12 Setembro 2023
Duzentos anos após a morte do Pontífice que enfrentou Napoleão e que direcionou para sempre a história católica com suas escolhas.
O artigo é de Roberto Regoli, diretor do Departamento de História da Igreja da Pontifícia Universidade Gregoriana, publicado por Il Foglio, 27-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O cordeiro e a águia se encontraram: Pio VII e Napoleão se enfrentaram. Duas imagens e simbologias de animais que dizem muito de dois protagonistas da história do início do século XIX. É o momento da grande mudança de época, da cristalização dos seguidores da Revolução Francesa à síntese criativa da Restauração. Trata-se de uma mudança de época, que viu em ação grandes homens, não só como Napoleão, mas também como Klemens von Metternich. Estamos numa época de gigantes da história. E neste período o Papa Pio VII tomou decisões que não só condicionaram, mas propriamente direcionaram a vida da Igreja do seu tempo e também na contemporaneidade, até aos dias de hoje.
O seu antecessor, Pio VI, com a invasão francesa do Estado Pontifício e de Roma (1798) havia perdido o seu poder temporal, o que era sem dúvida um condicionamento político, mas sem dúvida também uma premissa de liberdade. É o tempo do exílio papal, da dispersão dos cardeais (dois deles por covardia também renunciaram ao título e à posição) e da precariedade geral da Igreja (parecia o fim da vida religiosa). Assim Pio VI morria prisioneiro dos franceses, exilado em Valence, em 1799, aclamado pelos jornais da época como o último Papa da história, ainda por cima ridicularizado com o título de “cidadão” Braschi.
O catolicismo romano não havia acabado, entretanto. Só precisava ser relançado. E depois de meses de um conclave bloqueado por vetos, desejos cardinalícios de serem eleitos Papa e não veladas vaidades de serem pelo menos os seus grandes eleitores, no final os cardeais elegeram o cardeal beneditino Barnaba Chiaramonti em março de 1800. Não era a primeira escolha, nem mesmo a segunda. Mas agora o papel de liderança do catolicismo recaia sobre ele, numa época da história em que Roma é cada vez mais central nas dinâmicas internacionais e nacionais dos fiéis. Pio VII, apoiado pelo seu cardeal de confiança Ercole Consalvi, foi sem dúvida o artífice da reconciliação da Igreja com o legado cultural da Revolução Francesa (basta pensar em quando consagrou Napoleão imperador em Paris, em 2 de dezembro de 1804). Um acordo difícil (especialmente pela liberdade de culto), mais sofrido do que desejado, mas de qualquer forma aceito e no final defendido por aquele que mais tarde quis revertê-lo.
Na historiografia antiga e recente, Pio VII costuma ser lembrado em referência a Napoleão, considerado o seu destino. Napoleão, que havia invadido Roma, aprisionado o manso Pio e também os cardeais e os prelados leais a ele, finalmente partiu por sua vez para o exílio, para Elba e depois para Santa Helena. E ele não retornou.
No final, Pio VII parece ter vencido Napoleão. Mas não é assim. Não só porque o legado napoleônico também permaneceu dentro da Igreja, mas por muito mais. Pio VII é vencedor porque Napoleão perdeu. O Papa e a sua comitiva estavam certos em exaltar a ação da Providência divina na libertação do pontífice do cativeiro em 1814-1815, porque eles, os eclesiásticos, não tinham conseguido nada. Pelo contrário, até o Colégio cardinalício havia se dividido entre cardeais vermelhos, fiéis ao imperador, e cardeais negros, fiéis às prerrogativas do Papa. O Papa é o vencedor porque outro perdeu. Não é uma vitória pessoal. E esta é realmente uma típica história de Igreja… Pelo bem da verdade, deve-se reconhecer que todas as vitórias do Papa da época se deveram a outros. Mesmo a maior vitória, aquela sobre a Igreja Galicana que foi superada com a Concordata de Paris de 1801 que permite ao Papa valer-se de um poder nunca exercido até então: demitir cerca de quarenta bispos franceses sem o devido processo canônico. E isso só foi possível graças à determinação de Napoleão. Para a Igreja Católica, Napoleão não foi apenas um momento ou um parêntese, mas uma verdadeira virada rumo à centralização prática e afetiva dos fiéis (incluindo os bispos) sob o Papa. Provavelmente o Cardeal Caprara, legado papal em Paris, não errou ao introduzir para o dia 15 de agosto a festa de São Napoleão mártir, soldado romano (!). Não errou porque o imperador foi um “benfeitor” determinante ao levar a Igreja para a modernidade pós-revolucionária e o Papado para a sua época de ouro.
No entanto, Pio VII teve de enfrentar uma nova época da sua vida após a prisão napoleônica (1809-1814) e os sucessos no Congresso de Viena (1814-1815), que lhe permitiram recuperar quase integralmente o Estado da Igreja. É o tempo da Restauração, que não é apenas um fenômeno político: é a época do romantismo e do sentimento religioso romântico, que tanto deve à cultura francesa. Basta pensar em Joseph de Maistre, mas também em Félicité de La Mennais. O que significava restaurar? Não foi um retorno ao passado, mas sim um necessário e árduo redde rationem de uma geração que tinha que se distanciar de seu passado e medir-se com a extraordinária carga de inovação que investira toda a Europa na era napoleônica, depois da Revolução Francesa entendida como um dilúvio de Noé, do qual brotou um mundo totalmente novo. Foi uma proposta totalmente original por parte do Papado, que ao mesmo tempo visava a reforma e restauração da Igreja. É um ícone disso, em Roma, a Basílica de San Paolo fuori le mura, destruída em julho de 1823 por um incêndio, precisamente nos dias de agonia de Pio VII.
No dilema da reconstrução, iniciada pelo seu sucessor Leão XII, sentiu-se a necessidade de salvaguardar não só a tipologia tradicional da basílica, mas também os materiais de construção originais e o antigo método de reutilização do revestimento. Tal procedimento técnico tornava-se o método para garantir a continuidade com o antigo, tecendo na trama de reconstrução os testemunhos da história milenar do edifício perdido. Isso teria satisfeito aquela exigência de continuidade entre o antigo e o moderno, que se sentia urgentemente necessária a explicitar desde os primeiros anos da Restauração.
No século XIX ocorreu essa operação cultural de novo uso, nova reproposição e repensamento do antigo, após a mudança radical e irreversível provocada pela Revolução Francesa. Não se tratou de retroceder os ponteiros (que é uma operação impossível). O Papado da época tinha ao mesmo tempo a consciência da extraordinária oportunidade de construir algo completamente novo e a consciência das dificuldades de estabelecer alguma forma de continuidade entre o presente e o passado, próximo e remoto. Pio VII não só encarnou essa consciência, mas foi o seu implementador. Vale a pena lembrar essa sua obra 200 anos após sua morte, que aconteceu em 20 de agosto de 1823.
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Pio VII, um Papa muito subestimado que marcou uma virada na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU