Como uma gota de água nascida em um ponto desolado no oceano Atlântico pode ser levada pelos ares até o Caribe e afetar uma comunidade indígena no norte da Colômbia?
A reportagem é de Santiago Wills, publicada por La Guajira e reproduzida por Sumaúma, 09-08-2023. A tradução é de Paulo Migliacci.
Esta reportagem faz parte do projeto Colapso, da Dromómanos, uma produtora de jornalismo independente sediada no México.
Quando falamos sobre a crise do clima, raramente pensamos nos ventos. Esquecemos que o ar em movimento é o maior fecundador do planeta, o leito celeste do maior rio do mundo, o fator que determina a posição de nossas casas, a sensação térmica de nossas cidades e a existência de todos os seres na Terra. Hoje, assim como a temperatura, o nível do mar e a biodiversidade, os ventos estão mudando. Uma variação de alguns quilômetros por hora em sua velocidade pode ter consequências graves para nossas vidas
Para Karim Ganem Maloof
Cerca de oito minutos antes do amanhecer do dia 2 de outubro de 2022, fusões nucleares no centro do Sol emitiram um feixe de luz que disparou na direção da Terra. Por volta das 6 horas da manhã, depois que parte do feixe foi absorvida, refletida e espalhada no ar, no vapor da água e em meio a vários poluentes, a luz chegou a um ponto desolado no oceano Atlântico, a cerca de 2 mil quilômetros de Cabo Verde. A temperatura na área começou a aumentar e uma minúscula gota de água – pequena o suficiente para que a gravidade não a reclamasse de volta – subiu acima da superfície, levada por uma brisa.
Pouco a pouco, em redemoinhos e rajadas, a gota de água foi carregada para cima pelo vento. Ultrapassou os 50 metros, o limite habitual para o voo das gaivotas durante o dia, superou a árvore mais alta do planeta, alcançou a Torre Eiffel e, por volta do meio-dia, atingiu a altitude de 780 metros acima da superfície do mar – apenas meia centena de metros abaixo do topo do hotel Burj Khalifa (em Dubai), o edifício mais alto do mundo.
À medida que a gota subia, os ventos alísios, correntes contínuas nascidas da evaporação nos trópicos e da rotação da Terra, a empurravam na direção da América, assim como fizeram 530 anos atrás com as caravelas de Colombo. Entre 2 e 5 de outubro, a pequena gota de água percorreu cerca de 1,6 mil quilômetros. Durante a noite e as primeiras horas da manhã seguinte, os ventos se curvaram sutilmente para o sul sobre Roseau, a capital de Dominica (uma ilha no mar do Caribe), em um céu relativamente ensolarado. Impulsionada por correntes cada vez mais rápidas, a gota nascida perto de Cabo Verde, agora um pouco mais pesada, mas não o suficiente para retornar às ondas, se dirigiu para o sudoeste, em direção à Venezuela e ao norte da Colômbia.
Em termos gerais, a viagem se assemelhava àquela que trilhões de gotículas microscópicas de água fazem todos os dias nessa época do ano. A gota percorreu um caminho aéreo conhecido, por assim dizer. Entretanto, havia certas diferenças em sua rota e, nos Estados Unidos e na península de La Guajira, no norte da Colômbia, alguns meteorologistas começaram a detectá-las com preocupação.
Em uma tarde do início de outubro, aterrissei em La Guajira, um departamento árido na costa caribenha da Colômbia, acompanhado pelo fotógrafo Sebastián Di Domenico. Em Riohacha, a capital regional, rajadas de vento levantavam redemoinhos de areia ao nosso redor. Sem aviso, um temporal fez meu chapéu voar sobre a tapeçaria de conchas que demarca a fronteira entre a água e a terra. No horizonte, nuvens cinzentas escureciam o céu. Gaivotas, cormorões e pelicanos ascendiam usando correntes verticais de ar para ter uma visão melhor das águas. No calçadão, o cabelo de uma menina imitava o balanço das palmeiras que, impulsionadas pelo vento, emolduravam a cidade por trás dela. À medida que a noite se aproximava, a maré consumia cada vez mais a areia da praia e as ondas arrebentavam com mais força. “Hoje, retiramos da água um menino de 9 anos que estava se afogando”, me disse um salva-vidas que estava deixando seu posto de vigilância. “Ele está no hospital. Está em mau estado. A praia fecha às 17 horas.” Nossa viagem tinha como objetivo perseguir o vento: senti-lo, tocá-lo, cheirá-lo, fotografá-lo. Se isso era possível, seria ali.
Em 2000, a Empresas Públicas de Medellín (EPM) e a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ), uma companhia estatal alemã dedicada à cooperação internacional, instalaram duas estações de monitoramento eólico em La Guajira. A análise de 18 meses de dados concluiu que o departamento — divisão administrativa que corresponde ao estado no Brasil — era ideal para a exploração de energia eólica, com velocidade média para o vento de cerca de 9,8 metros por segundo durante todo o ano, quase o dobro da média de Chicago, a “cidade do vento”. A partir daquele momento, a energia desse tipo passou a representar uma promessa de desenvolvimento para La Guajira, o quarto departamento mais pobre da Colômbia.
A energia eólica também é uma das grandes apostas do governo do presidente Gustavo Petro na transição energética. De acordo com Belizza Janet Ruiz, então vice-ministra de Minas e Energia, se tudo correr como o governo espera, até o final do mandato serão produzidos 5 mil gigawatts de energia, aproximadamente 6% da matriz de geração de energia colombiana, ou o suficiente para fornecer energia a um país como a Nicarágua. Isso substituiria quase 700 mil toneladas de dióxido de carbono, ou o total de emissões de 437,5 mil colombianos, de acordo com seus cálculos. Em janeiro de 2023, no entanto, Ruiz renunciou ao cargo. Entre os motivos, ela citou a hostilidade da ministra de Minas e Energia, Irene Vélez, a inclusão de dados falsos nos relatórios e a seleção de funcionários que não atendiam aos requisitos técnicos exigidos por lei para os conselhos de administração e outros cargos. No fim de junho, apesar dos problemas no ministério, Petro aumentou consideravelmente sua aposta energética na energia eólica. “Com apenas a energia limpa de La Guajira em seu máximo, poderíamos substituir toda a geração de eletricidade da Colômbia, inclusive as usinas hidrelétricas”, ele disse durante a assinatura de um pacto com comunidades indígenas para autorizar a construção de uma linha capaz de transmitir energia do norte para o centro do país.
Em julho, Irene Vélez, a ministra da pasta encarregada de executar essa visão, renunciou em meio a um escândalo de tráfico de influência envolvendo seu marido. Pelo que se sabe, Petro a nomeou devido à sua proximidade com o pai de Vélez. Para substituí-la, o presidente nomeou Andrés Camacho, um engenheiro e ex-skinhead que, ao se candidatar a outro cargo no governo, apresentou um currículo no qual afirmava ter 22 anos de experiência profissional. Desse total, ele só conseguiu comprovar nove. Camacho atribuiu o mal-entendido a um “erro de registro”.
De acordo com Lyall Watson, botânico, zoólogo e antropólogo sul-africano, em Heaven’s Breath: A Natural History of the Wind [A Respiração dos Céus – Uma História Natural do Vento], a bíblia do vento, estima-se que aproximadamente 2% da energia que a Terra recebe do Sol seja convertida em energia cinética na forma de vento. Isso significa que, a cada momento, a energia produzida pelo vento na atmosfera seria suficiente para suprir as necessidades energéticas do planeta inteiro. O problema é que o vento está distribuído por toda a atmosfera, e não é fácil capturá-lo. Atualmente, as energias eólica e solar atendem a 10% das necessidades energéticas mundiais. A maioria dos países está em uma corrida para aumentar essa participação. (As apostas relacionadas ao vento não se limitam à energia: um retorno ao transporte marítimo movido a vento também foi proposto para substituir as emissões do setor de navegação internacional.)
No entanto, há várias suposições problemáticas por trás desse objetivo e dos planos ambiciosos de presidentes como Petro. Por um lado, o histórico de desenvolvimento de usinas eólicas em países como a Colômbia vem sendo prejudicado por dificuldades culturais, burocráticas e sociais. Sua implementação na Colômbia vem avançando de forma morosa: hoje, há pelo menos cinco dezenas de usinas eólicas no papel e duas em operação. Por outro lado, o vento – esse motor que durante séculos serviu fielmente a agricultores, navegadores e aeronautas – parece estar mudando, em grande parte por causa da crise do clima.
O vento nasce de um balé conduzido por uma estrela. As rajadas que sentimos acariciar nossa pele são consequência de um eterno jogo de perseguição entre o ar quente e o ar frio. Quando os raios solares aquecem a mistura invisível de gases que compõem um segmento do ar, as moléculas desses gases começam a se movimentar mais rápido e a se afastar umas das outras. O espaço entre as moléculas aumenta e essa porção de ar se torna menos densa do que a matéria ao seu redor, de modo que, como acontece em um balão de ar quente, ela sobe. O oposto ocorre quando uma porção de ar esfria: as moléculas se movem mais lentamente e se aproximam, e o segmento de ar desce, pois se torna mais denso e pesado. Quando uma massa de ar sobe, o espaço que ela ocupava fica livre. Cria-se, assim, uma zona de baixa pressão, que o ar ao redor procura ocupar (os gases são fluidos, bem como os líquidos, e procuram preencher o espaço livre). Esse movimento, que também acontece no sentido oposto, quando o ar frio desce e cria uma zona de alta pressão, é o que chamamos de vento.
Os raios solares golpeiam o planeta em ângulos diferentes, a depender da inclinação e da posição da Terra. Em lugares como Riohacha, nos trópicos, os raios chegam de forma quase perpendicular. O ar se aquece mais do que no resto do mundo, expande-se e sobe quase 15 quilômetros acima da superfície. O oposto ocorre nos polos em diversas épocas do ano. Essas diferenças de temperatura, aliadas à rotação do planeta, são responsáveis por correntes de ar contínuas em escala global, como os ventos do oeste, os ventos alísios e as jet streams (correntes de jato), que circundam o planeta na atmosfera superior em velocidades de centenas de quilômetros por hora.
Há algumas décadas, o ritmo dessa dança impulsionada pelo sol vem desacelerando. Diversos estudos científicos detectaram mudanças nas velocidades do vento na superfície – medidas 10 metros acima do solo – que não podem ser atribuídas a variações cíclicas ou simples anomalias. Em 1999, uma análise sobre quase 30 anos de dados constatou uma redução média na velocidade do vento. Estudos realizados na Austrália, na Ásia, na Europa e na América chegaram a resultados semelhantes. Por causa deles, começou a se falar de uma redução de cerca de 10% na velocidade média do vento em todo o mundo (havia casos mais preocupantes: na China, por exemplo, a redução foi de cerca de 29%) e de um fenômeno não totalmente explicável chamado global terrestrial stilling [literalmente, calmaria terrestre mundial]. Em 2021, o norte da Europa sofreu uma escassez de ventos. De acordo com uma análise, as velocidades do vento na superfície naquela parte do planeta diminuíram em média 15%. Isso afetou especialmente os países que mais progrediram na transição energética. Em setembro de 2020, 18% da energia do Reino Unido foi gerada por usinas eólicas, mas, no mesmo mês de 2021, apenas 2% eram provenientes dessa fonte de energia alternativa, para oferecer um exemplo.
Na Colômbia, não existem grandes estudos sobre as mudanças na velocidade do vento na superfície, de acordo com a engenheira Yolanda González Hernández, então diretora do Instituto de Hidrología, Meteorología y Estudios Ambientales (Ideam), a agência governamental encarregada de monitorar, analisar e ajudar a mitigar os desastres climáticos. Mesmo em La Guajira, cuja economia pode muito bem depender do vento no futuro, não há dados sobre o assunto. De qualquer forma, o padrão é global: os ventos estão mudando, e há indícios de que o fenômeno não está ocorrendo apenas perto da superfície.
Assim como acontece com o nível do mar e a temperatura – talvez as consequências mais frequentemente mencionadas da crise climática –, as mudanças estão ocorrendo em ritmo que dificulta a coleta de dados suficientes. O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), da ONU, calculou reduções e aumentos de cerca de 10% na velocidade dos ventos em diferentes partes do mundo, sob um cenário de uma alta de 1,5 grau Celsius na temperatura com relação aos níveis pré-industriais, o que já é inevitável mesmo a curto prazo. À primeira vista, as variações são mínimas. Ou pelo menos esse seria o consolo inicial. Mas se acreditamos nisso é simplesmente porque nos esquecemos da – ou não conhecemos a – extensão dos movimentos do ar na Terra.
“As pílulas de otimismo estão em falta”, me disse Juan Fernando Salazar, professor da Escola Ambiental na Faculdade de Engenharia da Universidade de Antioquia, certa tarde em Medellín. “Estamos mudando a termodinâmica da atmosfera”, ele prosseguiu. “E bastam pequenas mudanças para causar coisas graves.”
Julia, a tempestade que vai virar furacão, começa a levar ondas fortes para as praias de Riohacha, capital de La Guajira, na Colômbia. (Foto: Sumauma | Sebastian di Domenico)
Na manhã de 6 de outubro, a pequena gota, que havia surgido quatro dias antes no meio do oceano Atlântico, cruzou o meridiano 65 graus a oeste em uma corrente de ar e cerca de 800 metros acima da superfície da água. À medida que a temperatura aumentava, a gota ascendia sobre o agitado mar do Caribe.
Horas depois, com o sol a pino, a gota estava posicionada entre a República Dominicana e a costa da Venezuela, ao largo de Maracay, impulsionada por rajadas cada vez mais rápidas. Com o tempo, ela havia aumentado de tamanho, ganhando microgramas de peso. Apesar desse crescimento, ela ainda era extremamente leve e os ventos a mantinham no ar sem muito esforço (em média, uma gota de chuva pesa 0,034 grama, menos do que o peso de um cílio). Bilhões de gotas semelhantes, “a substância das nuvens”, como as define Lyall Watson, estavam se movendo ao lado dela na direção da Colômbia.
Por volta das 11 da manhã daquele dia, o Ideam emitiu um alerta sobre uma onda tropical no mar do Caribe venezuelano. Funcionários do instituto identificaram uma massa de ar com baixa pressão movimentando-se a 25 quilômetros por hora na direção oeste. O Ideam tem acesso a cerca de 2,6 mil estações meteorológicas e vários satélites de acesso livre que rastreiam os padrões de vento no mundo todo. Os meteorologistas do instituto identificaram e acompanharam o sistema de baixa pressão por dois dias, e o monitoraram cuidadosamente. De acordo com o Centro Nacional de Furacões, uma divisão do governo dos EUA encarregada de monitorar tempestades tropicais a partir de uma base na Universidade da Flórida que está em contato permanente com o Ideam, havia uma alta probabilidade de que a onda se convertesse no 13º furacão da temporada.
O vento nos governa. Sua presença determina o clima de cada dia, a maneira como nos vestimos e a vida de bilhões de seres, inclusive os humanos. Ele afeta as chuvas – as chuvas não passam, elas são carregadas pelo vento –, a localização de nossas cidades e assentamentos, as formas de nossas casas, pontes e edifícios; a reprodução de dezenas de milhares de espécies de fungos, samambaias, musgos e algas; a sobrevivência de praticamente todos os pássaros, flores, plantas com sementes, aranhas, insetos, répteis, moluscos e mamíferos que aprenderam a planar, voar em correntes de ar ou voar (uma vez me perguntaram como os pássaros voam: em poucas palavras, as asas aceleram massas de ar para baixo e criam força suficiente para contrabalançar o peso do animal e levantá-lo); o rendimento das safras, nossa sensação térmica e o fluxo de bactérias e vírus em todo o mundo; as marés, a poluição do ar e a migração de pássaros, libélulas, borboletas e centenas de espécies de plantas e animais; o formato das dunas, os nutrientes no solo e a extensão dos desastres naturais e humanos.
A vida no planeta depende dos ventos e existe por causa deles e de sua relativa constância, dessa partitura conduzida por uma estrela. A maioria das culturas ao redor do mundo está ciente disso e designou uma ou mais divindades para representá-lo. Os sumérios tinham Enlil, senhor de todos os ventos; os gregos tinham Zeus, deus do trovão, das tempestades e do clima, e os anemi ou anemoi – Noto, Bóreas, Euro e Zéfiro –, os quatro deuses do vento, associados aos pontos cardeais, que Éolo mantinha cativos em sua ilha, de acordo com a Odisseia; os Tainos, na América, tinham Jun Raqan, um deus representado por uma figura de cabeça grande com braços que se movem no sentido anti-horário – a origem da palavra furacão; para os astecas, era Tezcatlipoca, o vento noturno onipresente; e os Wayuu tinham Pulowi, uma divindade feminina associada ao vento e à seca. Há também uma estreita relação entre o vento e o espírito. Em latim, spiritus é uma inspiração ou respiração de um deus; em grego, pneuma é tanto espírito quanto vento; e em árabe e hebraico, ruh é vento e sopro.
“O sopro do universo se chama vento”, escreveu o filósofo taoista chinês Chuang Tzu.
“O vento somos nós, recolhe e recorda todas as nossas vozes, depois as envia para falar e contar histórias em meio às folhas e aos campos”, escreveu Truman Capote. Quando, perto da Terra do Fogo, uma migração de milhões de borboletas o cercou no navio Beagle, Darwin anotou: “…voavam em bandos ou massas de incontáveis milhares, estendendo-se até onde a vista alcançava. Mesmo com a ajuda de um telescópio, não era possível observar um espaço livre de borboletas. Os marinheiros gritavam que ‘estava nevando borboletas’, e de fato parecia que sim”.
“Sem o vento, a maior parte da Terra seria inabitável”, escreve Lyall Watson em Heaven’s Breath.
Colhereiro-Rosado e Garça Branca decolam perto da costa, em busca de alimento. (Foto: Sumauma | Sebastian di Domenico)
O vento é o maior fecundador do planeta: carrega cada um do bilhão de grãos de pólen que anualmente cobrem cada metro quadrado da Terra. Conecta o Polo Norte ao Caribe, a Patagônia à Austrália e o norte da África à Europa e América do Sul. As correntes de vento que transportam a areia avermelhada do Saara causaram chuvas cor de sangue nos países europeus. Homero e Virgílio as mencionam. Em 1859, uma neve carmesim cobriu milhares de quilômetros quadrados na Alemanha. O fósforo da areia vermelha do Saara fertiliza e dá vida à Amazônia.
“Não há água sem vento”, diz um ditado. Todos os rios do mundo correm para o mar, devido à atração gravitacional da Terra. Em média, eles depositam aproximadamente 40 mil quilômetros cúbicos de água por ano, o suficiente para cobrir toda a superfície terrestre da América do Sul com mais de 2 metros de água. A atmosfera repõe essa água na forma de chuva – se isso não acontecesse, os rios secariam –, e o faz por meio de correntes de vento carregadas de água, às vezes chamadas de rios aéreos ou rios voadores (José Marengo, meteorologista peruano e colaborador do IPCC, cunhou o termo há pelo menos 15 anos). Essas correntes são alimentadas pela evaporação da água causada pelo Sol e pela transpiração das plantas, outro fenômeno igualmente importante.
Assim como nós, as árvores transpiram. Na Amazônia, uma árvore saudável de 20 metros de altura pode liberar mil litros de água no ar todos os dias por meio da transpiração. Essa água sobe em forma de vapor e alimenta o rio voador acima dela, que, por sua vez, alimentará os rios e as árvores no solo.
Hoje é possível calcular a trajetória da chuva que caiu em um ponto específico do planeta usando imagens de satélite (os cálculos para este artigo são cortesia do pesquisador Rubén Molina, da SOS-Cuenca). As projeções sobre as trajetórias passadas mostram a importância dos rios aéreos e os perigos associados às mudanças neles. A chuva em uma cidade como Medellín é água que poderia estar nas Antilhas ou em Manaus há uma semana.
As florestas são florestas, as planícies são planícies e os desertos são desertos por causa do vento. Um aumento ou uma diminuição de alguns quilômetros por hora na velocidade do vento pode mudar um ecossistema, criar uma paisagem e determinar se sobreviveremos a uma onda de calor, se ouviremos um pedido de ajuda, se sentiremos o cheiro do fogão a gás que o vizinho esqueceu de desligar, se a chuva cairá sobre nossas cabeças e se uma tempestade tropical se tornará um furacão.
Enquanto a pequena gota nascida nas proximidades de Cabo Verde ganhava velocidade ao passar por La Guajira, Sebastián Di Domenico e eu partimos de Riohacha para Cabo de la Vela, uma pequena cidade balneária conhecida por suas praias, comida e kitesurf. Não muito longe dali estão as duas únicas usinas eólicas em funcionamento na Colômbia.
Sob um céu ensolarado, dirigimos por uma estrada ladeada de espinheiros, moinhos de vento com lâminas de estanho e acéquias repletas de água até Uribia, uma cidade ocre de ruas sem pavimentação conhecida como a capital indígena da Colômbia, pois tem a maior população nativa do país. Noventa e oito por cento de seus quase 190 mil habitantes são parte dos Wayuu, um povo indígena que vive principalmente de pastoreio e comércio na península colombiana de La Guajira e no estado de Zulia, no noroeste da Venezuela.
Mulher Wayuu faz artesanato em Uribia, capital indígena da Colômbia. (Foto: Sumauma | Sebastian di Domenico)
Tomamos café da manhã, comendo arepas e uma mistura de ensopados de cabra, carne bovina e ovelha (não comemos iguana), e depois nos reunimos com Edgar Paz González, uma autoridade tradicional da comunidade Wourre de Wayuu, e Hernán Gómez, subsecretário de Minas e Energia do município entre 2021 e 2022, para falar sobre a história das usinas eólicas na região. Paz nos recebeu em sua casa, nos arredores da cidade, pouco antes de o segundo aguaceiro do dia invadir o céu.
Desde 2015 a comunidade Wourre vem negociando com uma empresa chamada Begonia Power, hoje controlada pela Celsia, parte do Grupo Argos, um dos maiores conglomerados colombianos. A Begonia Power pretende instalar 16 turbinas eólicas – enormes e finos moinhos de vento de três pás que podem transformar a energia eólica em eletricidade – e duas linhas de transmissão em terras pertencentes à comunidade Wourre e a duas outras comunidades Wayuu, a pouco mais de uma hora ao sul de Uribia. “Nascemos, e é uma adaptação psicológica”, disse Paz sobre o vento na região. “Aqui é quente. Já ali você se deita em um chinchorro [rede] e a brisa sopra.”
Os problemas para a construção da usina, batizada de Acacia 2, são emblemáticos da região. Em princípio, a Acacia 2 representa uma oportunidade importante para essas comunidades, porque elas não têm escolas, moradias feitas com material de construção, energia, aquedutos ou acesso constante à água potável (muitas vezes precisam trazer caminhões-tanque de cidades próximas). Em troca da instalação de turbinas em seu território, a empresa deve compensá-las com melhorias em sua qualidade de vida – escolas, casas, poços etc. – e com apoio para a criação de projetos produtivos, a exemplo de artesanato, pecuária e plantações.
A questão não é tão simples, é claro. Para erguerem usinas eólicas, as empresas precisam cumprir várias condições legais, como estudos de impacto ambiental, exigências burocráticas e consulta prévia. Essa última é um direito fundamental que os grupos étnicos e indígenas têm ao tomar decisões sobre projetos que possam afetar uma comunidade. No caso da Acacia 2, havia três comunidades no local escolhido para a construção da usina. A empresa optou por negociar individualmente e realizar consultas prévias com cada uma delas, ainda que, no início, houvesse uma frente comum, de acordo com Edgar Paz. No caso da comunidade dele, a usina ocupará metade do território, especificamente a pastagem de suas vacas, cabras e ovelhas, o principal ganha-pão dos moradores. “Aceitamos esses projetos em um esforço para melhorar o que nos falta e sabendo que os impactos negativos serão significativos para nós”, disse Paz naquela manhã em Uribia. “Para nós, isso não tem preço.”
A licença ambiental para a usina Acacia 2 foi aprovada em 2016. Segundo os engenheiros, a construção da infraestrutura física pode levar de um a dois anos, mas, apesar das inúmeras reuniões entre a comunidade e a empresa, ainda não se chegou a um acordo final sobre a compensação. O Ministério do Interior e o gabinete do prefeito de Maicao deveriam acompanhar as conversas, mas apenas o primeiro esteve presente, disse Paz. E até que cheguem a um acordo nem a construção da usina, nem a construção da escola, nem as outras melhorias prometidas pelo vento poderão começar.
Assim como o Acacia 2, a maioria dos projetos eólicos em La Guajira está progredindo mais lentamente do que o planejado, segundo Hernán Gómez, ex-secretário de Minas e Energia em Uribia. Entre 2018 e 2022, o governo do presidente Iván Duque promoveu quase uma dezena de projetos. Alpha y Beta, o maior deles, terá 50 turbinas eólicas capazes de produzir 504 megawatts, energia suficiente para abastecer 2,5 milhões de colombianos. Elas deveriam ter entrado em operação meses atrás, me disse Gómez em um escritório da prefeitura. O governo local está tentando dar continuidade às negociações, mas não existem recursos suficientes para isso. Há 3,5 mil comunidades registradas, para mais de 50 usinas eólicas, informa Gómez. O gabinete do prefeito recebe cinco ou seis convites por dia para consultas prévias, mas não há capacidade financeira nem funcionários suficientes, concluiu ele antes de nos despedirmos.
Ao meio-dia, pegamos a única estrada que leva de Uribia a Cabo de la Vela. Uma chuva torrencial vinda do leste transformava a estrada em um lodaçal de cor acobreada. Do lado de fora da cabine do utilitário, ventos caprichosos e fortes mudavam a direção da chuva de um momento para o outro. As gotas aguçadas sacudiam as cercas vivas e as paredes de barro dos ranchos Wayuu pelos quais passávamos ao longo do caminho.
O vento havia arrastado a maior parte das nuvens para o mar quando, duas horas depois, vimos as primeiras turbinas eólicas no horizonte. Elas pareciam gigantes esbeltos transmitindo sinais no meio dos campos desolados. Paramos no meio da estrada, que corria paralela aos trilhos da ferrovia de Cerrejón, a maior mina de carvão a céu aberto do mundo.
Parque eólico de Jepírachi, em território Wayuu: primeira usina eólica a entrar em operação na Colômbia. (Foto: Sumauma | Sebastian di Domenico)
À nossa frente, as três pás das turbinas da usina eólica Guajira I, inaugurada no início do ano, giravam, giravam e giravam. Atrás delas, a nordeste, 15 turbinas um pouco menores, na usina eólica de Jepírachi, seguiam a mesma coreografia. Jepírachi – “ventos que vêm do nordeste” em Wayuunaiki, o idioma Wayuu – foi a primeira usina eólica da Colômbia a entrar em operação. Começou a operar em 2004, depois que a Empresas Públicas de Medellín (EPM) a construiu a toque de caixa. As 15 turbinas eólicas – Nordex N60, com capacidade total efetiva de 18,42 megawatts, energia suficiente para abastecer cerca de 9,8 mil residências colombianas – foram instaladas em terras Wayuu. De acordo com uma investigação do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz), uma ONG colombiana, o modelo foi um desastre. A consulta à comunidade foi limitada e não houve transparência sobre os pagamentos que esta receberia ou sobre as melhorias que seriam feitas. A EPM presumiu que a comunidade era “incapaz de administrar dinheiro ou contas” e se reservou o “controle sobre pagamentos ou despesas em espécie e por projeto”, diz a Indepaz. (Já a EPM afirma que “houve um processo extenso e bem-sucedido de consulta prévia” aos Wayuu que vivem na área de influência de Jepírachi.)
Originalmente, a usina eólica deveria encerrar suas operações em 2023, pois sua licença não foi renovada. As turbinas eólicas deveriam ser substituídas por outras mais modernas e mais altas, mas, de acordo com o governo, isso poderia prejudicar os voos que chegam ao aeroporto da mina de Cerrejón, a cerca de 5 quilômetros de distância. No entanto, em julho de 2023, a então ministra de Minas e Energia, Irene Vélez, anunciou que a EPM entregaria a operação do parque às comunidades Wayuu, como parte de uma parceria entre o setor público e o privado. A informação pegou de surpresa até mesmo algumas das comunidades que se tornariam proprietárias de Jepírachi, conforme noticiou o jornal El Espectador.
Em meio a uma leve garoa, cruzamos os trilhos da ferrovia e fomos em direção a Guajira I – com capacidade efetiva de 20 megawatts, para abastecer cerca de 10,6 mil residências. O projeto entrou em operação no início de 2022, após mais de uma década de estudos e negociações com os Wayuu. A Isagen, uma antiga empresa estatal colombiana que agora pertence a um fundo canadense, investiu 75 bilhões de pesos (cerca de 18 milhões de dólares, na época) em sua construção. O presidente Iván Duque foi pessoalmente inaugurá-la. Dias antes de a foto da inauguração ser tirada, as quatro comunidades Wayuu haviam entrado em greve e bloqueado as estradas de acesso para protestar contra o complexo eólico. (Os protestos não pararam com a chegada do governo Petro: em maio de 2023, o Grupo Enel, uma empresa multinacional de energia, suspendeu a construção do Windpeshi, um projeto eólico de 205 megawatts, energia suficiente para abastecer 500 mil casas, por não ter conseguido chegar a um acordo com as comunidades da área.)
Paramos sob uma turbina eólica para tirar fotos. O som das pás lembrava os sopros de ar em uma caverna ou uma máquina de secar mãos ouvida ao longe. Elas estavam girando a 9,5 rotações por minuto. Um grupo de soldados, usando uniformes camuflados para ambiente desértico, se aproximou para perguntar quem éramos. Eles estavam patrulhando a área havia várias semanas. O relacionamento deles com as comunidades é bom, mas estas às vezes têm problemas com as empresas, disseram.
Continuamos pela estrada até outro grupo de turbinas eólicas. Havia cabras caminhando perto da base. Não muito longe dali, três mulheres Wayuu estavam sentadas em uma colina, observando os animais. Suas roupas de cores vivas dançavam com a ventania. O assobio do vento nas hastes das turbinas abafava o murmúrio ocasional das rajadas que vinham do mar.
“Desde que entraram em operação, eu sonho com água”, disse Elba Velázquez, uma mulher Wayuu de 54 anos que mora em uma das comunidades onde o parque foi construído. “Parece água de um riacho, não é?”, ela perguntou. “No começo, eles colocavam cordas nas lâminas para afastar os pássaros e elas soavam como passos, à noite”, disse, em tom levemente incomodado.
As famílias Wayuu sofrem com os incômodos da usina eólica na região. O barulho das turbinas, por exemplo, perturba o sono. (Foto: Sumauma | Sebastian di Domenico)
Em geral, as comunidades não estão satisfeitas com a usina. Algumas pessoas ficaram desempregadas, nos disse a neta de Elba, Karolay Patricia Berrier, 15 anos. Como parte das negociações, foi solicitado que a empresa encarregasse a população local de vigiar o parque. Dessa forma, alguns membros das comunidades teriam empregos permanentes e bem remunerados, uma raridade na região. Mas a Isagen estava considerando dispensar os seguranças e simplesmente colocar câmeras nas turbinas eólicas.
Além disso, as comunidades sentem que não estão recebendo os benefícios da energia eólica. De acordo com a legislação colombiana, 1% das vendas líquidas deve ser distribuído entre a prefeitura do município onde o projeto está localizado (0,4%) e a comunidade (0,6%). Isso se somaria à compensação negociada e às melhorias. Até o momento, a comunidade de Elba recebeu 30 milhões de pesos (cerca de 6 mil dólares), nove casas de alvenaria e uma cisterna melhorada. Mas muitas pessoas tiveram que se mudar e agora precisam conviver com o barulho constante das turbinas eólicas. Em outras palavras, a empresa parece estar ficando com a maior parte dos lucros, quando o acordo deveria ser equitativo.
“Houve sete anos de reuniões, mas só soubemos da realidade do que foi prometido muito mais tarde”, me contou Elba. “Querem que não falemos, que não digamos nada”, ela prosseguiu, enquanto agitava um lenço turquesa para espantar os mosquitos, que tentavam aproveitar os intervalos do vento.
Começou a chuviscar novamente, e Karolay acenou para que a avó fosse embora. Antes de sair, ela olhou para o oceano. Um navio carregado de carvão havia ancorado na costa. No lado venezuelano, a nordeste, uma frente de nuvens escuras estava se aproximando em marcha forçada.
A diferença entre uma tempestade tropical e um furacão é de 1 quilômetro por hora na velocidade do vento. Se a velocidade sustentada da rajada está entre 63 quilômetros por hora e 118 quilômetros por hora, ela é classificada como tempestade. Se a velocidade supera 118 quilômetros por hora, é um furacão. A partir daí, a velocidade determina a categoria, sendo a mais alta a categoria 5, com velocidades acima de 252 quilômetros por hora (o vento mais rápido do mundo, excluídos tornados ou furacões, foi medido em 12 de abril de 1934 no topo do Monte Washington, nos Estados Unidos: 341 quilômetros por hora).
No Atlântico, um furacão sobrevive por cerca de nove dias e pode viajar milhares de quilômetros. A velocidade dos ventos não chega a ser a de um tornado, mas as rajadas são mais constantes e duram mais tempo. Suas ondas podem chegar a 25 metros de altura e, segundo o livro Tropical Meteorology [T.N. Krishnamurti, Lydia Stefanova, Vasubandhu Misr], descarregam uma média de 20 bilhões de toneladas de água por dia, energia equivalente à de meio milhão de bombas atômicas.
É difícil encontrar comparações para o poder destrutivo dos furacões. Um furacão que varreu Bangladesh em 1970 causou entre 300 mil e 500 mil mortes, mais do que o dobro do número de mortos em Hiroshima [no ataque atômico]. Quase um século antes, em 1881, no Vietnã, um tufão – do cantonês daai fung, “grande vento”, o nome asiático para essas tempestades – matou quase 300 mil pessoas. Em 1737, outro tufão, na Índia, deixou pelo menos 200 mil pessoas mortas e afundou, de acordo com os cronistas da época, cerca de 20 mil embarcações. Em 1772, em Cuba, uma tempestade que ficou conhecida como O Grande Furacão matou 20 mil pessoas, informa o livro Divine Wind: The History and Science of Hurricanes [Vento Divino: a História e a Ciência dos Furacões, em tradução livre], do meteorologista americano Kerry Emanuel.
Os danos materiais são igualmente chocantes. Em 2005, nos Estados Unidos, o furacão Katrina, o mais destrutivo da história, causou perdas que chegaram a 195,2 bilhões de dólares, em valores de 2022, o equivalente a 40% do total gasto com a previdência social americana. Em 2017, o furacão Maria destruiu 80% das plantações em Porto Rico, levou à falência a empresa de energia e atrasou em mais de uma década a possível recuperação econômica da ilha. No total, o custo dos três furacões mais destrutivos dos Estados Unidos é maior do que a soma do produto interno bruto do Uruguai, Bolívia, Paraguai e Chile. (“Espírito selvagem que se move em toda parte / destruidor, protetor: ouça-me, oh, ouça!”, escreveu o poeta inglês Percy Blythe Shelley em sua Ode ao Vento Oeste.)
Em seu livro Natural Disasters in Latin America [Desastres Naturais na América Latina], a jornalista americana June Carolyn Erlick mostra como esses fenômenos moldaram física e mentalmente o Caribe. Em Cuba, os furacões do século 19 mudaram a produção agrícola da ilha, de acordo com o historiador Louis A. Pérez Jr. Cuba deixou de cultivar café, banana e outras safras e passou a depender principalmente da cana-de-açúcar devido à devastação causada pelas tempestades. “Assim como a escravidão, a raça, a imigração ou o imperialismo, os furacões definiram a região”, escreve Stuart B. Schwartz, professor de história da Universidade Yale.
Historicamente, a Colômbia não tem sido um dos países mais afetados por furacões. Talvez por esse motivo, não tememos tanto o mar nem tenhamos o mesmo respeito por ele que nações como a República Dominicana, os Estados Unidos ou Cuba. Nos últimos 100 anos, apenas 15 grandes tempestades atingiram a costa continental colombiana. Nesse mesmo período, no entanto, o arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina, um dos principais destinos turísticos do país, foi atingido por oito tormentas que causaram danos significativos.
A mais recente ocorreu em novembro de 2020, em meio à pandemia. Entre 15 e 16 de novembro, os ventos de mais de 230 quilômetros por hora do furacão Iota – desde a Segunda Guerra Mundial eles são nomeados em ordem alfabética; antes recebiam nomes de mulher – mataram quatro pessoas no arquipélago, afetaram 98% da infraestrutura de San Andrés e destruíram 1.134 casas em Providencia (a ilha tem pouco mais de 5 mil habitantes). O governo alocou 1,2 trilhão de pesos para a reconstrução, cerca de 400 milhões de dólares na época, ou quase três vezes o orçamento anual da Colômbia para ciência e tecnologia (não está claro o que aconteceu com alguns desses recursos e que porcentagem dos custos de desastres como esse deveria ser assumida por outros países).
O Iota, um furacão de categoria 4, foi traumático para as ilhas e para o país. A questão da reconstrução dominou o noticiário por meses e inspirou campanhas de doação em toda a Colômbia. O Iota mudou a maneira pela qual os colombianos pensam sobre as tempestades. Por quase 30 anos, furacões eram eventos que aconteciam em outros lugares – o Joan, a última tempestade de categoria 1 ou superior a atingir o arquipélago, ocorreu em 1988. Assim como tornados, tsunamis e tempestades de neve, eles eram eventos climáticos alheios ao país, curiosidades trágicas ou problemas de outras nações.
O que aconteceu no arquipélago de San Andrés, Providencia e Santa Catalina alterou radicalmente essa visão. Em setembro, Javier Pava Sánchez, diretor da Unidade Nacional para a Gestão do Risco de Desastres, admitiu o fato explicitamente. A Colômbia não está preparada para essas tempestades, e tudo indica que elas se tornarão mais frequentes. Se a temperatura subir, em princípio os furacões terão mais combustível à sua disposição, pois haverá maior disponibilidade de ar quente e úmido para abastecer e aumentar sua intensidade. Os modelos do IPCC e vários estudos projetam exatamente isso. Nesse sentido, milhões de colombianos, como se fossem marinheiros, terão de voltar a ficar atentos – e muitas vezes temerosos – à direção e ao movimento do ar.
Às 11 horas do dia 7 de outubro, depois de deixarmos La Guajira para trás, paramos em um restaurante perto de Minca, a cidade mais próxima de El Dorado, uma reserva natural para observação de pássaros no sopé da Sierra Nevada de Santa Marta. A Sierra, uma cadeia montanhosa com picos nevados de mais de 5.700 metros distante 40 quilômetros do mar, é uma peculiaridade geográfica que afeta profundamente o clima e os ventos da região. E El Dorado, que fica cerca de 2.400 metros acima do nível do mar, oferece vistas privilegiadas aos observadores.
Inconscientemente, seguimos a rota da gota de água. Naquela manhã, a onda identificada no dia anterior pelo Ideam no Caribe venezuelano atingiu o status de tempestade tropical. O sistema chegou à costa colombiana e recebeu um nome: Julia. Às 10 horas e 20 minutos, em Providencia, Yolanda González Hernández, então diretora do Ideam, afirmou que as condições apontavam para a possibilidade de que a tempestade se convertesse em furacão. Às 11 horas, em conjunto com o Centro Nacional de Furacões, o instituto anunciou um alerta máximo para o arquipélago de San Andrés e Providencia.
De acordo com as projeções, o olho da tempestade passaria em frente à Sierra Nevada de Santa Marta por volta das 13 horas. Como todas as grandes montanhas, a Sierra tem seus próprios sistemas de circulação atmosférica, que havíamos planejado observar das alturas de El Dorado muito antes de o Julia nascer no Atlântico. Agora teríamos a possibilidade de observar a tempestade das alturas.
No restaurante, os vendavais se sucediam rapidamente. No vale, as árvores se retorciam e as mariposas disparavam para o céu, voando com esforço. A chuva se lançava diagonalmente contra as janelas do carro. Enquanto tomávamos uma bebida quente, uma rajada forte de vento arrancou uma telha de latão e a arremessou na direção do abismo. De vez em quando, um redemoinho fazia dançar as folhas arrancadas das guaduas. O vento carregava poeira, sementes e cardápios com os preços das aguapanelas, uma bebida à base de rapadura, costelas e carnes (em holandês, a palavra uitwaaien significa algo como ficar de frente para o vento para se purificar física e espiritualmente). Fechei o zíper da minha jaqueta e coloquei as mãos nos bolsos. Dois cachorros passaram correndo por nós, enquanto outro tremia e tentava se abrigar das rajadas de vento. Eu o imitei, segurando uma xícara de aguapanela fervente nas mãos, trêmulo e preocupado.
No Atlântico, um furacão sobrevive por cerca de nove dias e pode percorrer milhares de quilômetros. (Foto: Sumauma | Sebastian di Domenico)
A sensação térmica, como sabem as pessoas que convivem com o vento, não depende exclusivamente da temperatura ambiente. Há uma fina camada de ar em contato permanente com a nossa pele que funciona como uma espécie de cobertor. Quando o ar se aquece – devido à nossa temperatura, ao Sol ou a qualquer outro motivo –, ele sobe e o ar mais frio o substitui. Esse ciclo é interrompido – e nos sentimos confortáveis – assim que a camada de ar se aproxima da temperatura corporal. O vento acelera o processo de substituição do cobertor e reduz sua espessura. A pele dos cães e de outros animais protege esse cobertor contra o vento.
Em 1941, a indústria da moda analisou a quantidade de roupas que uma pessoa precisaria vestir para ficar confortável e não sentir frio em uma sala fechada com 50% de umidade e temperatura de 21 graus Celsius. Na época, foi determinado que um homem vestido com um terno de três peças poderia manter uma temperatura corporal constante nessas condições. Esse isolamento se tornou uma unidade de medição internacional no setor têxtil e representa um valor de 1 Clo [de Clothing and Thermal Insulation]. Um biquíni tem um valor Clo de 0,04; uma camiseta, 0,10; um suéter com gola em V, 0,37; um traje polar acolchoado, 3,5; um cão husky, sem roupas, 4,1; um lobo, 7,5; e um urso-polar, 8. Medições como essas são usadas para medir a quantidade de isolamento necessária para viver confortavelmente em qualquer lugar. Isso depende, em grande parte, do vento, que, portanto, também determina a maneira como as pessoas se vestem. No inverno de 1814, um dos mais frios da história da Inglaterra, James Woodforde, um pároco inglês e autor de The Diary of a Country Parson [Diário de um Pároco Rural], um curioso relato da vida no campo britânico no século 19, resumiu a situação da seguinte forma: “Coube ao vento norte impor um retorno à modéstia no vestuário feminino”.
Na Sierra, e sem o isolamento adequado, almoçamos em uma mesa exposta à ventania e continuamos nossa subida. Chegamos a El Dorado por volta das 14 horas. Uma névoa espessa como creme de leite cobria as montanhas, as cidades de Santa Marta e Ciénaga, e os picos. Deixamos nossas malas em uma edificação redonda, com telhado de palha, inspirada nas casas dos indígenas Kogui, os principais habitantes da Sierra durante séculos. Subimos as escadas para o restaurante, uma construção semelhante, porém maior, com paredes de vidro e uma varanda ao redor, equipada com cadeiras nas quais as pessoas podem se acomodar para observar a paisagem. Samantha Archila, uma engenheira florestal de 23 anos, de Bogotá, que administrava o El Dorado havia alguns meses, nos recebeu na entrada. Ela nos disse que em dias claros era possível ver – a partir daquele ponto – picos cobertos de neve, sete vales, a zona de cultivo de banana no interior do país, Ciénaga Grande, Santa Marta, Barranquilla e o mar do Caribe fundido ao céu.
Mas não havia coisa alguma a ser vista naquele dia. Uma garoa gelada acariciava o mirante e rajadas fortes de vento estrondavam de tempos em tempos. “É por causa do ciclone”, disse Samantha, apontando na direção onde deveríamos poder ver o oceano. Quando a tempestade atingiu a costa, as nuvens cobriram tudo. Como parte de alguma delas, a cerca de 40 ou 50 quilômetros da varanda onde estávamos, a minúscula gota de água do Atlântico, surgida perto de Cabo Verde, galopava em correntes voadoras açoitadas por Julia.
Na madrugada de 8 de outubro, fui acordado repentinamente pelo rugido do vento. Ainda estava escuro, mas do quarto eu conseguia ver as luzes da cidade de Santa Marta, cerca de 2.400 metros abaixo. Amanheceu às 5 horas e 25 minutos. O céu estava completamente limpo. A visibilidade era de pelo menos 120 quilômetros. O sol subia lentamente, tingindo as montanhas de azul. Do vale mais próximo, o vento rugia, imitando os macacos-uivadores ou macacos-uivadores (guaribas) rugiam imitando o vento.
Ao meio-dia, cerca de 780 metros acima do nível do mar, ao largo de Cartagena, a pequena gota de água nascida no meio do Atlântico mudou abruptamente de direção. Durante a noite do dia 7 e a madrugada do dia 8, ela continuava colada à costa. Mas horas depois a força exercida pela área de baixa pressão no centro do Julia se tornou inescapável.
Durante a tarde, a corrente de vento em que a gota viajava começou a assumir a forma de uma espiral. Passou novamente em frente à Sierra Nevada, virou para noroeste e continuou em direção ao arquipélago de San Andrés e Providencia, que estava em alerta máximo havia horas.
Em Providencia, a energia elétrica em certas partes da ilha havia acabado às 9 da manhã. Uma criança sobrevivente do Iota começou a desenhar para se distrair do furacão que se aproximava, reportou Camila Osorio no jornal El País. Ela desenhou uma casa que tinha elementos de sua antiga residência – destruída pela tempestade em 2020 – e da nova, que o governo havia entregado à sua família recentemente. “Esse é o poder desintegrador de um grande vento: isola o homem de sua própria espécie”, escreveu Joseph Conrad no livro Tufão. “Um terremoto, um deslizamento de terra, uma avalanche, se abatem sobre a pessoa incidentalmente – sem paixão. Uma tempestade furiosa ataca como se fosse um inimigo pessoal, tenta agarrar seus membros, toma sua mente como presa, busca derrotá-la e arrancar-lhe o espírito.”
Por volta das 18 horas, um avião Hercules WC-130J da Força Aérea dos Estados Unidos voou até o olho do Julia, a 15 quilômetros de San Andrés, e registrou velocidades de vento constantes. As rajadas mais rápidas atingiam 120 quilômetros por hora, o que significava que o Julia tinha acabado de se tornar um furacão.
A passagem do Julia por San Andrés deixou duas pessoas feridas, duas casas destruídas e outras 11 danificadas. Poderia ter sido muito pior. Os ventos arrancaram telhas e quebraram palmeiras perto do centro. Mais de 70 pessoas se refugiaram em abrigos oferecidos pelo governo durante a passagem do furacão.
Ao contrário do que se esperava, os danos foram maiores em La Guajira. Em Uribia, as correntes de vento e a chuva que se seguiram ao furacão criaram um rio que dividiu a cidade em duas partes. Muitas das estradas pelas quais tínhamos viajado ficaram bloqueadas, e o comandante do Exército teve de enviar batalhões de engenharia para restabelecer as conexões em todo o departamento.
“De todos os fenômenos naturais, talvez não haja nenhum que o homem civilizado se sinta mais impotente para influenciar do que o vento”, escreveu o antropólogo escocês James Frazer. Mas o estamos mudando e não é fácil prever as consequências. De qualquer forma, elas serão dramáticas. “A ciência é clara o suficiente: hidrólogos, meteorologistas etc. não têm muito mais a dizer”, resumiu o professor Juan Fernando Salazar ao conversar comigo em uma tarde nublada em Medellín. “Agora é a vez dos governantes, dos políticos, dos economistas e assim por diante… Mas teremos que nos deslocar pelo mundo; as fronteiras vão mudar.” Ele pensou por um momento antes de continuar: “Enquanto eu vir a possibilidade de uma solução, não vou parar de procurar. Tenho um filho de 7 anos. Não tenho outra opção”.
No mar do Caribe, a pequena gota nascida no Atlântico em 2 de outubro e levada pelas correntes de ar até San Andrés, finalmente se uniu a outras gotas semelhantes para atingir um peso de cerca de 0,034 grama e assim formar uma gota maior e cheia de trilhões de moléculas de água. Depois do furacão Julia, ela chegou ao chão em uma área pavimentada próxima a uma árvore de fruta-pão, a 60 metros de um cemitério no centro da ilha.
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