20 Julho 2023
“Não há nenhuma dúvida de que a escalada da Guerra Fria com a China e a Rússia aumentará as margens de lucro das empresas de defesa. Mas a drenagem de nossa riqueza nacional para gastos militares improdutivos e o aumento do perigo de uma guerra nuclear não são do interesse do povo americano; pelo contrário, constituem uma das ameaças mais sérias que pairam sobre ele. Esperamos que prevaleçam as vozes racionais que defendem uma parceria produtiva e uma cooperação internacional”. A reflexão é de Jonathan Alan King e Richard Krushnic em artigo publicado por Truthout e reproduzido por A L’Encontre, 17-07-2023. A tradução é do Cepat.
Jonathan Alan King é co-presidente da Mass Peace Action e Richard Krushnic é membro da Força-Tarefa de Desarmamento Nuclear da Mass Peace Action.
A indústria manufatureira da China há muito tempo sustenta o padrão de vida relativamente alto de milhões de cidadãos dos EUA [oferecendo produtos a preços relativamente baixos], ao mesmo tempo em que ajuda as empresas americanas a obterem lucros polpudos. Apple, Tesla, General Motors, Nike, Texas Instruments e Qualcomm têm operações de fabricação significativas na China. Por outro lado, o governo chinês investe em títulos do Tesouro dos EUA e de agências governamentais, tendo comprado deles cerca de US$ 1 trilhão na última década.
Apesar desses benefícios para a economia dos EUA, o secretário de Defesa Lloyd Austin disse que a China segue sendo o maior desafio para os objetivos de segurança nacional dos Estados Unidos. De acordo com o subsecretário de Defesa Ely Ratner, grandes modernizações, que incluem novos navios de guerra e submarinos de mísseis balísticos, esquadrões de helicópteros de ataque e um quartel-general de divisão de artilharia na região [Coreia do Sul], tornarão as forças estadunidenses mais móveis, mais distribuídas, mais resistentes e mais letais.
Em seu depoimento em maio de 2023 perante a Subcomissão de Créditos para a Defesa do Senado, o secretário Lloyd Austin disse o seguinte:
“Este é um orçamento orientado para a estratégia e impulsionado pela severidade de nossa competição estratégica com a República Popular da China. Com US$ 842 bilhões, representa um aumento de 3,2% em relação ao ano fiscal de 2023 e de 13,4% em relação ao ano fiscal de 2022. Esse orçamento nos ajudará a continuar implementando nossa estratégia de defesa nacional e a estratégia de segurança nacional do presidente. A República Popular da China é o nosso desafio mais sério. E estamos nos esforçando para enfrentá-lo. Nosso orçamento se baseia em nossos investimentos anteriores para impedir ataques. Atualmente, estamos investindo em uma postura de forças mais resistente na região do Indo-Pacífico [esta área inclui a maioria dos países do Sul, Leste e Sudeste da Ásia, portanto combina o Oceano Índico e o Oceano Pacífico; a definição desta zona está em constante evolução político-militar] e estamos aumentando a escala e o escopo dos nossos exercícios com os nossos parceiros. Este orçamento fornece um aumento de 40% em relação ao pedido do ano passado para a Iniciativa de Dissuasão do Pacífico, um recorde de US$ 9,1 bilhões”.
Até certo ponto, a abordagem do governo Biden para a China concentrou-se na política econômica. A proibição do Departamento de Comércio da venda de semicondutores avançados para a China, anunciada em outubro de 2022, é um exemplo importante. O CHIPS and Science Act, que aumenta acentuadamente o investimento federal dos EUA na indústria manufatureira doméstica, é outro. Embora essas medidas tenham implicações militares, elas são, acima de tudo, iniciativas de política econômica.
Do lado republicano, Elbridge Colby, subsecretário de Defesa encarregado da Estratégia e Desenvolvimento das Forças Armadas no governo Trump, escreveu The Strategy of Denial, no qual explica a extrema probabilidade de uma guerra envolvendo Taiwan, que obrigaria os Estados Unidos a irem à guerra para impedir que a China dominasse o leste da Ásia. Também evoca o risco de uma guerra nuclear. Elbridge Colby escreve no The New Yorker (19 de agosto de 2021) que “[o senador Josh] Hawley [republicano, Missouri] denunciou grandes empresas de tecnologia por supostamente tentarem se vender ao governo chinês, [o senador] Marco Rubio [republicano, Flórida] concentrou-se na perseguição da China aos muçulmanos uigures, e o [senador Tom] Cotton [republicano, Arkansas] encorajou um afastamento direcionado da economia chinesa”.
Além disso, o presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Michael McCaul [republicano, Texas], defende exercícios de guerra conjuntos entre os Estados Unidos e o Japão no caso do uso de armas nucleares por parte da China. Ao insistir que a China está mais do que triplicando seu número de ogivas nucleares operacionais e aumentando as operações de subversão da China em Taiwan, Michael McCaul é outra voz poderosa que pressiona pela preparação da guerra.
Se as relações econômicas com a China são efetivamente boas para os Estados Unidos, por que tantos de nossos líderes nacionais pretendem iniciar uma nova Guerra Fria com a China?
Múltiplos interesses muito poderosos moldam a política dos EUA no interesse das grandes empresas. Trata-se principalmente dos fabricantes de automóveis, da indústria de combustíveis fósseis, da indústria farmacêutica, da agricultura e do setor agroalimentar, dos hospitais e das seguradoras da área da saúde. Embora alguns setores dessas indústrias tenham se oposto a decisões específicas, como no recente debate sobre painéis solares, em nenhum caso os representantes dessas indústrias pediram a intensificação da preparação militar. A indústria biofarmacêutica está preocupada com a fraca proteção da propriedade intelectual e das patentes na China, mas não está pedindo uma resposta militar.
Ao contrário desses outros setores, as empresas da defesa e o complexo militar-industrial do Congresso dependem da escalada e dos conflitos para acumular lucros. Após a queda da União Soviética, a “guerra contra o terrorismo” abriu novos mercados para certos setores da indústria militar, incluindo aqueles financiados pelo Homeland Security (Segurança Interna), como armas leves, a segurança cibernética e parte das operações do Pentágono no exterior.
No entanto, mesmo a indústria da defesa não pode querer que mísseis balísticos intercontinentais, submarinos armados com ogivas nucleares ou bombardeiros B-1 sejam eficazes na guerra contra o terrorismo. Essas produções caríssimas, que custam bilhões de dólares, precisam de inimigos em larga escala. Assim, após um período de descongelamento das relações com os Estados Unidos, a Rússia e a China são novamente apresentadas à população estadunidense como inimigas.
As significativas despesas atualmente previstas incluem o desenvolvimento e a compra de caças F-35, a substituição dos ICBMs (mísseis balísticos intercontinentais) colocados em silos, a compra de novos submarinos munidos de armas nucleares, a modernização de bombardeiros B-1, bem como o desenvolvimento e a compra de um novo míssil de cruzeiro lançado do mar. Os 882 bilhões de dólares recentemente aprovados pelo Congresso para defesa nacional já representam cerca de 52% do orçamento discricionário proposto para 2024.
As compras atualmente planejadas totalizam mais de um trilhão de dólares nas próximas duas décadas, pagas, claro, pelos contribuintes. Só as armas nucleares devem custar US$ 634 bilhões nesta década. Isso representa uma extraordinária transferência de riqueza de centenas de milhões de contribuintes americanos para algumas dezenas de grandes corporações e seus executivos.
Na verdade, trata-se de um brilhante plano de negócios: um mercado garantido, já que o governo compra toda a produção; um contrato do tipo monopolista, já que a lei proíbe fabricantes estrangeiros; lucros garantidos, por meio de contratos a preço de custo cujos aumentos são autorizados pelo Congresso; e um pagamento garantido, já que são os contribuintes que fornecem o dinheiro. Claro, é preciso convencer uma parte da opinião pública de que esses gastos respondem a ameaças à segurança nacional.
O grande esforço de lobby das indústrias de defesa para expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi relativamente bem documentado. No entanto, as pressões exercidas para remilitarizar nossas relações com a China são mais recentes. Por exemplo, a iniciativa de dissuasão do Pacífico que o secretário de Estado Lloyd Austin descreveu (ver acima) envolve a venda de três submarinos movidos a energia nuclear para a Austrália.
O custo de US$ 15 bilhões enriquecerá a Lockheed Martin, a Boeing, a Raytheon, a Northrop Grumman, a General Dynamics e outras grandes empresas da área da defesa. Fica bem claro que, dada a “porta giratória” [passagem do privado para o público] entre o Pentágono e as grandes empresas de defesa, as políticas governamentais geralmente refletem os interesses dos empresários. O próprio secretário Austin atuou nos conselhos de administração da United Technologies e da Raytheon.
Os líderes civis e militares estadunidenses, bem como os líderes da indústria da defesa, querem campanhas publicitárias que promovam o medo e uma resposta agressiva à China. As estratégias de doações para as eleições por empresas militares favorecem os eleitos influentes e os candidatos promissores que se juntarão e liderarão o coro do Congresso pedindo a preparação para uma provável guerra com a China.
Os detalhes são apresentados em vários think tanks “hawkish” [falcões ou linha dura] que fazem recomendações ao Congresso, incluindo o relatório do Carnegie Edowment for International Peace (Fundação Carnegie para a Paz Internacional) “China Risk and China Opportunity for the U.S.-Japan Alliance Project”, que destaca o papel do Japão na luta contra a ameaça chinesa, bem como um relatório de abril de 2020 do Scowcroft Center for Strategy and Security do Atlantic Council sobre as tecnologias emergentes e o futuro da colaboração dos EUA-Japão em questões de defesa (“Emerging Technologies and the Future of US-Japan Defense Collaboration”), que defende a cooperação militar entre o Japão e os Estados Unidos para enfrentar a China.
Agora que a campanha de propaganda desses políticos, generais e empresários militares preparou a população e organizou o apoio de think tanks e da mídia, o ciclo pode ser iniciado. A China está aumentando rapidamente suas forças armadas nucleares, desenvolvendo suas outras forças militares e tentando assumir a liderança na guerra cibernética e na guerra assistida pela inteligência artificial. Uma vez que este ciclo tenha preparado totalmente cada lado para a guerra contra o outro, a guerra se torna cada vez mais inevitável.
Um dos que mantém a roda girando é Eric Schmidt, investidor em tecnologias da inteligência artificial e ex-CEO do Google [em 2017 deixou a presidência executiva da Alphabet. Ele havia se tornado diretor em 2016 de um comitê do Pentágono para estudar a contribuição das inovações do Vale do Silício para os militares dos Estados Unidos]. Ele desenvolveu um plano para que os Estados Unidos “se salvem da ameaça existencial” representada pela IA chinesa. Eric Schmidt participa de comissões governamentais encarregadas de recomendar como os Estados Unidos podem superar a IA chinesa, enquanto se beneficia financeiramente dos contratos governamentais resultantes.
Entre 2016 e 2021, Eric Schmidt presidiu o Defense Innovation Board e a National Security Commission on Artificial Intelligence. Um exemplo entre muitos: enquanto presidia essas comissões, a empresa de capital de risco de Eric Schmidt, Innovation Endeavors, investiu US$ 150 milhões no provedor de software Rebellion Defense, em duas etapas, em 2019 e em 2021. Enquanto Eric Schmidt ainda presidia a Comissão de Segurança Nacional em 2020, a Rebellion garantiu 950 milhões de dólares em contratos da Força Aérea para um “sistema avançado de gerenciamento de batalhas” na nuvem da inteligência artificial. Eric Schmidt doou US$ 1,15 milhão para candidatos democratas e organizações do partido em 2022.
Frequentemente, essa coalizão de falcões não defende abertamente a guerra, mas simplesmente aconselha os Estados Unidos a “se prepararem para ela”. Por exemplo, a Global Guardian, uma empresa líder em segurança que tem clientes governamentais e empresariais em 130 países, aconselha as empresas a se prepararem para proteger seus funcionários, ativos e cadeias de suprimentos ao se separarem da China. Em janeiro de 2023, o general da Força Aérea dos EUA, Mike Minihan, disse às 50.000 pessoas que estão sob seu comando que tinha um pressentimento de que os EUA estariam em guerra com a China em 2025.
Ele pode ter sido inspirado pela Global Guardian. Em 2022, o CEO Dale Buckner previu que Pequim poderia tentar tomar Taiwan à força durante as eleições presidenciais da ilha em 2024, o que poderia desencadear um ataque chinês, afirmando que havia “90% de chance de haver uma escalada nos próximos cinco anos”. Dale Buckner, ex-boina verde do Exército, também disse à Forbes (13 de outubro de 2022): “Não é paranoia dizer que estamos nos separando da China”.
Apesar dos problemas na cadeia de suprimentos, principalmente no que diz respeito aos microchips, que uma guerra com a China traria, os executivos da Lockheed Martin e da Raytheon Technologies não parecem abalados, deslumbrados com os enormes lucros que a preparação para uma guerra com a China promete. Por exemplo, Greg Hayes, CEO da Raytheon, disse no início de 2022 que “as tensões no leste europeu [Ucrânia], no Mar da China Meridional [Taiwan], todas essas coisas pressionam alguns gastos com a defesa. Portanto, espero que nos beneficiemos disso” (em Responsable Statecraft, “Big War CEOs: There’s caos in the world and our prospects are excellent”, 28 de janeiro de 2022).
Após muitos anos sem dispor de uma base militar, os Estados Unidos acabam de garantir amplos direitos de base nas Filipinas [quatro bases: – CNN, “US gains military access to Philippine bases close to Taiwan and South China Sea”, 4 de abril de 2023]. O recente acordo para fornecer à Austrália submarinos de ataque movidos a energia nuclear significa um afastamento significativo da China e uma nova preparação para a retórica de guerra. Em abril e maio de 2023, altos funcionários do Departamento de Defesa e do Interior australiano disseram que os tambores de guerra estavam rufando e que o conflito com a China era muito provável. O complexo militar-industrial-congressional fez bem o seu trabalho.
Ao contrário dos Estados Unidos, a China não possui centenas de bases militares no exterior. Não instalou interceptadores antimísseis perto dos Estados Unidos, ou mesmo em qualquer outro lugar do mundo. Sua marinha não faz exercícios militares perto de nossas costas do Pacífico ou do Atlântico. Sua política em relação a Taiwan – a 80 milhas de sua costa –, embora agressiva, é muito menos do que as sanções, boicotes e bloqueios americanos contra Cuba. Os Estados Unidos ainda mantêm a base naval da Baía de Guantánamo diretamente na ilha. Os esforços da China para reivindicar e controlar as rotas marítimas adjacentes às suas costas são certamente motivo de preocupação, mas estão longe de fornecer uma base sólida para o lançamento de uma nova Guerra Fria.
Os lucros militares estão disparando devido à guerra por procuração entre os Estados Unidos e a Rússia na Ucrânia e os preparativos para a guerra com a China. O problema é que quando você atiça o medo e convence as pessoas de que se preparar para a guerra é necessário e urgente (e ao mesmo tempo ter lucro), é difícil encontrar um motivo para não entrar em guerra.
No entanto, o governo Biden parece ter interrompido o rufar contínuo dos tambores de guerra com uma viagem inicialmente secreta do diretor da CIA, William Burns, à China em maio, a visita do secretário de Estado Blinken em junho e uma viagem da secretária do Tesouro Janet Yellen em julho. As autoridades discutiram o estabelecimento de “um piso” para cooperação em matéria de estabilidade econômica global e aquecimento global. Janet Yellen diz que os Estados Unidos não têm a intenção de desvincular a sua economia da China, apesar dos esforços dos aliados para conseguir o contrário. O setor do complexo militar-industrial-congressional aliado ao governo Biden aceitou pelo menos um esfriamento temporário da retórica. Espera-se que esta pausa leve a negociações mais aprofundadas com as autoridades chinesas.
Não há nenhuma dúvida de que a escalada da Guerra Fria com a China e a Rússia aumentará as margens de lucro das empresas de defesa. Mas a drenagem de nossa riqueza nacional para gastos militares improdutivos e o aumento do perigo de uma guerra nuclear não são do interesse do povo americano; pelo contrário, constituem uma das ameaças mais sérias que pairam sobre ele. Esperamos que prevaleçam as vozes racionais que defendem uma parceria produtiva e uma cooperação internacional.
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As empresas do complexo militar-industrial dos EUA se lançam em uma corrida armamentista com a China - Instituto Humanitas Unisinos - IHU