dano causado por todo esse dinheiro e essa tecnologia. Na era industrial, esta fuga era alcançada simplesmente superando o dano e colonizando novos territórios, escravizando as pessoas e tomando seus recursos. Agora…
O que é diferente agora?
Hoje, na era digital, tentam escapar operando em um nível acima do resto de nós. Como Peter Thiel, querendo ir (como diz o título de seu livro) “de zero a um” e administrando seus negócios para “uma ordem de grandeza” acima da concorrência. Ou Mark Zuckerberg, desejando se tornar “meta”, ou instrumentos financeiros como os derivados, ou Bezos e Musk voando para o espaço. Como Stewart Brand lhes sugeriu: “Somos como deuses e é melhor que sejamos bons nisso”.
Qual o papel da tecnologia dentro desse esquema?
Veem a tecnologia como uma via para criar um útero seguro e previsível a seu redor. Podem construir uma bolha e receber o que precisarem. Com o tempo, veem os outros como o inimigo. Na mente de um bilionário tecnossolucionista, os seres humanos são o problema e a tecnologia é a solução. Assim, conforme a situação humana piora (mudanças climáticas, autoritarismo, etc.), constroem mais muros entre nós e eles. Muros físicos, muros tecnológicos e muros financeiros. Como resultado, desconectam-se da comunidade e do apoio social e emocional necessário em tempos difíceis. Seu enfoque antissocial de sobrevivência não funciona, nem a curto e nem a longo prazo.
Embora “a mentalidade” esteja baseada em um obstinado materialismo cientificista, você sugere que as fantasias transumanistas dessa tecnoelite têm muito de culto gnóstico ou de “religião nerd”.
Possuem uma pretensão de obstinado ateísmo, mas seu modelo de mundo é retirado diretamente da mitologia cristã. Contudo, em vez de Jesus ressuscitar, são os técnicos que “transcendem” a crisálida da matéria para se tornarem consciência pura. Esses homens falam de “emergência” e “complexidade”, mas realmente não entendem esses conceitos. Assumem que, em razão das palavras virem da comunidade científica, devem descrever coisas reais. Mas qualquer cientista real explicará que esses conceitos continuam sendo apenas metáforas de coisas que, na verdade, não entendemos.
A teoria dos sistemas é uma grande maneira de descrever a realidade, mas a realidade não é, em si, um sistema. Essas pessoas confundem o mapa com o território. Mas isso se deve ao fato de que não querem viver no mundo real, com mulheres e pessoas de cor e elementos assustadores da natureza. Querem viver no mapa. E isso é o que chamamos de religião.
Li que uma das primeiras coisas que ensinam na Singularity University é que os grandes problemas da humanidade são também “grandes oportunidades de negócios”…
Sim, Naomi Klein chama isso de “capitalismo de desastre”. O problema com “a mentalidade” dos irmãos bilionários tecnológicos – a mesma que tem o pessoal da Singularity University – é que todas as soluções devem funcionar em escala global. São industriais, na verdade. Pensam nos modelos estabelecidos pelos grandes monopólios autorizados, como a East India Trading Company. Então, querem projetos gigantes, universais, de tamanho único ou “disparos à lua” que custam muito dinheiro e lhes permitem, ao mesmo tempo, ganhar muito dinheiro.
Por exemplo?
Projetos como o “Grande Reinício”, do Fórum Econômico Mundial, tipificam esse enfoque de resposta às catástrofes. São oportunidades de negócio e grandes razões para fazer mais capitalismo em vez de retroceder. O decrescimento não é uma opção. A única forma de avançar é salvar o mundo por meio do crescimento de novos mercados. A transição para a energia verde deve ser a mais cara e extrativa possível.
O que você pensa de iniciativas de recuperação ecológica como o Green New Deal?
Não muito. Alegro-me que as pessoas queiram mudar para as energias renováveis e que existam empresas que oferecem alternativas às grandes petroleiras. Não podemos continuar queimando o planeta neste ritmo. Mas a energia é complicada e nos iludimos quando pensamos que podemos continuar gastando energia no mesmo ritmo. Não podemos passar dos combustíveis fósseis às energias renováveis da noite para o dia. A quantidade de energia necessária para construir todas as baterias e painéis solares nos mataria. As pessoas têm que usar as coisas que possuem e substituí-las lentamente. Mas se fizermos a substituição lentamente, morreremos.
É por isso que as energias renováveis são, na verdade, apenas uma grande parte de um compromisso maior com a lucidez energética. A outra parte envolve iniciativas como o decrescimento. Pode ser que simplesmente tenhamos que aceitar que avançar em direção ao uso sustentável de energia não alimentará os objetivos de crescimento exponencial do Banco Mundial. Estes novos acordos tentam sustentar os objetivos de crescimento exponencial do capitalismo e, ao mesmo tempo, sustentar os ecossistemas do planeta.
Então?
É preciso sacrificar as necessidades do mercado. Não são reais. São apenas artefatos de um modelo econômico inventado pelos primeiros reis do Renascimento para impedir a ascensão da classe média. A ecologia sustentável requer uma economia sustentável.
Você também ressalta que a ansiedade desses milionários em nos abandonar faz deles, de fato, os verdadeiros “perdedores” da economia digital.
Bem, os ultrarricos competem usando a lógica de uma partida de pôquer. Cada um quer ser o último homem em pé e obter todas as fichas sobre a mesa. Domínio total. Em termos econômicos, isso significa alcançar um número de Gini de um. Para perseguir esse domínio total, ou o que os irmãos da tecnologia chamam de “autossoberania”, devem colonizar e controlar tudo, inclusive a si mesmos! E estão conscientes de que as pessoas e os lugares que estão destruindo não estão satisfeitos com isso. Temem as repercussões, razão pela qual continuam se movimentando, construindo muros e mergulhando em fantasias de isolamento para escapar das consequências.
Quais são os vínculos que você observa entre as fantasias transumanistas de Elon Musk ou Peter Thiel e as teorias da conspiração de movimentos como o QAnon?
Em poucas palavras, o pessoal do QAnon e outros extremistas de ultradireita talvez sejam os únicos que levam esses tecnólogos a sério. Escutam os pronunciamentos dos irmãos da tecnologia por trás do Grande Reinício e outros planos mestres para resolver os problemas do mundo, com a genômica e as cadeias de blocos, e se assustam. Se esses planos fossem possíveis, todos deveríamos estar assustados. Mas, em vez de tranquilizar essas pessoas, bilionários como Musk e Thiel estimulam suas fantasias. Esses caras são aceleracionistas no sentido de que querem provocar o colapso da civilização atual para poder construir uma nova. Como em um jogo de SimCity. É muito cínico.
Muitos desses bilionários começaram a viajar para a América do Sul para experimentar psicodélicos como a ayahuasca. Qual é a ideia de dar um verniz espiritual às suas estratégias comerciais?
Bem, um irmão tecnológico sob efeitos continua sendo só um irmão tecnológico. O set and setting (a frase é de Timothy Leary) com o qual abordam a viagem psicodélica é de comando e controle. Assim, vão ao festival Burning Man ou à América do Sul e tomam ayahuasca ou alguma outra substância química e podem ter um momento de clareza, onde ouvem ao espírito da terra sussurrando para eles que está com problemas.
Mas assim que saem da viajem, em vez de se renderem à natureza e à vida, decidem que são os escolhidos. E vêm com um monte de novos softwares para resolver os problemas da Terra: soluções gigantescas, excessivamente simplificadas, infantis, ao estilo Lego, para “problemas” que, realmente, não querem ver resolvidos. Você não resolve a vida. Você se rende à vida.
Esses caras estão olhando para a América do Sul para construir seus refúgios? Que papel você acredita que a região desempenhará à medida que o “evento” que eles esperam se aproxime?
Amigo, esses caras não estão pensando na América Latina. Para eles, a região representa apenas refugiados climáticos e por isso apoiaram o muro de Trump que bloqueia os Estados Unidos do México. Seu único interesse ativo na América Latina é a especulação imobiliária no extremo sul do Chile e da Argentina, e suas esperanças de usar o baixo continente como porta de entrada para a Antártida pós-permafrost.
Essas elites costumavam olhar para a América Latina em busca de mão de obra e seus recursos naturais, mas os atuais modelos climáticos elaborados pelos bancos e as empresas de investimento para os ricos mostram que grande parte do continente está se tornando inabitável devido às mudanças climáticas. Assim, hoje podem pegar e usar o que existe, sob a suposição de que não haverá o amanhã.
Alguns governos começaram a implementar programas educacionais que visam alcançar a chamada “transformação digital”. Quais as implicações, na sua opinião, da adoção desse tipo de agenda?
Aqui, nos Estados Unidos, as escolas e as universidades públicas foram há muito tempo cooptadas pelas grandes companhias. Os diretores de escolas e universidades perguntam aos chefes das empresas quais habilidades precisam que seus alunos aprendam. A escola costumava ser um espaço onde as pessoas se enriqueciam, agora, ao contrário, é uma via para que as empresas terceirizem os custos de captação dos trabalhadores. Não é um respiro da máquina; é a máquina.
A transformação digital é a mesma agenda traduzida para o domínio do código. Tem o triplo propósito de vender tecnologia para as escolas, vincular as experiências de meninos e meninas na hora de aprender e assumir a tecnologia vendida por essas empresas, e capacitá-los para um espaço de emprego que também será obrigado a incorporar determinadas plataformas.
Se você usa o Google Docs no ensino fundamental, seus futuros empregadores também vão querer usá-lo. Adotar qualquer tipo de agenda “cegamente” é perigoso. Mas adotar esta, em particular, significa que retiramos importância das humanidades e das artes liberais, perdendo a capacidade de pensar criticamente sobre o nosso ambiente.
O que podemos fazer diante dessa ingerência quase total da técnica e da tecnologia em nossas vidas?
Penso que temos que parar de assinar suas plataformas e seus modos de vida. É muito simples. Saia do Facebook e de seu telefone. Pare de comprar merda na Amazon. Pare de comprar merda totalmente. Ajude seus vizinhos para que não precisem comprar tanto, especialmente os mais pobres. Diabos, inclusive, você poderia conhecer seus vizinhos.
A Europa está à frente dos Estados Unidos na regulamentação das grandes tecnológicas. Precisa manter essa vantagem. Suas economias não estão tão ligadas ao sucesso do Google ou do Facebook, então, estão livres para detê-los. E aplicam as mesmas políticas para todos. Mas também podemos ver como nos retirarmos da aula automatizada, ensinando por meio da tecnologia e deixando que essas empresas regulem a si mesmas. Como pessoas, trata-se simplesmente de prestar mais atenção a como essas tecnologias realmente nos fazem sentir, tanto a curto quanto a longo prazo.
No início dos anos 1990, você foi um dos primeiros a celebrar o potencial colaborativo da internet. Considera que em um cenário pós-capitalista podemos construir uma internet que funcione independentemente das operações do capitalismo global?
Bem, a mesma internet que conhecemos e amamos hoje poderia funcionar independentemente das operações do capitalismo global. Penso que alguns dos experimentos descentralizados em andamento são um meio para alcançar esse fim. No momento, a maioria deles ainda vê o governo como o inimigo e sustentam alguns objetivos bastante enganosos como a “autossoberania” ou alcançar o Ponto Ômega. Penso que é melhor otimizar para a comunidade e resistir o impulso de escalar tudo. O fato de que é uma rede global não significa que queremos fazer tudo globalmente.
Em que medida ficou latente a “equação do isolamento” entre nós, após a pandemia? Considera que a ética da “mentalidade” também se infiltrou na classe média progressista?
A pandemia foi uma desculpa para que muitos de nós adotássemos uma mentalidade de bilionário. Aqui, nos Estados Unidos, as pessoas pararam de se sentir culpadas por ter contas na Amazon Prime, pelos pedidos na DoorDash e por suas contas na Netflix. A justificativa é que seguíssemos o mesmo tipo de isolamento e a mesma mentalidade de “seguir livremente” dos irmãos tecnológicos.
Alguns de meus vizinhos mais endinheirados inclusive contrataram tutores privados e criaram pequenas escolas em seus grandes quintais. Começaram a fazer o que, suspeito, sempre desejaram fazer: desconectar-se da realidade cívica circundante e usar seu dinheiro para obter o melhor. Muitos compraram fones de ouvido Oculus para se entreter com a realidade virtual. Mas um ambiente em colapso não respeita o “limite do guardião” de um fone de ouvido VR. Você não pode terceirizar essas coisas para sempre. Todos, com sorte, aprendemos o que esses milionários ainda não reconheceram: você não pode agir só.
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“É preciso sacrificar as necessidades do mercado. Não são reais”. Entrevista com Douglas Rushkoff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU