06 Março 2023
Em uma guerra, assim como há dois inimigos, há sempre duas verdades. Quem tem certeza de sua própria verdade?
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado em Il Fatto Quotidiano, 05-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há guerra, e ninguém no Ocidente jamais fez uma autocrítica. Nós, que há três anos lançamos a iniciativa “Constituinte Terra”, amamos tanto a unidade do mundo e sua paz que corremos o risco de pensar que a Terra poderia assumir uma única Constituição e conformar-se a um único direito, quando, por outro lado, deve-se reconhecer a admirável variedade de culturas e de histórias, sem prejuízo aos direitos e às garantias universais humanas. Foi esse o pecado do Ocidente ao pensar o mundo à sua medida. E agora nos deparamos com um mundo dilacerado por Leviatãs em guerra entre si.
Hoje, após um ano de guerra, nove anos após a armadilha dos acordos de Minsk (segundo Merkel), cinco meses após a sabotagem estadunidense do gasoduto russo-europeu no Báltico (segundo o prêmio Pulitzer Seymour Hersh), a “Constituinte Terra” assume e mantém o luto pelo “fim da paz”, como a revista Limes chamou imediatamente, mesmo que a paz nunca tenha existido desde os primórdios da civilização e sempre deu lugar à guerra, enquanto a guerra volta agora em grande forma a se credenciar em nome da razão e do direito, pelos quais, após a Pacem in terris, de João XXIII, havia sido expulsa para sempre.
Entramos em luto por uma guerra que voltou a ser mundial, mas também por informações que a mistifica, depois de a última guerra ter terminado com dezenas de milhões de mortos, a começar pelos soviéticos, centenas de milhares de japoneses queimados vivos pelas bombas atômicas, e uma menina judia, Liliana Segre, que sobreviveu para poder nos dizer ainda que, depois da guerra, ainda resta o amor.
Entramos em luto pela humanidade abandonada, pela informação homologada e pela piedade perdida, a ponto de o terremoto na Síria não poder ser ajudado devido às sanções atlânticas e europeias que lhe são impostas. Também é preciso lembrar que, apesar da variedade das opiniões, foi unânime a condenação da infeliz resposta agressiva de Putin a uma ameaça, embora percebida como mortal e final; mas também foi inaceitável a intenção, declarada desde o início por Biden, de banir a Rússia da comunidade das nações, infligindo a ela uma derrota sem precedentes e sanções genocidas, canalizando contra ela dólares e armas de todo o mundo, para reduzi-la a “pária”.
E agora nos é anunciado – em documentos oficiais datados de 12 e 27 de outubro passados por Biden e pelo chefe do Pentágono, Lloyd Austin, sobre as estratégias de “segurança” e “defesa” dos Estados Unidos – um “desafio culminante” com a China para decidir, na próxima década, o futuro do mundo; e isso por meio de uma “competição estratégica” com ou sem conflitos armados, em que, aliás, os Estados Unidos têm a certeza de “prevalecer”, cuja aposta é o estabelecimento de um único império e de uma mesma sociedade para todo o mundo.
Mas pensamos que nem mesmo a China pode ser jogada fora da história, e que, de fato, as Nações da Terra deveriam acorrer ao lado dela, depois de ela ter sido consumida por uma epidemia devastadora que se abateu sobre ela depois de sair da pobreza que, em 1978, ainda pesava sobre 770 milhões de camponeses, com uma taxa de pobreza de 97,5% da população total (informações oficiais fornecidas em um livro de Zhang Yonge, “La Cina e lo sforzo propositivo per un XXI secolo dei diritti”, distribuído pelo embaixador chinês na Itália).
Porém, a China conseguiu hoje chegar a garantir alimentação e subsistência a uma população de mais de 1,3 bilhão de pessoas e não merece que o mundo, ao invés de ajudar a socorrê-la, espere seu aniquilamento a fim de não mais tê-la como concorrente.
Portanto, estamos longe de precisar fazer uma guerra e um império, e esta também é uma guerra da Itália; ela não tem mais guerras nem inimigos para vencer. Também não se pode sair dizendo “negociação, negociação”, quando a Ucrânia, que precisa disso mais do que a vida, é o único país do mundo que proibiu a negociação por lei.
Não é a nossa guerra, nem deveria ser a guerra pessoal de Giorgia Meloni [primeira-ministra italiana] e seus aliados relutantes. Precisamente porque não temos licença para matar soberanos, nem para não atacar jovens e velhos, nem para expulsar a Rússia do mundo e para derrotar a China. O bem de existir é para todos. Se Giorgia Meloni fosse russa, hoje estaria sob o castelo de Varsóvia se manifestando contra Biden pela sua pátria e contra a ideia de reduzir o mundo a uma única medida.
Em uma guerra, assim como há dois inimigos, há sempre duas verdades. Quem tem certeza de sua própria verdade?
Temos juízes que julgam direitos, não temos juízes da verdade aqui embaixo. Ou gostaríamos de dizer, como Hobbes, assim como Bush fez para legitimar a retomada da guerra no Golfo após a Guerra Fria: “Auctoritas, non veritas facit legem”? E a democracia? Em que ela diferiria das “autocracias”?
O pensamento de ordenança não me convence. Insisto em enfiar meu nariz nisso.
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É um mundo de Leviatãs lutando entre si. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU