17 Outubro 2023
Esta é a barbárie, “e eu já a vi”. A voz de Edith Bruck falha e quase chega às lágrimas, quase. No entanto, ela é uma mulher forte, que passou pelo Holocausto e sobreviveu incrivelmente, é testemunha e o será “até a morte”, com os livros que escreveu, a história de sua vida que conta nas escolas.
A entrevista é de Brunella Giovara, publicada por La Repubblica, 11-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Deportada aos 13 anos, passou por Auschwitz e Dachau. Uma menina que hoje tem 92 anos. O que uma criança entende do horror? A senhora conhece a situação.
Não entende nada. Está perdida, seus olhos estão perdidos. Se tiver a mãe perto gritará ‘mamãe!’. Se não a tiver, ficará muda.
O ataque aos kibutzim e as crianças mortas. Os detalhes são horrendos, cortaram a cabeça de algumas. Podemos chamar isso de pogrom?
Sim, é isso. Eu sei o que é um pogrom, passei por um com a minha família. E quando chegamos ao ghetto, lembro-me de ter visto ali o primeiro nazista da minha vida, porque aqueles que nos haviam presos eram os fascistas húngaros, os nossos concidadãos... E aquele soldado da Wermacht - que era enorme como um Moloch – tinha uma fivela brilhante, na altura dos meus olhos. ‘Gott mit uns’, estava escrito. ‘Deus está conosco…’. E eles também mataram gritando ‘Allah Akbar’. Eles mataram rindo, em nome de Deus. E quantas vezes acontece que se mate em nome de um deus, milhões de pessoas morrem assim, infelizmente. Minha mãe, que era judia crente e falava com Deus todos os dias, lembro que se assombrava: ‘Como é possível que façam isso em nome de Deus?’ Mas aconteceu, e acontece ainda.
A senhora se lembra de outras crianças nos campos de extermínio?
Não, porque aqueles que tinham menos de 13 anos eram imediatamente enviados para o crematório. Eu me salvei porque apesar de ter sido jogada na fila da esquerda com minha mãe, destinadas à morte, acabei depois na fila da direita. Um soldado alemão sussurrou-me escondido ‘vá para lá...’. Foi a ‘primeira luz’, a primeira chance de salvação que me aconteceu. E eu vi muitas coisas horríveis, infelizmente. Vi soldados jogar futebol com a cabeça de uma criança. Estávamos em um dos subcampos de Dachau. Eu não consigo esquecer isso. Jamais esquecerei isso e não devo esquecê-lo.
E em Auschwitz, quando nos enviaram para a desinfestação de piolhos, eu vi no chão centenas de crianças congeladas, jogadas ali. Centenas de pequenos pacotes, que depois descongelavam para realizar seus experimentos.
A senhora ainda sonha com essas coisas?
Nunca. Nunca sonhei nada. Nunca tive pesadelos. Primo Levi me contava que tinha muitas vezes sonhos horríveis, mas eu não. No entanto, tudo isso reaparece durante as anestesias. Toda vez que acabei em uma sala de cirurgia, me disseram que eu gritava ‘mandem embora os médicos! Mandem embora os soldados!’ Lá revivo todo o campo, o que sofri, o que vi.
Auschwitz nunca desaparece. E preciso lembrar disso, nisso tenho muita confiança nos jovens, que ouvem e entendem, e retribuem o esforço que faço em lembrar.
Porque eles são as novas testemunhas. Liliana Segre diz ‘depois de nós, o esquecimento’, mas eu acredito nas novas gerações, que nunca serão fascistas. Nada é inútil, o relato é útil, mesmo que seja um peso enorme sobre os ombros dos sobreviventes.
Tendo sobrevivido a experiências semelhantes, conte-nos como se vive depois.
Ah, você fica marcado para a vida toda. É uma experiência que nunca se cura, porque não se pode ser curado daquelas experiências. O pogrom... pense naqueles duzentos jovens que estavam dançando naquela rave e foram mortos no local ou sequestrados. Se não é nazismo, o que é?
A senhora tem medo?
Sim. Uma espessa névoa de racismo, ódio e discriminação está retornando em toda a Europa. E agora, Israel. Os judeus já sofreram demais e são poucos. Israel tem o direito de existir e tudo o que está acontecendo lá é muito, muito grave. O mundo enlouqueceu, como diz o Papa. E as crianças... Todos dizem que as crianças são inocentes e intocáveis, mas o que estamos vendo é o cúmulo da crueldade.
Mas existe um máximo de crueldade?
Antigamente, as guerras eram diferentes. Eram um confronto de exércitos, mas hoje há horrores sempre novos, os massacres, os estupros de crianças diante das suas mães, como aconteceu na Ucrânia. As mulheres violentadas...
Isso aconteceu também com os judeus. Os pogroms, o Holocausto.
Aqui é preciso ter cuidado e não confundir. Auschwitz foi único, dizia Primo Levi, e eu também digo. O que está acontecendo na Ucrânia, o que está acontecendo em Israel, são horrores cada vez piores, mas diferentes. Horrores que me chocam, mas não são comparáveis ao extermínio de um povo, planejado cientificamente.
A aniquilação… Você se lembra dos dentes de ouro extraídos dos cadáveres, dos cabelos usados para encher os colchões e os macacões térmicos dos aviadores. Você se lembra da exploração industrial dos mortos, que eram utilizados como matéria-prima.
A senhora tem parentes em Israel?
Netos e bisnetos. Um está desaparecido, não sabemos onde está. Mas sinto por todos, não apenas por ele. Eu sei o que significa o sofrimento de todos, não conheço apenas o meu. E certamente não me regozijo pela morte de um palestino. Voltei dos campos sem ódio, sem desejo de vingança. Depois da libertação, também dei comida a alguns prisioneiros alemães, do outro lado da cerca. Estávamos num campo de trânsito e eles eram os prisioneiros. Tinham as panelas vazias, eu dei a eles o pouco que tinha. A vingança não serve para nada.
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Edith Bruck: “Matam também as crianças como faziam os nazistas, mas a vingança não serve para nada” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU