31 Outubro 2023
“Em Gaza, sobreviver significa viver eternamente com as sequelas traumáticas da guerra e com o miasma da morte. Em nossa terminologia, o termo “vivo” não significa necessariamente estar saudável e seguro. Na realidade, significa tudo menos isso”, escreve Mohammed R. Mhawish, jornalista, escritor e pesquisador palestino que mora na cidade de Gaza, em artigo publicado originalmente por The Nation e reproduzido por La Jornada, 30-10-2023. A tradução é do Cepat.
Nas últimas 24 horas, as bombas israelenses mataram mais de 700 pessoas em Gaza. No entanto, as pessoas que seguem vivas não são tão sortudas. Permanecem para inalar o trauma e exalar o sofrimento que as rodeia por todas as partes.
Como jornalista palestino que nasceu, cresceu e ainda vive em Gaza, tenho testemunhado uma realidade dilacerante e interminável, composta por dois pilares: bloqueio e ocupação. Respirei pela primeira vez durante a segunda intifada. O aroma de fumaça dos disparos e do sobrevoo dos aviões de guerra envolveram minha existência, dando forma a minha vida como refugiado em eterno exílio.
Agora, 24 anos depois, vivo a continuação da mesma trágica história. É a quinta guerra no tempo que tenho de vida. Presumo que não será a última.
Hoje, comecei a escrever cedo. Pouco antes, fiquei três horas na fila do lado de fora de uma padaria. Cheguei em casa antes que a padaria fosse bombardeada, algo comum nesses dias. Senti o peso de um mundo sobre mim, pensando em todas as pessoas que perderam suas vidas só por estarem ali, esperando pela porção diária de pão para suas famílias, quando um ataque israelense caiu sobre elas e transformou suas vidas em mais números nas notícias. Se minha sobrevivência foi sorte ou destino, na realidade, não importa.
A questão hoje não é sobre o porquê ou como, mas, sim, como poderemos voltar a viver normalmente em algum momento. Em Gaza, sobreviver significa viver eternamente com as sequelas traumáticas da guerra e com o miasma da morte. Em nossa terminologia, o termo “vivo” não significa necessariamente estar saudável e seguro. Na realidade, significa tudo menos isso.
Quando um edifício alto que abriga dezenas de famílias – pais, avós, crianças, bebês, uma centena de pessoas que só querem alimentar seus filhos famintos – explode por causa de um ataque, uma parte das pessoas que lhe dão vida morre para sempre. As pessoas que são retiradas dos escombros de suas casas não esquecerão. Não vão se curar. Ficarão vivas pela metade.
Durante quase três semanas, Israel foi protegido pelos países mais poderosos, aplaudido pelos políticos e recebeu apoio militar, tudo isto ao mesmo tempo em que busca acabar com a vida de 2,3 milhões de pessoas que aprisionaram nos últimos 16 anos. Mais de 7.000 pessoas foram abatidas em Gaza. Outras milhares estão feridas. Um número incalculável ainda está sob os escombros.
Na quarta-feira passada, Joe Biden proclamou que não acreditava nos números de mortes divulgados pelo Ministério da Saúde em Gaza, embora se saiba bem que são precisos. Para o presidente dos Estados Unidos, nossas mortes pelo que parece são fake news.
A última coisa que queremos, como povo ocupado, é que nos ofereçam condolências e declarações. Só buscamos entender como poderemos, algum dia, processar a dor que nos acompanhará pelo resto de nossas vidas, enquanto o mundo nos aplaude por sermos “sobreviventes”. Queremos que as nossas demandas básicas sejam respondidas com ações e não com discursos nas Nações Unidas. Queremos um reconhecimento de que as nossas vozes emitem um som quando as usamos: que somos seres humanos, pessoas com esperanças e sonhos que apenas querem um futuro.
Isso não quer dizer que não seja importante que o mundo preste atenção na brutalidade que estamos suportando. Contudo, as pessoas precisam saber mais do que isso: saber que o nosso trauma é acompanhado por um desejo de viver em liberdade.
O povo de Gaza se habituou a rotinas extraordinárias que desafiam o seu desejo de viver. Pessoas que são bombardeadas depois de esperarem horas em filas do lado de fora de uma agência humanitária para receber um pedaço de pão esfarelado não sonham com a solidariedade internacional. Sonham com a vida, mesmo que seja um pouco dela. Sonham em ser mais do que “vistos”, em se tornarem mais do que uma estatística. Quando o mundo aceita o assassinato de 700 seres humanos, em 24 horas, quanto tempo falta até que sejam 7.000?
Pede-se a nós, palestinos, que honremos a humanidade dos civis mortos pelo Hamas em Israel. Posso fazer isso sem titubear. Nenhum civil merece perder a vida e tenho muita experiência no sofrimento que a guerra causa. Contudo, não posso aceitar que seja correto para a humanidade que se reconheça apenas um lado deste conflito. Nos últimos 20 dias, 3.000 crianças morreram ao meu redor. Suas vidas não merecem ser choradas? Merecem ser lembradas apenas como estatísticas?
Conheci uma menina de seis anos que foi comprar seu doce favorito e ao retornar viu sua casa esmagada. Toda a sua família direta e estendida havia perecido. Tudo o que resta de sua linhagem é ela. O terror e a comoção serão seus companheiros por toda a sua vida. Nesse exato momento, eu não tinha certeza se ela queria ou precisava falar ao mundo. Só queria que lhe devolvessem a sua família.
Quando uma mulher promete a seu futuro esposo que colocará o vestido mais deslumbrante que ele já viu, só para levar uma mortalha na manhã seguinte, tudo o que ela quer saber é o porquê. Por acaso, seu casamento era uma ameaça?
Quando uma menina refugiada de 10 anos falta à escola em Gaza para protestar porque não recebeu a sua garrafa de água potável da agência humanitária, ela não quer a retórica de denúncia e condenação no mundo.
Quando os parentes de um estudante universitário planejam meticulosamente sua festa de formatura, tentando não esquecer qualquer detalhe e, em vez disso, preparam um caixão horas antes de verem seu amado filho no grupo dos graduados, jamais precisarão falar ao mundo. De qualquer modo, para que serviria? Só precisam de tempo para digerir e depois superar o fato de que seu filho se foi para sempre.
Ensinaram-me a não tomar partido ao cobrir uma guerra. Contudo, agora, eu mesmo sou um dos lados. O sentimento de abandono não é desconhecido, mas a extensão da conivência do mundo ainda dói. Tenho buscado conter o meu temperamento e não deixar que os meus sentimentos controlem o meu trabalho jornalístico.
Afinal, ser jornalista na Palestina, e particularmente em Gaza, significa que não tenho direito à proteção que supostamente o colete de imprensa me concede. Desde o dia 7 de outubro, quase duas dúzias de meus colegas jornalistas em Gaza foram abatidos. Ainda ontem à noite, Wael Al-Dahdouh, um dos jornalistas veteranos da Al Jazeera em Gaza, perdeu o seu filho, sua filha, sua esposa e um neto de um mês e meio. Isto é o que significa ser repórter em Gaza.
A vida se tornou imprevisível e todos em todas as partes estão escrevendo suas últimas palavras a qualquer momento. Agora, o que todos nós precisamos coletivamente é de menos trauma. Tudo o que pedimos é tempo para o luto. O luto é importante para que depois possamos nos curar... se é que algum dia conseguiremos.
Este ensaio sobreviveu ao bombardeio indiscriminado que dura 20 dias. Mas o que significa sobreviver, na realidade, quando tudo que faço ao escrever não é tomar meu café da manhã, mas, sim, limpar a poeira dos ataques aéreos na tela de meu laptop?
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Tudo o que queremos em Gaza é viver - Instituto Humanitas Unisinos - IHU