"As lições aprendidas com os acontecimentos recentes no Brasil indicam que os regulamentos e a legislação ambiental precisam ser bem protegidos contra mudanças repentinas."
O artigo é de Geraldo Wilson Fernandes, Fábio de Oliveira Roque, Stephannie Fernandes, Carlos Eduardo de Viveiros Grelle, José Manuel Ochoa-Quintero, Tiago Shizen Pacheco Toma, Evaldo Ferreira Vilela e Philip Martin Fearnside, publicado por Amazônia Real, 08-08-2023.
Geraldo Wilson Fernandes é professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte, MG e integrante do Centro de Conhecimento sobre Biodiversidade-Brasil. Ele possui graduação em ciências biológicas pela UFMG e mestrado e doutorado em ecologia pela Northern Arizona University, E.U.A. Foi professor visitante na Stanford University, a University of Alberta e a Universidad de Sevilla. É pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Investiga o desaparecimento de abelhas e reflexo na polinização, produção de mel e própolis e trabalha sobre vários temas na área de ecologia e meio ambiente.
Fábio de Oliveira Roque é professor associado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em Campo Grande, MS, integrante do Centro de Conhecimento sobre Biodiversidade-Brasil e membro do Center for Tropical Environmental and Sustainability Science (TESS) na James Cook University, Cairns, Austrália. Foi secretário-executivo do Programa de Biodiversidade do Estado de Mato Grosso do Sul. Atualmente é co-coordenador do Freshwater BON-Latin America e membro da coordenação do Programa Brasileiro de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio).
Stephannie Fernandes e aluna doutorado na Florida International University, Miami, FL, E.U.A. Suas pesquisas estão na área de ecologia política, visando descobrir como os arranjos institucionais e as diferentes partes interessadas se relacionam com o desenvolvimento e a conservação dos recursos hídricos.
Carlos Eduardo de Viveiros Grelle possui doutorado em Ciências Biológicas (Zoologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atualmente éprofessor associado. Ele é integrante do Centro de Conhecimento sobre Biodiversidade-Brasil.
José Manuel Ochoa-Quintero possui doutorado em zoologia pela University of Cambridge, Inglaterra. Ele é bolsista na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, e é associado ao Instituto de Investigación de Recursos Biológicos Alexander von Humboldt, Bogotá, Colômbia.
Tiago Shizen Pacheco Toma possui doutorado em ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele é bolsista PNPD/CAPES na Universidade do Estado da Bahia e está associado à Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. Ele é integrante do Centro de Conhecimento sobre Biodiversidade-Brasil.
Evaldo Ferreira Vilela possui graduação em agronomia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestrado em entomologia pela ESALQ/USP e doutorado em ecologia química pela University of Southampton, Inglaterra. Atualmente é professor Voluntário do Programa de Pós-Graduação da UFV, onde foi Professor Titular e Reitor. Foi Chefe do Departamento de Biologia Animal e exerceu vários outros cargos na UFV e no governo de Minas Gerais, inclusive chefiando a Secretaria de Ciência e Tecnologia e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Já foi presidente de CNPq. Realizou pesquisas no Japão e na Alemanha e é autor de oito livros e mais de cem artigos científicos. Foi pesquisador 1A de CNPq e é membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É pesquisador 1A de CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007.
Em 17 de junho de 2023 publicamos um trabalho no “foro das políticas públicas” na revista Perspectives in Ecology and Conservation [1] sobre a interconexão entre democracia e a agenda ambiental, disponível aqui. O texto atual traz este conteúdo em português.
As agendas sustentáveis são frequentemente ameaçadas por pontos de vista políticos divergentes. Isso foi evidenciado pela recente tentativa de golpe no Brasil. A Agenda Mundial de Desenvolvimento Sustentável 2030 enfrenta diversos desafios e depende da salvaguarda das instituições e da própria democracia. Para países megadiversos como o Brasil, fortalecer o nexo entre democracia e governança é fundamental.
Em 08 de janeiro de 2023, partidários do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram as sedes dos três poderes do governo federal em uma tentativa fracassada de golpe (Fig. 1). Isso deu urgência à compreensão do valor e do papel da democracia, incluindo seu papel na sustentabilidade ambiental. As atuais instituições democráticas brasileiras ainda não haviam vivenciado um ato dessa gravidade, e o governo presidencial que tomou posse em 1º de janeiro de 2023 respondeu rapidamente à tentativa de golpe [2]. Investigações preliminares têm sugerido o envolvimento de diversos setores no financiamento desses atos, incluindo grupos contrários às políticas ambientais [2], como o grupo conhecido como “as maçãs podres do agronegócio” [3]. A investigação e punição dos grupos envolvidos é fundamental para o futuro da democracia e consequentemente da política ambiental brasileira nos próximos anos. Isso inclui uma participação efetiva do Brasil na Agenda Mundial de Desenvolvimento Sustentável 2030 e na Convenção sobre Diversidade Biológica.
Manifestantes fazem ato contra governo no dia 8 de janeiro 2023. (Foto: Joedson Alves | Agência Brasil)
A tentativa de golpe contrasta com as recentes notícias positivas no Brasil. O novo governo presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (“Lula”) criou novos ministérios como o da Igualdade Racial e dos Povos Originários. A agenda do governo Lula dá um sinal claro da intenção de implementar políticas de redução da pobreza, das desigualdades e de fortalecimento do direito à terra e à saúde, essas sendo medidas fortemente alinhadas à Agenda de Desenvolvimento Sustentável. Por outro lado, o governo Lula enfrenta muitos desafios [4, 5]. Conciliar a produção de alimentos, que é a base para a segurança alimentar global, e a conservação da biodiversidade e a preservação ambiental é uma necessidade absoluta. Isso depende do desenvolvimento científico e tecnológico e do entendimento entre os diferentes segmentos da sociedade em uma agenda que promova uma prosperidade justa e inclusiva. A segurança alimentar e a conservação da biodiversidade também são essenciais para alcançar a ambiciosa meta da abordagem “One Health”. O diálogo transministerial será fundamental para a construção de sinergia entre os setores, e acreditamos que as questões ambientais são centrais nesse esforço, por exemplo, para as sinergias entre produção de alimentos, segurança alimentar e proteção da biodiversidade.
As relações entre democracia, governança e a conservação da biodiversidade são complexas e instáveis em muitos países ocidentais. As evidências geralmente indicam que países democráticos com instituições fortes e governança em várias escalas são mais eficazes na implementação de políticas ambientais [6], incluindo aquelas voltadas para a redução do desmatamento [7, 8]. Durante as transições entre governos presidenciais, muitas vezes há um relaxamento das regulamentações ambientais, o que aumenta o desmatamento e outras formas de danos [9]. A ideia geral é que a democracia com participação popular e instituições funcionais pode controlar a corrupção, implementar legislação construtiva e garantir a eficácia do governo em vários setores, incluindo o meio ambiente [10]. Essas relações são amplamente mediadas pelo crescimento econômico [11] e por movimentos que influenciam valores e agendas políticas em questões ambientais. Guerras, golpes políticos e terrorismo podem impactar fortemente essas relações, com consequências negativas para as políticas nacionais e ações de conservação, particularmente nas jovens democracias frágeis em muitos países latino-americanos [13, 14]. Alguns desses países estão entre os 10 principais países megadiversos do planeta, como Brasil e Colômbia [14]. A recente tentativa de golpe no Brasil é um exemplo desse desequilíbrio crítico.
O terrorismo e os regimes ditatoriais são marcados por políticas que favorecem grupos individuais (muitas vezes famílias ricas específicas) em detrimento da proteção ambiental. Democracias imaturas também podem levar a tragédias comuns, em parte devido ao favorecimento de interesses corporativos [6]. Como cientistas que trabalham com questões ambientais no Brasil, alertamos que as relações entre democracia, governança e agenda ambiental precisam ser fortalecidas. Isso só pode ser alcançado com o fortalecimento das instituições democráticas e o envolvimento popular por meio da conscientização, votação e participação. Uma chamada semelhante a esta foi publicada quando o Brasil já estava em profunda crise após o impeachment de Presidente Dilma Rousseff e estava prestes a eleger o Bolsonaro [15]. A partir daí, a situação aqui destacada se agravou. O governo presidencial recém-empossado no Brasil tem perspectivas positivas de consolidação e ponte entre setores, mas ameaças persistentes exigem que permaneçamos vigilantes.
A disseminação de notícias falsas aumenta a equação negativamente, e o Brasil é um exemplo lamentável. As notícias falsas e a desinformação foram usadas como estratégias por Bolsonaro, seguindo o exemplo do ex-presidente americano Donald Trump [16]. Durante o governo 2019-2022 de Jair Bolsonaro, o negacionismo foi fortalecido a níveis perigosos e enfraqueceu os avanços ambientais anteriores.
As sociedades nacionais e globais precisam salvaguardar as políticas e instrumentos públicos que foram criados para proteger a biodiversidade e alcançar outras metas de desenvolvimento sustentável em países megadiversos. As lições aprendidas com os acontecimentos recentes no Brasil indicam que os regulamentos e a legislação ambiental precisam ser bem protegidos contra mudanças repentinas. Por exemplo, não deveria existir a oportunidade de abrir terras indígenas para mineração, sendo a recente catástrofe humanitária Yanomami um claro exemplo [17], nem deveria permitir que o desmatamento aumente na Amazônia e em outras regiões importantes. A proteção da vida e a sobrevivência a longo prazo devem ser questões de estado, e não estratégias de gestão que podem mudar com cada governo presidencial. A única maneira pela qual a justiça ambiental pode ser alcançada e mantida a longo prazo em países megadiversos é de salvaguardar as instituições e protegê-las contra mudanças inesperadas que afetam as democracias. Devemos estar cientes dessas linhas vermelhas, pois essa é a única maneira de as sociedades se protegerem contra ameaças crescentes que agora são perpetuadas por meio de notícias falsas nas mídias sociais. [18]
[1] Fernandes GW, Roque, FO, Fernandes S, Grelle CEV, Ochoa-Quintero JM, Toma, TSP, Vilela EF & Fearnside PM (2023) Brazil’s democracy and sustainable agendas: A nexus in urgent need of strengthening. Perspectives in Ecology and Conservation. Disponível aqui.
[2] Phillips T (2023) After the rampage: Brazil’s new leaders to fight hard in wake of ‘insane’ coup attempt. The Guardian, 15 de janeiro de 2023. Disponível aqui.
[3] Rajão R, Soares-Filho B, Nunes F, Börner J, Machado L, Assis D, Oliveira A, Pinto L, Ribeiro V, Rausch L & Gibbs H (2020) The rotten apples of Brazil’s agribusiness. Science 369: 246-248. Disponível aqui.
[4] Li Q & Reuveny R (2006) Democracy and environmental degradation. International Studies Quarterly. 50: 935-956. Disponível aqui.
[5] Peres CA, Campos-Silva J & Ritter CD (2022) Environmental policy at a critical junction in the Brazilian Amazon. Trends in Ecology & Evolution 38: 113-116. Disponível aqui.
[6] Fearnside PM (2023) The outlook for Brazil’s new presidential administration. Trends in Ecology & Evolution 38: 387–388. Disponível aqui.
[7] Borges de Lima I & Buszynski L (2011) Local environmental governance, public policies and deforestation in Amazonia. Management of Environmental Quality 22: 292-316. Disponível aqui.
[8] Carvalho WD, Mustin K, Hilário RR, Vasconcelos IM, Eilers V & Fearnside PM (2019) Deforestation control in the Brazilian Amazon: A conservation struggle being lost as agreements and regulations are subverted and bypassed. Perspectives in Ecology and Conservation 17: 122-130. Disponível aqui.
[9] Salazar A, Sanchez A, Dukes JS, Salazar JF, Clerici N, Lasso E, Sánchez-Pacheco SJ, Rendón ÁM, Villegas JC, Sierra CA, Poveda G, Quesada B, Uribe MR, Rodríguez-Buriticá S, Ungar P, Pulido-Santacruz P, Ruiz-Morato N, & Arias PA (2022) Peace and the environment at the crossroads: Elections in a conflict-troubled biodiversity hotspot. Environmental Science & Policy 135: 77-85. Disponível aqui.
[10] Sommer JM (2022) The impacts of corruption on forest loss: A review of cross‐national trends. Sociology Compass 16: art. e13016. Disponível aqui.
[11] Gaarder A & Vadlamannati KC (2017) Does democracy guarantee (de)forestation? An empirical analysis. International Area Studies Review 20: 97-121. Disponível aqui.
[13] Hakim P & Lowenthal AF (1991) Latin America’s Fragile Democracies. Journal of Democracy 2: 16-29. Disponível aqui.
[14] Negret PJ, Sonter L, Watson JE, Possingham HP, Jones KR, Suarez C, Ochoa-Quintero JM & Maron M (2019) Emerging evidence that armed conflict and coca cultivation influence deforestation patterns. Biological Conservation 239: art. 108176. Disponível aqui.
[15] Dobrovolski R, Loyola R, Rattis L, Gouveia SF, Cardoso D, Santos-Silva R, Goncalves-Souza D, Bini LM & Diniz-Filho JAF (2018) Science and democracy must orientate Brazil’s path to sustainability. Perspectives in Ecology and Conservation, 16: 121-124. Disponível aqui.
[16] Froehlich TJ (2021) A disinformation-misinformation ecology: The case of Trump. Capítulo 2 In: Višňovský J & Radošinská, J. (Eds.), Fake News is Bad News—Hoaxes, Half-Truths and the Nature of Today’s Journalism. Intech Open. Art. 74337. Disponível aqui.
[17] John T & Pedroso R (2023) The Yanomami people lived in harmony with nature. Invaders turned their lives into a fight for survival. CNN, 11 de fevereiro de 2023. Disponível aqui.
[18] Agradecemos a José Diniz-Filho pelos comentários construtivos ao manuscrito. Agradecemos também ao CNPq, FAPEMIG e MCTI pelos apoios concedidos. Este texto é traduzido do trabalho dos autores [1] na revista Perspectives in Ecology and Conservation. Disponível aqui.